sexta-feira, 26 de junho de 2020

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho

Capítulo 1



continuando...


Toda a cor, salvo o vermelho das faces de Orlando, em breve se desvaneceu. A noite chegou. Quando a luz alaranjada do poente desapareceu, foi substituída por um assombroso clarão branco das tochas, fogueiras, lanternas e outros recursos com os quais o rio era iluminado, e aconteceu a mais estranha transformação. Várias igrejas e palácios nobres, cujas fachadas eram de pedra branca, desenhavam-se em linhas e manchas como se flutuassem no ar. De São Paulo, em particular, nada ficara senão uma cruz dourada. A Abadia aparecia como o esqueleto cinzento de uma folha. Tudo se diluía e se transformava. Quando se aproximavam do carnaval, ouviram uma nota grave saída de um diapasão, que soava cada vez mais forte até se transformar num clamor. De vez em quando um grande grito acompanhava um foguete no ar. Gradualmente, eles podiam discernir pequenas figuras que se destacavam da vasta multidão e giravam para lá e para cá como mosquitos na superfície do rio. Em cima e em torno desse círculo brilhante, como um pote de sombras, impunha-se o negro profundo de uma noite de inverno. E então, nessa escuridão, começaram a erguer-se em intervalos que mantinham a expectativa alerta e as bocas abertas foguetes em forma de flores; meias-luas; serpentes; uma coroa. Em um momento, as florestas e as colinas tornavam-se verdes como num dia de verão; a seguir, tudo era inverno e escuridão outra vez. 

A essa altura Orlando e a princesa estavam próximos do recinto real e encontraram o caminho barrado por uma multidão de populares que se comprimiam tão próximo do cordão de seda quanto era possível. Contrariados por terminar sua privacidade e encontrar os olhos penetrantes que os observavam, o casal ficou lá, acotovelado por aprendizes; alfaiates; peixeiras; negociantes de cavalos; caçadores de coelhos; estudantes famintos; empregadas domésticas de avental; vendedoras de laranjas; moços de estrebaria; cidadãos honestos; taverneiros obscenos; e uma horda de pequenos maltrapilhos, como as que sempre perseguem as margens de uma multidão, gritando e se arrastando entre os pés do povo — toda a ralé das ruas de Londres estava na verdade ali, zombando e empurrando, aqui jogando dados, lendo a sorte, aos empurrões, fazendo cócegas, beliscando; aqui barulhentos, ali carrancudos; alguns com bocas escancaradas; outros tão irreverentes quanto gralhas num telhado; todos amontoados de forma tão variada quanto a bolsa ou a posição permitiam; este de peles e tecido fino; aquele em farrapos, com os pés protegidos do gelo apenas por um trapo de cozinha. A maioria das pessoas parecia estar em frente de uma barraca ou tablado, algo semelhante a um teatro de fantoches, onde se realizava uma espécie de representação. Um negro sacudia os braços e vociferava. Havia uma mulher de branco deitada numa cama. Embora o palco fosse tosco e os atores corressem para cima e para baixo por uns degraus e às vezes tropeçassem, a multidão batia os pés e assoviava ou, quando estava entediada, jogava um pedaço de casca de laranja no gelo que um cão lutava para pegar, ainda assim a surpreendente e sinuosa melodia das palavras excitava Orlando como se fosse música. Falada com extrema rapidez e audaciosa agilidade do idioma, o que lhe recordava os marinheiros cantando nos jardins das cervejarias de Wapping, as palavras, mesmo sem sentido, eram como vinho para ele. Mas, de vez em quando, uma frase solitária chegava até ele pelo gelo, como se arrancada das profundezas de seu coração. O delírio do mouro parecia o seu próprio delírio, e, quando o mouro sufocou a mulher na cama, era Sasha que ele matava com suas próprias mãos. 

Finalmente a peça terminou. Tudo tinha escurecido. As lágrimas rolavam de sua face. Olhando para o céu não viu nada mais do que escuridão também. Ruína e morte, pensou, cobrem tudo. A vida do homem termina no túmulo. Vermes nos devoram. 

Penso que deveria haver agora um grande eclipse. 
De sol e lua, e que o assustado globo 
Bocejaria — 

Enquanto dizia isso, uma estrela de certa palidez apareceu em sua memória. A noite estava escura; escura como breu; mas era por uma noite destas que tinham esperado; era numa noite como esta que tinham planejado fugir. Ele se lembrava de tudo. A hora chegara. Numa explosão de paixão arrebatou Sasha e murmurou em seu ouvido “Jour de ma vie!”. [8] Era a senha deles. À meia-noite se encontrariam numa estalagem perto de Blackfriars. Os cavalos esperariam lá. Tudo estava pronto para a fuga. Assim partiram, ela para a sua tenda, e ele para a dele. Faltava ainda uma hora. 

Muito antes da meia-noite, Orlando já estava esperando. A noite era de um tal negrume de tinta que um homem podia atacar outro sem ser visto, o que, afinal, era melhor, mas era também de um silêncio tão solene que a pata de um cavalo ou o choro de uma criança podiam ser ouvidos a uma distância de meia milha. Por vezes Orlando, medindo com os passos o pequeno pátio, refreava seu coração ao som de algum passo firme de cavalo nas pedras ou ao farfalhar de um vestido de mulher. Mas o passante era apenas algum mercador, que voltava para casa mais tarde; ou alguma mulher do bairro, cuja tarefa não era tão inocente. Eles passavam, e a rua ficava mais silenciosa do que antes. Então, aquelas luzes que ardiam no andar térreo dos pequenos quarteirões amontoados onde viviam os pobres da cidade moviam-se para os quartos de dormir e depois, uma a uma, se extinguiam. Os lampiões de rua eram poucos nestes subúrbios; e a negligência dos guardas-noturnos fazia com que se apagassem muito antes da madrugada. A escuridão, então, se tornava ainda mais profunda. Orlando olhou para o pavio de sua lanterna, examinou a silha da sela; preparou as pistolas; verificou os coldres; fez isso pelo menos uma dúzia de vezes até não encontrar mais nada que necessitasse de sua atenção. Embora ainda faltassem uns vinte minutos para a meia-noite, ela não conseguia entrar na sala da estalagem, onde a estalajadeira ainda estava servindo vinho seco e um tipo barato de vinho das Canárias para alguns marinheiros que estavam sentados cantarolando suas cantilenas e contando histórias de Drake, Hawkins e Grenville até que tombavam dos bancos e rolavam adormecidos na areia do chão. A escuridão era mais complacente para com o seu coração dilatado e violento. Ele ouvia cada passada; especulava cada som. Cada grito de um bêbado ou cada gemido de um pobre infeliz deitado na palha, ou com alguma outra angústia, cortava-lhe imediatamente o coração, como se proclamasse maus presságios à sua aventura. Contudo, ele não temia por Sasha. A coragem dela tornaria a aventura insignificante. Chegaria sozinha, de capa e de calças e de botas, como um homem. Tão leve era o seu passo que não poderia ser ouvido mesmo neste silêncio. 

Assim ele esperava na escuridão. De repente, um golpe macio porém pesado atingiu-lhe um lado do rosto. Ele estava tão tenso com a expectativa que pulou e levou a mão à espada. O golpe se repetiu uma dúzia de vezes, na testa e na face. A geada durara tanto tempo que ele levou um minuto para descobrir que eram gotas de chuva caindo; os golpes eram pancadas de chuva. A princípio caíam vagarosamente, deliberadamente, uma a uma. Mas em seguida as seis gotas se tornaram sessenta; depois seiscentas, e logo correram juntas em um forte aguaceiro. Era como se o próprio céu firme e maciço se derramasse todo em uma exuberante cascata. No espaço de cinco minutos Orlando estava encharcado até os ossos. 

Colocando os cavalos apressadamente sob o abrigo, procurou refúgio sob o portal, de onde podia ainda observar o pátio. O ar estava agora mais denso do que nunca, e do aguaceiro se elevavam um vapor e um zumbido tais que abafavam qualquer passo de homem ou de animal. As estradas, crivadas de grandes buracos, deviam estar sob a água e talvez intransitáveis. Mas qual o efeito que isto poderia ter sobre sua fuga, ele pouco pensava. Todos os seus sentidos estavam concentrados olhando o caminho de pedras, brilhando na luz da lanterna para a chegada de Sasha. Às vezes, na escuridão, parecia-lhe vê-la envolta em rajadas de chuva. Mas o fantasma desaparecia. De repente, com um som terrível e agourento, um som cheio de horror e de alarme que fez crescer toda a angústia na alma de Orlando, São Paulo bateu a primeira badalada da meia-noite. Bateu quatro vezes mais, implacavelmente. Com a superstição de um amante, Orlando imaginou que ela chegaria na sexta badalada. Mas a sexta badalada ecoou e a sétima veio e a oitava, e para a sua mente apreensiva elas pareciam notas, primeiro anunciando e depois proclamando morte e desgraça. Quando a décima segunda badalada soou ele soube que seu destino estava selado. Era inútil que seu lado racional raciocinasse; ela podia estar atrasada; podia estar detida; podia ter errado o caminho. O coração apaixonado e sensível de Orlando sabia a verdade. Outros relógios soaram, disputando um com o outro. O mundo inteiro parecia ressoar com a notícia da falsidade dela e da humilhação dele. As antigas suspeitas, que trabalhavam sub-repticiamente nele, eclodiram do esconderijo abertamente. Ele foi picado por uma multidão de cobras, cada qual mais venenosa que a outra. Permaneceu no portal sob a tremenda chuva, imóvel. Com o passar dos minutos, arqueou um pouco os joelhos. O aguaceiro continuava. No meio dele parecia que canhões troavam. Grandes barulhos, como os de carvalhos sendo despedaçados e derrubados, podiam ser ouvidos. Havia também gritos selvagens e terríveis gemidos inumanos. Mas Orlando permanecia lá, imóvel, até que o relógio de São Paulo bateu duas horas, e então, gritando com uma terrível ironia, mostrando todos os dentes, “Jour de ma vie!”, arremessou a lanterna no chão, montou seu cavalo e galopou sem saber para onde. 

Algum instinto cego, pois ele não estava raciocinando, deve tê-lo levado a tomar a margem do rio em direção ao mar. Pois quando a aurora nasceu, o que aconteceu com rapidez incomum, o céu ficando amarelo-pálido e a chuva quase cessando, ele se encontrou às margens do Tâmisa, além de Wapping. Seus olhos se depararam com uma visão de natureza extraordinária. Onde por três meses ou mais tinha havido gelo sólido, de tal espessura que parecia permanente como pedra, e uma alegre cidade tinha sido erguida na sua superfície, era agora uma corrente de turbulentas águas amarelas. O rio ganhara a sua liberdade naquela noite. Era como se um jorro de enxofre (o que muitos filósofos se inclinavam a ver) tivesse surgido de regiões vulcânicas inferiores e rompido o gelo em pedaços com tal veemência que varria e separava furiosamente os enormes e maciços fragmentos. A simples visão da água era suficiente para estontear alguém. Tudo era tumulto e confusão. O rio estava coberto de blocos de gelo. Alguns eram tão grandes quanto campos gramados e tão altos quanto casas; outros não maiores do que o chapéu de um homem, porém fantasticamente retorcidos. Ora descia um conjunto inteiro de blocos de gelo, afundando tudo o que encontrava no caminho. Ora, girando em redemoinho como uma serpente torturada, o rio parecia se arremessar entre os fragmentos e sacudi-los de uma margem para outra de forma que se podia ouvi-los se esfacelando contra os cais e os pilares. Porém o que era mais terrível e inspirava mais horror era a visão dos seres humanos que tinham sido apanhados de surpresa durante a noite e agora caminhavam na maior agonia por aquelas ilhas balouçantes e precárias. Quer pulassem na correnteza, quer permanecessem no gelo, seu destino estava decidido. Às vezes um bando dessas pobres criaturas descia junto, umas de joelhos, outras amamentando seus filhos. Um velho parecia ler em voz alta um livro sagrado. Outras vezes — e seu destino talvez fosse o mais terrível — um infeliz solitário carregava sua pequena moradia. Ao serem arrastados para o mar, alguns podiam ser ouvidos gritando em vão por ajuda, fazendo promessas terríveis de se corrigir, confessando seus pecados e prometendo altares e bens se Deus ouvisse suas preces. Outros estavam tão tontos de terror que se sentavam imóveis e em silêncio olhando firmemente para a frente. Uma multidão de jovens barqueiros ou estafetas, a julgar pelos uniformes, rugia e gritava as mais obscenas canções das tavernas como um desafio, e eram jogados contra uma árvore e afundavam com as blasfêmias nos lábios. Um velho nobre — como denunciavam seu traje de peles e sua corrente de ouro — submergiu não longe do lugar onde Orlando estava, clamando vingança contra os irlandeses rebeldes que — gritava como seu último alento — tinham tramado esta coisa diabólica. Muitos pereceram agarrando contra o peito algum jarro de prata ou qualquer outro tesouro. E pelo menos um grupo de pobres-diabos se afogou por causa de sua própria cupidez, atirando-se da margem na correnteza para não deixar escapar um cálice de ouro ou para não assistir ao desaparecimento de alguma roupa de peles diante de seus olhos. Pois mobílias, valores, objetos de todos os tipos eram arrastados para longe nos blocos de gelo. Entre outros espetáculos estranhos via-se uma gata amamentando seu filhote; uma mesa posta suntuosamente para uma ceia de vinte; um casal na cama; juntamente com um extraordinário número de utensílios de cozinha. 

Entorpecido e perplexo, Orlando não pôde fazer nada durante algum tempo senão observar a apavorante corrida das águas que se desenrolava diante dele. Finalmente, parecendo voltar a si, esporeou o seu cavalo e galopou firme ao longo da margem do rio, em direção ao mar. Dobrando uma curva do rio chegou defronte daquele lugar onde há dois dias os navios dos embaixadores pareciam imobilizados pelo congelamento. Apressadamente começou a contá-los todos; o francês, o espanhol, o austríaco, o turco. Todos flutuavam ainda, embora o francês estivesse com suas amarras quebradas e o turco, com uma grande fenda na lateral, fizesse água rapidamente. Mas o navio russo não era visto em parte alguma. Por um momento Orlando pensou que tivesse afundado. Mas, erguendo-se nos estribos e sombreando os olhos que tinham a visão de uma águia, conseguiu distinguir a forma de um navio no horizonte. As águias negras flutuavam no mastro principal. O navio da embaixada moscovita fazia-se ao largo. 

Atirando-se do cavalo ele pretendeu, em sua raiva, enfrentar a correnteza. Com água até os joelhos, lançou à mulher infiel todos os insultos que podiam ser ditos ao seu sexo. Falsa, inconstante, volúvel, ele a chamou; demônio, adúltera, traidora; e as águas revoltas receberam suas palavras e lançaram a seus pés uma vasilha quebrada e um pedaço de palha.



continua pag 32...

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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.

No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.

A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).

As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.



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Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando... 
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara

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[8] Luz da minha vida!


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Café Literário
- "Orlando", de Virginia Woolf




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