terça-feira, 4 de agosto de 2020

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(a) - Reformas Radicais

O triste fim de Policarpo Quaresma 


Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 




PRIMEIRA PARTE


III - Reformas Radicais


A Notícia do Genelício 

- Então quando se casa, Dona Ismênia? 

- Em Março. Cavalcanti já está formado e... 

Afinal a filha do general pôde responder com segurança à pergunta que se lhe vinha fazendo há quase cinco anos. O noivo finalmente encontrara o fim do curso de dentista e marcara o casamento para daí a três meses. A alegria foi grande na família; e, como em tal caso, uma alegria não podia passar sem baile, uma festa foi anunciada para o sábado que se seguia ao pedido da pragmática. 

As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais contentes que a irmã nubente. Parecia que ela lhes ia deixar o caminho desembaraçado, e fora a irmã quem até ali tinha impedido que se casassem. 

Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia meio casada. Esse sentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma ideia, uma pura ideia. 

Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. 

Desde menina, ouvia a mamãe dizer: 
“Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”... ou senão “Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar”... 

A todo instante e a toda a hora, lá vinha aquele - “porque quando você se casar”... - e a menina foi-se convencendo de que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa cousa: casar. 

De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. “Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se; não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande cousa”; ou então: “A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!”... 

A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéias, o nosso próprio direito à felicidade, foram parecendo ninharias para aquele cerebrozinho; e, de tal forma casar-se se lhe representou cousa importante, uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, “tia”, parecia-lhe um crime, uma vergonha. 

De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer cousa profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou para um grande afeto, na sua inteligência a ideia de “casar-se” incrustou-se teimosamente como uma obsessão. 

Ela não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o narizinho malfeito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e a sua aparência de bondade passiva, de indolência de corpo, de ideia e de sentidos - era até um bom tipo das meninas a que os namorados chamam - “bonitinhas”. O seu traço de beleza dominante, porém, eram os seus cabelos: uns bastos cabelos castanhos, com tons de ouro, sedoso até ao olhar. 

Aos dezenove anos arranjou namoro com o Cavalcanti, e à fraqueza de sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o futuro dentista a conquistou.

O pai fez má cara. Ele andava sempre a par dos namoros das filhas: “Diga-me sempre, Maricota - dizia ele - quem são. Olho vivo!... É melhor prevenir que curar... Pode ser um valdevinos e...” 

Sabendo que o pretendente à Ismênia era um dentista, não gostou muito. Que é um dentista? perguntava ele de si para si. Um cidadão semi-formado, uma espécie de barbeiro. Preferia um oficial, tinha montepio e meio soldo; mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e ele acedeu. 

Começou então Cavalcanti a frequentar a casa na qualidade de noivo “paisano”, isto é, que não pediu, não é ainda “oficial”. 

No fim do primeiro ano, tendo notícia das dificuldades com que o futuro genro lutava para acabar os estudos, o general foi generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros e outras cousas. Não era raro que após uma longa conversa com a filha, Dona Maricota viesse ao marido e dissesse: “Chico, arranja-me vinte mil-réis que o Cavalcanti precisa comprar uma Anatomia.” 

O general era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretensão marcial, não havia no seu caráter a mínima falha. Demais, aquela necessidade de casar as filhas ainda o fazia melhor quando se tratava dos interesses delas. 

Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para evitar despesas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo o dia; e assim o namoro foi correndo até ali. 

Enfim - dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos - a cousa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos descontar esta letra. 

A satisfação resignada do general era porém falsa; ao contrário: ele estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro momento azado, lá dizia ele: 

- É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho que casar uma filha! 

Ao que Castro interrogava: 

- Qual delas? 

- A Ismênia, a segunda, respondia Albernaz e logo acrescentava: tu é que és feliz: só tiveste filhos. 

- Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malícia, aprendi a receita. Por que não fizeste o mesmo? 

Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazéns, às lojas de louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa, porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundância e riqueza que traduzisse o seu grande contentamento. 

Na manhã do dia da festa comemorativa do pedido, Dona Maricota amanheceu cantando. Era raro que o fizesse; mas nos dias de grande alegria, ela cantarolava uma velha ária, uma cousa do seu tempo de moça e as filhas que sentiam nisto sinal certo de alegria corriam a ela, pedindo-lhe isto ou aquilo. 

Muito ativa, muito diligente, não havia dona-de-casa mais econômica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas. Logo que despertou, pôs tudo em atividade, as criadas e as filhas. Vivi e Quinota foram para os doces; Lalá e Zizi auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos, enquanto ela e Ismênia iam arrumar a mesa, dispô-la com muito gosto e esplendor. O móvel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas do dia. A alegria de Dona Maricota era grande; ela não compreendia que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples fato de ter descontado uma letra, como ela dizia. Vinha mais profundamente dos seus sentimentos maternos e de família. 

Ela arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indiferente. 

- Mas, minha filha, dizia ela, até parece que não é você quem se vai casar! Que cara! Você parece aí uma “mosca-morta”. 

- Mamãe, que quer que eu faça? 

- Não é bonito rir-se muito, andar aí como uma sirigaita, mas também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.

Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas logo lhe tornava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em cair naquela doentia lassidão que lhe era própria. 

Veio muita gente. Além das moças e as respeitáveis mães, acudiram ao convite do general o Contra-Almirante Caldas, o Doutor Florêncio, engenheiro das Águas, o Major honorário Inocêncio Bustamante, o Senhor Bastos, guarda-livros, ainda parente de Dona Maricota, e outras pessoas importantes. Ricardo não fora convidado porque o general temia a opinião pública sobre a presença dele em festa séria; Quaresma o fora, mas não viera; e Cavalcanti jantara com os futuros sogros. Às seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismênia, cumprimentando-a, não sem um pouco de inveja no olhar. 

Irene, uma alourada e alta, aconselhava: 

- Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque. 

Tratava-se do enxoval. Todas elas, embora solteiras, davam conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e as que podiam ser dispensadas. Estavam a par. 

A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos: 

- Eu, ontem, vi na Rua da Constituição um dormitório de casal, muito bonito, você por que não vai ver, Ismênia? Parece barato. 

A Ismênia era a menos entusiasmada, quase não respondia às perguntas; e, se as respondia, era por monossílabos. Houve um momento em que sorriu quase com alegria e abandono. Estefânia, a doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma confidência. Quando deixou de segredar-lhe assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto: 

- Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei... 

Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com parcimônia: qual o quê! 

Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma parte dos velhos rodeavam Cavalcanti, muito solene, dentro de um grande fraque preto. 

- Então, Doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um cumprimento. 

- É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os embargos - fui de um heroísmo!... 

- Conhece o Chavantes? perguntava um outro. 

- Conheço. Um crônico, um pândego... 

- Foi seu colega? 

- Foi, isto é, ele é do curso de Medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano. 

Cavalcanti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro. 

- É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no Deve e Haver. Hoje, torço a orelha e não sai sangue. 

- Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente Cavalcanti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e caro, que exige cadáveres, aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal... 

- Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns. Digo-lhe o que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando! 

- Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcanti. 

- Em engenharia. Está no Maranhão, na Estrada de Caxias. 

- Boa carreira. 

Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural. 

Para aquela gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma cousa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dele atualmente as cousas que porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da deles e fora ungido de não sei que cousa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina. 

Para o lado de Cavalcanti, que se achava na sala de visitas, vieram os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando, cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o Doutor Florêncio e o Capitão de Bombeiros Segismundo. 

Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era interessantíssimo. Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe davam comissões de embarque. É curiosa essa cousa das administrações militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos. 

Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado “Lima Barros”. Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha, teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio. Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal “Lima Barros” fizesse parte da esquadrilha do Alto-Uruguai. Consultou o comandante. 

- Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para a flotilha do Rio Grande. 

Ei-lo a fazer malas para o Alto-Uruguai, onde chegou enfim, depois de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal “Lima Barros”. Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia lhe veio na intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e submetido a conselho. 

O “Lima Barros” tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai. 

Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no “encostado”, como se diz na gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referisse a promoções de oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação de sua reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o infinito rosário de repartições e eram sempre indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar. 

Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos, escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos e pelos olhos. 

Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era renitente, teimoso, mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver a dos outros. 

Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser tenente honorário e também da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major, visto que dous galões mais outros dous fazem quatro - o que quer dizer: major. 

Conhecedor dos estudos meticulosos do almirante, Bustamante fez a sua consulta. 

- Assim de pronto, não sei. Não é a minha especialidade o Exército, mas vou ver. Isto também anda tão atrapalhado!



continua página 19...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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Leia também:

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte I - A Lição de Violão
Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(a) - Reformas Radicais
Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(b) - Reformas Radicais
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