terça-feira, 20 de outubro de 2020

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(b) - Uma vez ou outra...

O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





PRIMEIRA PARTE


IV - Desastrosas consequências de um requerimento


continuando...

 
Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker, aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos - uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples distração do distinto jornalista e famoso advogado. Um homem honesto não ia fazer aquilo! E na segunda, seria também? E na terceira?

Não era possível tanta distração. Adquiriu a certeza da trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez e o passe foi posto em prática, Vicente acendeu o charuto e observou com a maior naturalidade deste mundo:

- Os senhores sabem que há agora, na Europa, um novo sistema de jogar o poker?

- Qual é? perguntou alguém.

- A diferença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos parceiros, somente.

Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar, e a ganhar, despediu-se à meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns comentários sobre a partida e não voltou mais.

Conforme o seu velho hábito, Coleoni lia de manhã os jornais, com o vagar e a lentidão de homem pouco habituado à leitura, quando se lhe deparou o requerimento do seu compadre do Arsenal. Ele não compreendeu bem o requerimento, mas os jornais faziam tanta troça, caíam tão a fundo sobre a cousa, que imaginou o seu antigo benfeitor enleado numa meada criminosa, tendo praticado, por inadvertência, alguma falta grave.

Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda tinha, mas daí quem sabe? Na última vez que o visitou ele não veio com aqueles modos estranhos? Podia ser uma pilhéria... Apesar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nele não só a gratidão de camponês que recebeu um grande benefício, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua qualidade de funcionário e de sábio.

Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquele sagrado respeito dos camponeses pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apesar dos bastos anos de Brasil, ainda não sabia juntar o saber aos títulos, tinha em grande consideração a erudição do compadre.

Não é, pois, de estranhar que ele visse com mágoa o nome de Quaresma envolvido em fatos que os jornais reprovavam. Leu de novo o requerimento, mas não entendeu o que ele queria dizer. Chamou a filha.

- Olga!

Ele pronunciava o nome da filha quase sem sotaque; mas, quando falava português, punha nas palavras uma rouquidão singular, e salpicava as frases de exclamações e pequenas expressões italianas.

- Olga, que quer dizer isto? Non capisco...

A moça sentou-se a uma cadeira próxima e leu no jornal o requerimento e os comentários.

- Che! Então?

- O padrinho quer substituir o português pela língua tupi, entende o senhor?

- Como?

- Hoje, nós não falamos português? Pois bem: ele quer que daqui em diante falemos tupi.

- Tutti?

- Todos os brasileiros, todos.

- Ma che cousa! Não é possível?

- Pode ser. Os tchecos têm uma língua própria, e foram obrigados a falar alemão, depois de conquistados pelos austríacos; os lorenos, franceses...

- Per la madonna! Alemão é língua, agora esse acujelê, ecco!

- Acujelê é da África, papai; tupi é daqui.

- Per Bacco! É o mesmo... Está doido!

- Mas não há loucura alguma, papai.

- Como? Então é cousa de um homem bene?

- De juízo, talvez não seja; mas de doido, também não.

- Non capisco.

- É uma ideia, meu pai, é um plano, talvez à primeira vista absurdo, fora dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...

Por mais que quisesse, ela não podia julgar o ato do padrinho sob o critério de seu pai. Neste falava o bom senso e nela o amor às grandes cousas, aos arrojos e cometidos ousados. Lembrou-se de que Quaresma lhe falara em emancipação; e se houve no fundo de si um sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do major, não foi decerto o de reprovação ou lástima; foi de piedade simpática por ver mal compreendido o ato daquele homem que ela conhecia há tantos anos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.

- Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.

E ele tinha razão. A sentença do arquivista foi vencedora nas discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse doido foi tomando foros de certeza. Em princípio, o subsecretário suportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o supunham insciente no tupi, irritou-se, encheu-se de uma raiva surda, que se continha dificilmente. Como eram cegos! Ele que há trinta anos estudava o Brasil minuciosamente; ele que, em virtude desses estudos, fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a língua brasileira, a única que o era - que suspeita miserável!

Que o julgassem doido - vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de suas afirmações, não! E ele pensava, procurava meios de se reabilitar, caía em distrações, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa quotidiana. Vivia dividido em dous: uma parte nas obrigações de todo o dia, e a outra, na preocupação de provar que sabia o tupi.

O secretário veio a faltar um dia e o major lhe ficou fazendo as vezes. O expediente fora grande e ele mesmo redigira e copiara uma parte. Tinha começado a passar a limpo um ofício sobre cousas de Mato Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta-Porã, quando o Carmo disse lá do fundo da sala, com acento escarninho:

- Homero, isto de saber é uma cousa, dizer é outra.

Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em tupi que se encontravam na minuta, fosse pela alusão do funcionário Carmo, o certo é que ele insensivelmente foi traduzindo a peça oficial para o idioma indígena.

Ao acabar, deu com a distração, mas logo vieram outros empregados com o trabalho que fizeram, para que ele examinasse. Novas preocupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o ofício em tupi seguiu com os companheiros. O diretor não reparou, assinou e o tupinambá foi dar ao ministério. Não se imagina o reboliço que tal cousa foi causar lá. Que língua era? Consultou-se o Doutor Rocha, o homem mais hábil da secretaria, a respeito do assunto. O funcionário limpou o pince-nez, agarrou o papel, voltou-o de trás para diante, pô-lo de pernas para o ar e concluiu que era grego, por causa do “yy”.

O Doutor Rocha tinha na secretaria a fama de sábio, porque era bacharel em direito e não dizia cousa alguma.

- Mas, indagou o chefe, oficialmente as autoridades se podem comunicar em línguas estrangeiras? Creio que há um aviso de 84... Veja, senhor Doutor Rocha...

Consultaram-se todos os regulamentos e repertórios de legislação, andou-se de mesa em mesa pedindo auxílio à memória de cada um e nada se encontrara a respeito. Enfim, o Doutor Rocha, após três dias de meditação, foi ao chefe e disse com ênfase e segurança:

- O aviso de 84 trata de ortografia.

O diretor olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando as suas qualidades de empregado zeloso, inteligente e... assíduo. Foi informado de que a legislação era omissa no tocante à língua em que deviam ser escritos os documentos oficiais; entretanto não parecia regular usar uma que não fosse a do país.

O ministro, tendo em vista esta informação e várias outras consultas, devolveu o ofício e censurou o Arsenal.

Que manhã foi essa no Arsenal! Os tímpanos soavam furiosamente, os contínuos andavam numa dobadoura terrível e a toda hora perguntavam pelo secretário que tardava em chegar. Censurado! monologava o diretor. Ia-se por água abaixo o seu generalato. Viver tantos anos a sonhar com aquelas estrelas e elas se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um escriturário!

Ainda se a situação mudasse... Mas qual!

O secretário chegou, foi ao gabinete do diretor. Inteirado do motivo, examinou o ofício e pela letra conheceu que fora Quaresma quem o escrevera. Mande-o cá, disse o coronel. O major encaminhouse pensando nuns versos tupis que lera de manhã.

- Então o senhor leva a divertir-se comigo, não é?

- Como? fez Quaresma espantado.

- Quem escreveu isso?

O major nem quis examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da distração e confessou com firmeza:

- Fui eu.

- Então confessa?

- Pois não. Mas Vossa Excelência não sabe...

- Não sabe! que diz?

O diretor levantou-se da cadeira, com os lábios brancos e a mão levantada à altura da cabeça. Tinha sido ofendido três vezes: na sua honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de ensino que frequentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro estabelecimento científico do mundo. Além disso escrevera no Pritaneu, a revista da escola, um conto - “A Saudade” - produção muito elogiada pelos colegas. Dessa forma, tendo em todos os exames plenamente e distinção, uma dupla coroa de sábio e artista cingia-lhe a fronte. Tantos títulos valiosos e raros de se encontrarem reunidos, mesmo em Descartes ou Shakespeare, transformavam aquele - não sabe - de um amanuense em ofensa profunda, em injúria.

- Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor porventura o curso de Benjamim Constant? Sabe o senhor Matemática, Astronomia, Física, Química, Sociologia e Moral? Como ousa então? Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um francesinho aí, pode ombrear-se com quem tirou grau 9 em Cálculo, 10 em Mecânica, 8 em Astronomia, 10 em Hidráulica, 9 em Descritiva? Então?!

E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para Quaresma que já se julgava fuzilado.

- Mas, senhor coronel...

- Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso, até segunda ordem.

Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fora seu propósito duvidar da sabedoria do seu diretor. Ele não tinha nenhuma pretensão a sábio e pronunciara a frase para começar a desculpa; mas, quando viu aquela enxurrada de saber, de títulos, a sobrenadar em águas tão furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as ideias e nada mais soube nem pôde dizer.

Saiu abatido, como um criminoso, do gabinete do coronel, que não deixava de olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Saiu afinal. Chegando à sala do trabalho nada disse; pegou no chapéu, na bengala e atirou-se pela porta afora, cambaleando como um bêbado. Deu umas voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo Coração dos Outros.

- Cedo, hein major?

- É verdade.

E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo avançou algumas palavras:

- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.

- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.

- É bom pensar, sonhar consola.

- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens...

E os dous separaram-se. O major tomou o bonde e Ricardo desceu descuidado a Rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças dobradas nas canelas, sobraçando o violão na sua armadura de camurça.





continua página 28...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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