sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(b) - Reformas Radicais

O triste fim de Policarpo Quaresma 


Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 




PRIMEIRA PARTE


III - Reformas Radicais


continuando... 


Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos, que lhe davam um ar de “comodoro” ou de chacareiro português, pois era forte nele o tipo lusitano.

- Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta disciplina!

- Não há mais gente que preste, disse Bustamante.

Segismundo por aí aventurou também a sua opinião, dizendo:

- Eu não sou militar, mas...

- Como não é militar? fez Albernaz com ímpeto. Os senhores é que são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha Caldas?

- Decerto, decerto, fez o almirante cofiando os favoritos.

- Como ia dizendo, continuou Segismundo, apesar de não ser militar, eu me animo a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde está um Porto Alegre, um Caxias?

- Não há mais, meu caro, confirmou com voz tênue o Doutor Florêncio.

- Não sei por quê, pois tudo hoje não vai pela ciência?

Fora Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e retrucou-lhe com certo calor:

- Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de “xx” e “yy” em Curupaiti, hein, Caldas? hein, Inocêncio?

O Doutor Florêncio era o único paisano da roda. Engenheiro e empregado público, os anos e o sossego da vida lhe tinham feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sair da escola. Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um engenheiro. Morando perto de Albernaz, era raro que não viesse toda a tarde jogar o solo com o general. O Doutor Florêncio perguntou:

- O senhor assistiu, não foi, general?

O general não se deteve, não se atrapalhou, não gaguejou e disse com a máxima naturalidade:

- Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vésperas. Mas tive muitos amigos lá: o Camisão, o Venâncio...

Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janela da sala onde estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava circunscrito aos fundos dos quintais das casas vizinhas com as suas cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes vistas sem fim. O sol já tinha desaparecido do horizonte e as tênues luzes dos bicos de gás e dos lampiões familiares começavam a acender-se por detrás das vidraças.

Bustamante quebrou o silêncio:

- Este país não vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento, pedindo honras de tenente-coronel, está no ministério há seis meses!

- Uma desordem, exclamaram todos.

Era noite. Dona Maricota chegou até onde eles estavam, muito ativa, muito diligente e com o rosto aberto de alegria.

- Estão rezando? E logo ajuntou: dão licença que diga uma cousa ao Chico, sim?

Albernaz saiu fora da roda dos amigos e foi até a um canto da sala, onde a mulher lhe disse alguma cousa em voz baixa. Ouviu a mulher, depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes termos:

- Se não dançam é porque não querem. Estou pegando alguém?

Dona Maricota aproximou-se dos amigos do marido e explicou:

- Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguém tira par, ninguém toca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!

- Bem; eu vou lá, disse Albernaz.

Deixou os amigos e foi à sala de visitas dar começo ao baile.

- Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!

E ele mesmo em pessoa ia juntando os pares: “Não, general, já tenho par”, dizia uma moça. “Não faz mal”, retrucava ele, “dance com o Raimundinho; o outro espera.”

Depois de ter dado início ao baile, veio para a roda dos amigos, suando, mas contente.

- Isto de família! Qual! A gente até parece bobo, dizia. Você é que fez bem, Caldas; não se quis casar!

- Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?

- Vamos jogar o solo, convidou Albernaz. - Somos cinco, como há de ser? observou Florêncio.

- Não, eu não jogo, disse Bustamante.

- Então jogamos os quatro de garrancho? lembrou Albernaz.

As cartas vieram e também uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florêncio dar. Começaram. Albernaz tinha um ar atento quando jogava: a cabeça lhe caía sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande expressão de reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava com a serenidade de um lorde-almirante numa partida de whist. Segismundo jogava com todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca e a cabeça do lado para fugir à fumaça. Bustamante fora à sala ver as danças.

Tinham começado a partida, quando Dona Quinota, uma das filhas do general, atravessou a sala e foi beber água. Caldas, coçando um dos favoritos, perguntou à moça:

- Então, Dona Quinota, quedê o Genelício?

A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muxoxo e respondeu com falso mau humor:

- Ué! Sei lá! Ando atrás dele?

- Não precisa zangar-se, Dona Quinota; é uma simples pergunta, advertiu Caldas.

O general, que examinava atentamente as cartas recebidas, interrompeu a conversa com voz grave:

- Eu passo.

Dona Quinota retirou-se. Este Genelício era o seu namorado. Parente ainda de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na família. A sua candidatura era favorecida por todos. Dona Maricota e o marido enchiam-no de festas. Empregado do Tesouro, já no meio da carreira, moço de menos de trinta anos, ameaçava ter um grande futuro. Não havia ninguém mais bajulador e submisso do que ele. Nenhum pudor, nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo o incenso que podia. Quando saía, remancheava, lavava três ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o diretor na porta. Acompanhava-o, conversava com ele sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquele colega, e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como intérprete dos companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de nascimento, era um soneto que começava sempre por - “Salve” - e acabava também por - “Salve! Três vezes Salve!”

O modelo era sempre o mesmo; ele só mudava o nome do ministro e punha a data. No dia seguinte, os jornais falavam do seu nome, e publicavam o soneto.

Em quatro anos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.

Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros processos. No intuito de anunciar aos ministros e diretores que tinha uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais longos artigos sobre contabilidade pública. Eram meras compilações de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de autores franceses ou portugueses.

Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande conta o seu saber e ele vivia na seção cercado do respeito de um gênio, um gênio do papelório e das informações. Acresce que Genelício juntava à sua segura posição administrativa um curso de direito a acabar; e tantos títulos juntos não podiam deixar de impressionar favoravelmente às preocupações casamenteiras do casal Albernaz.

Fora da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre físico fazia cômico, mas que a convicção do alto auxílio que prestava ao Estado mantinha e sustentava. Um empregado modelo!

O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das “mãos” fazia-se um breve comentário ou outro, e no começo ouviam-se unicamente as “falas” sacramentais do jogo: “solo, bolo, melhoro, passo”. Feitas elas, jogava-se em silêncio; da sala, porém, vinha o ruído festivo das danças e das conversas.

- Olhem quem está aí!

- O Genelício, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?

Deixou o chapéu e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos. Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez azulado, todo ele traía a profissão, os seus gostos e hábitos.

Era um escriturário.

- Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negócios.

- Vão bem? perguntou Florêncio.

- Quase garantido. O ministro prometeu... Não há nada, estou bem “cunhado”!

- Estimo muito, disse o general.

- Obrigado. Sabe de uma cousa, general?

- O que é? - O Quaresma está doido.

- Mas... o quê? Quem foi que te disse?

- Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde...

- Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido.

- Mas não é só, general, acrescentou Genelício. Fez um ofício em tupi e mandou ao ministro.

- É o que eu dizia, fez Albernaz. - Quem é? perguntou Florêncio.

- Aquele vizinho, empregado do Arsenal; não conhece?

- Um baixo, de pince-nez?

- Este mesmo, confirmou Caldas.

- Nem se podia esperar outra cousa, disse o Doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura...

- Pra que ele lia tanto? indagou Caldas.

- Telha de menos, disse Florêncio.

Genelício atalhou com autoridade:

- Ele não era formado, para que meter-se em livros?

- É verdade, fez Florêncio.

- Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou Segismundo.

- Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título “acadêmico” ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?

- Decerto, disse Albernaz.

- Decerto, fez Caldas. - Decerto, disse Segismundo.

Calaram-se um instante, e as atenções convergiram para o jogo.

- Já saíram todos os trunfos?

- Contasse, meu amigo.

Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silêncio. Cavalcanti ia recitar. Atravessou a sala triunfantemente, com um largo sorriso na face e foi postar-se ao lado do piano. Zizi acompanhava. Tossiu e, com a sua voz metálica, apurando muito os finais em “s”, começou:

A vida é uma comédia sem sentido,
Uma história de sangue e de poeira
Um deserto sem luz...


E o piano gemia.





continua página 22...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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Leia também:

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