quarta-feira, 17 de junho de 2020

histórias de avoinha: ôum velório de vida

mulheres descalças


ôum velório de vida 
Ensaio 127Bz – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




antônia açunta levô um susto de escutá saí da boca do siô augusto aquele segundo e desusado nome, pensava qui ele num sabia – e se sabia, tava no esquecimento – da existência da açunta, desde qui chegô na casa foi o nome da antônia qui escutô pra lá e pra cá, o segundo nome nem parecia tê necessidade de uso 

ficô desconsertada com o imprevisto, num viu razão pra sê desviada duseu nome de costume, mais num viu motivo pra tê desconfiança, O sô Augusto num é santo – e num é flô qui se chêra –, mais, no modo de vê da antônia, ele num é de munta maldade. É verdade qui num tem quase nehuma paciência com dona Rosinha, isso é verdade. Mais é um pai esforçado. Num é de falá muntu além da precisão de explicá uqui qué, num bebe e num fuma na casa, na rua inté pode sê, mais cá dentro num tem costume, nunca vi. Tumbém nunca botô a mão onde num devia, já dusóio num posso dizê a mesma coisa, tem usóio cumprido e atrevido, isso já vi. Inté Açunta reparô.

mais no modo de vê da açunta, Coisa qui num acaba nesse mundo é gente cruenta, malcriada, malvada, desalmada e mentirosa. É um povaréu qui vive da ruindade, desatina a vida pra tê proveito próprio, se serve da pobreza como as barata usa as imundícia do lixo, Calma, Açunta, respira, Calma nada, Antônia, a fome é uma invenção dessa gente enfiada inté o pescoço nas treva fria do desprezo e desdém, os arrepiu duódio vive amontoado nelas.

numa coisa as duas pensa igual, Num se engana o ódio, ele é um parasita qui brota e cresce dusvô e dasvó inté prus fiu dusfiu, é gelo frio do fazimento do gabola, filhote afetado, arrogante e encabritado, o fiu qui junta as alma atormentada no deserto da cobiça.

as duas continua parada na frente do tabulêro inté qui açunta resolveu falá, Mais alguma coisa, sô Augusto?

como é fácil falá desconfiada da candura da antônia duseu próprio lugá de falá sem tá na pele preta, sem otro lugá pra tá, ausente e destoada, tão sozinha qui só faz sentido continuá sozinha nessa vida

Não, Açunta. Obrigado, ocê está dispensada.

ele já num tava mais oiando antônia e se pruguntava quando viu qui além de antônia tumbém tinha açunta, deu um suspiro e resmungô, Tanto faz, o dono de tudo na casa num perde tempo com coisa sem merecimento – a vida da preta antônia passô sê preta açunta, assim o siô antônio finge qui antônia num existe mais, no lugá dotra tá açunta qui ele nada conhece, quanto menos conhecê mais desembaraço pra mandá embora –, num tem valô, o seu jeito pra vê é simples, basta colocá tudo na balança qui mede o tamanho duqui vale e a medição do ganho, descartá é sempre a vontade treinada qui vive grudada no pensamento

tanto a muié do matrimônio como a muié escravizada só queria paz, uma na maridagem, a otra nos serviço das tarefa, tão usada uma tava, tão afastada qui ficô otra, tão sozinha tava as duas qui só fazia sentido ficá resignada, tomá o cálice da raiva respeitosa com vinho tinto e pastelzinho pra num dá no lugá do beijo uma dentada límpida e fresca

quanto encanto ignorado na vingança justa

nehuma tinha lonjura suficiente pra vivê sossegada depois do revide, num tinha lugá bão pra debandá depois da desforra, os pensamento precisa durumí, ficá moribundo, usóio cerrado, respirando profundo enquanto o peito murcha sem a saliva umedecida do amô desejado, esquecido da mão atrevida e o sorriso tranquilo do oiá desabusado

O sô Augusto tem certeza que não carece precisá mais nada?

antônia açunta decidiu muntu tempo pra tráis qui pra tê paz naquela casa – ou qualqué otra casa qui fosse pará vendida, alugada, emprestada ou dada – precisava desistí do sonho da liberdade e da vontade de juntá sua desgraça com otro tormento de vida, abriu mão ditê os fiu do sangue pra num continuá encadeando agonia, amargura e sofrimento na vida qui num é vida, inté tê otra vida as vontade da carne foi preciso negá, vivê na sombra discreta da casa

precisô inventá açunta e reinventá antônia

os assunto é só dela, as duas gosta duma boa discussão inté pra resolvê aceitá ou não a proposta do siô augusto pra ela vendê quitutes na praça depois do almoço inté antes da tardinha, Eu não quero, Açunta, Bestice, Antônia, Não vô querê, E pru qui vai perdê a sorte de saí da casa? Conhecê gente, falá e escutá as palavra da praça, vai sê bão, Vendê cem pra ficá com um num é bão, É tanta gostosura qui vai tê muntu mais qui cem pra querê, E os serviço da casa quem vai fazê enquanto eu faço os quitute? Ocê num vai fazê os serviço da casa, Açunta, Se ocê vai na praça eu vô tumbém, Eu não vô, tá decidido.

precisô negá a oferta bondosa do siô augusto, sê sua funcionária na praça vendendo quitutes, de cada cem quitute vendido um ficava pra ela e os num vendido entrada na conta dotro dia, assim num quis tá na praça, quis o esconderijo do convento da casa pra num tê vontade da tentação e num ficá amarrada pra todo sempre nos quitute qui num vendeu, Antônia, ocê é medrosa, é preciso corrê o risco, Eu tô escravizada, mais é ocê, Açunta, qui foi dominada.

no seu modo de vê, a vida de dominação qui levava as gente da villa era muntu mambembe, rastêra, vulgá e ruim, era só dá chance qui a maldade brotava como musgo nas pedra, as vida da villa dominada precisa tê uspretu pra mutilá, a villa cresceu abastada dessa gente cruenta e mui leal, num dá pruspretu a chance do sonho de saí da vida da pobreza pra mostrá qui num é um pretu deseducado e vagabundo 

um pesadelo sem fim das vontade ditê os domesticado pra uso próprio, marasmo qui num passa nem esfregando usóio, o rio de sangue encarnado das tardinha parece denunciá usoiá qui escraviza, os pensamento tenebroso e infame atráis da cortina, uma imensidão de água e dô, o vento frio cortante parece viciá as pessoa no silêncio e na solidão

as história da villa quem conta é os dono de tudo e eles sempre conta do seu jeito meió, é um otro império, só prus forte do estômago e nariz empinado, é gente capaz de abraçá com abalo seu cachorro, oiá com afago seu cavalo, mais virá o nariz pra dô dusíndio e duspretu, grita qui eles é manhoso pra fugí do trabáio 

Muito obrigado, Açunta. Por enquanto já pode se retirar para o quartinho.

Mas e a louçaria?

Não se preocupe, dona Rosinha dá conta de recolher.

Precisando é só chamar.

Eu sei, Açunta. Depois que dona Rosinha recolher a louçaria da mesa ela vai lhe chamar para seu uso de lavadeira.

antônia virô as costa prus dois e saiu levando o peso do tempo nuspé e o tabulêro nas mão

fechô a porta com cuidado

Mãezinha...

Sim, paizinho...

a dona rosinha respondeu sem desviá da janela

O que são esses panos da Açunta na cabeça?

dona rosinha desvirô com a estranheza da prugunta, O torço é uma touca.

foi a veiz do siô augusto mostrá estranheza, Torço? Isso é algum feitiço?

dona rosinha conhece muntu aquele medo da ignorância, do xucrismo afetado do esposo, fanfarrão das coisa qui num se cansa de dizê qui faz e acontece mesmo quando num fez

Um turbante... paizinho...

ele apartô as vista prus pé, parecia qui tava engolindo as coisa dita, depois falô as palavra qui escondia o fio da língua amolada

Um turbante... e por que Açunta está usando um turbante?

Que cansaço sem repouso, pensô dona rosinha, paz só na sepultura do suplício delirante desse homem, respirô sem pressa, conhecia muntu a grossura nojenta qui ele tava pra dizê

Ela usa turbante já faz muito tempo, paizinho...

Não tinha reparado, mas é melhor que use para esconder a carapinha branca. Cabelo ruim não tem que se mostrar.

uspretu num veio, foi trazido, agora eles vai ficá e vai sê preciso vivê junto da gente indiferente com as pessoa qui usa, derruba e abandona, é assim, cadum qui se vire com seu gentio doloroso, a villa vai seguí, num é fácil, mais podia sê 

mesmo os mais exausto num vai pará de lutá 

o medo e o menosprezo é o resultado disso, o dono de tudo acima do mundo das gente da villa espáia desapontamento e exibe seu triunfo, queima os curação com as chama morta das gentileza falsa, o curação cadia mais duro, a vara cadia mais mole

tudo parece sê só obrigação de parecê qui ainda pode e sempre vai podê, ele sabe qui tá ficando menó qui nada, inté tá mijando nas calça, vive a sua tempestade infame, ôum velório de villa

a decisão tava tomada, o decidido já tava decidido, alforriá aquela preta véia adoecida pelo uso do tempo num era mais qui obrigação pra fazê o encontro das conta e as necessidade da casa, Açunta não flutua mais da cozinha até a sala e de volta até a cozinha, não é para tanto na idade dela.

Ninguém vive para sempre, Augusto. O tempo passa e a estrada acaba para todos e todas. Tem vez que os meus pensamentos viajam só para me dizer que a vida é só um passeio, uma história para ser contada sem futuro para ser esperado, pru siô augusto só disse, Chegou o tempo da Antônia ficar cansada, paizinho.

Deve ser alguma doença ruim. Vou lhe recompensar sem constrangimentos e de minha livre vontade como uma negra forra para todo o sempre. Não vou arcar com os gastos com remédios, médicos e enterro.

E quem ajudará Antônia?

E tem como ajudar velhice e reumatismo crônico. Está quebrada das virilhas. Que possa ir para onde quiser tratar da saúde como senhora de si.

Onde?

Sei lá, que a caridade pública a trate e enterre em cova rasa.

todas elas tá na casa, mais num parece existí, uma vida de atendimento sem reclamá enquanto a vida pisca o seu instante curto e breve

os pé arrastava o peso do resto da vida, tudo da reunido na volta do mesmo moinho




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