O triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
A João Luiz Ferreira
Engenheiro Civil
Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire.
Renan, Marc-Auréle
PRIMEIRA PARTE
V - O Bibelot
continuando...
Na porta já havia alguns visitantes à espera do bonde. Como não estivesse o veículo no ponto, foram indo ao longo da fachada do manicômio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ela:
- Que tem, minha velha?
A pobre mulher deitou sobre ele um demorado olhar, úmido e doce, cheio de uma irremediável tristeza e respondeu:
- Ah, meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!
E continuou a chorar. Coleoni começou a comover-se; a filha olhou-a com interesse e perguntou no fim de um instante:
- Morreu?
- Antes fosse, sinhazinha.
E por entre lágrimas e soluços contou que o filho não a conhecia mais, não lhe respondia às perguntas; era como um estranho. Enxugou as lágrimas e concluiu:
- Foi “cousa-feita”.
Os dous afastaram-se tristes, levando n’alma um pouco daquela humilde dor.
O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Açúcar erguia-se negro, hirto, solene, das ondas espumejantes, e como que punha uma sombra no dia muito claro.
No Instituto dos Cegos, tocavam violino: e a voz plangente e demorada do instrumento parecia sair daquelas cousas todas, da sua tristeza e da sua solenidade.
O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no Largo da Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanso, com as suas lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos ressoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto, faltam-lhe as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do negociante brincam em velocípedes, atiram bolas e ainda mais se sente a diferença da cidade no dia anterior.
Não havia o hábito de procurar os arrabaldes pitorescos e só encontravam, por vezes, casais que iam apressadamente a visitas, como eles agora. O Largo de São Francisco estava silencioso e a estátua, no centro daquele pequeno jardim que desapareceu, parecia um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse à casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se aproximava e as toilettes domingueiras já apareciam nas janelas. Pretos com roupas claras e grandes charutos ou cigarros, grupos de caixeiros com flores estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas; cartolas antediluvianas ao lado de vestidos pesados de cetim negro, envergados em corpos fartos de matronas sedentárias; e o domingo aparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.
Dona Adelaide não estava só. Ricardo viera visitá-la e conversavam. Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, ele contava à velha senhora o seu último triunfo:
- Não sei como há de ser, Dona Adelaide. Eu não guardo as minhas músicas, não escrevo - é um inferno!
O caso era de pôr um autor em maus lençóis. O Senhor Paysandón, de Córdova (República Argentina), autor muito conhecido na mesma cidade, lhe tinha escrito, pedindo exemplares de suas músicas e canções. Ricardo estava atrapalhado. Tinha os versos escritos, mas a música não. É verdade que as sabia de cor, porém, escrevê-las de uma hora para outra era trabalho acima de sua força.
- É o diabo! continuou ele. Não é por mim; a questão é que se perde uma ocasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.
A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A sua educação que se fizera, vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a atenção de pessoas de certa ordem. Delicada, entretanto, suportava a mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela dedicação com que ele se houve no seu drama familiar. Os pequenos serviçais e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a cargo de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligência.
Atualmente era ele o encarregado de tratar da aposentadoria do seu antigo discípulo. É um trabalho árduo, esse de liquidar uma aposentadoria, como se diz na gíria burocrática. Aposentado o sujeito, solenemente por um decreto, a cousa corre uma dezena de repartições e funcionários para ser ultimada. Nada há mais grave do que a gravidade com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o cálculo; e a cousa demora um mês, mais até, como se se tratasse de mecânica celeste. Coleoni era o procurador do major, mas não sendo entendido em cousas oficiais, entregou ao Coração dos Outros aquela parte do seu mandato.
Graças à popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a resistência da máquina burocrática e a liquidação estava anunciada para breve.
Foi isso que ele anunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da filha. Pediram, tanto ele como Dona Adelaide, notícias do amigo e do irmão.
A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou compreendendo melhor; mas o sentira profundamente com o sentimento simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura. Ricardo Coração dos Outros gostava do major, encontrara nele certo apoio moral e intelectual de que precisava. Os outros gostavam de ouvir o seu canto, apreciavam como simples diletantes; mas o major era o único que ia ao fundo da sua tentativa e compreendia o alcance patriótico de sua obra. De resto, ele agora sofria particularmente - sofria na sua glória, produto de um lento e seguido trabalho de anos. É que aparecera um crioulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já era citado ao lado do seu.
Aborrecia-se com o rival, por dous fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por causa das suas teorias.
Não é que ele tivesse ojeriza particular aos pretos. O que ele via no fato de haver um preto famoso tocar violão, era que tal coisa ia diminuir ainda mais o prestígio do instrumento. Se o seu rival tocasse piano e por isso ficasse célebre, não havia mal algum; ao contrário: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermédio do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralizava o misterioso violão que ele tanto estimava. E além disso com aquelas teorias! Ora! Quer que a modinha diga alguma cousa e tenha versos certos! Que tolice!
E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim diante dele como um obstáculo imprevisto na subida maravilhosa para a sua glória. Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar a sua superioridade indiscutível; mas como?
A réclame já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em cousas francesas...
Pensou num jornal, O Violão, em que ele desafiasse o rival e o esmagasse numa polêmica.
Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma, atualmente recolhido ao hospício, mas felizmente em via de cura. A sua alegria foi justamente grande quando soube que o amigo estava melhor.
- Não pude ir hoje, disse ele, mas irei domingo. Está mais gordo?
- Pouca cousa, disse a moça.
- Conversou bem, acrescentou Coleoni. Até ficou contente quando soube que Olga ia casar-se.
- Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns.
- Obrigada, fez ela.
- Quando é, Olga? perguntou Dona Adelaide.
- Lá para o fim do ano... Tem tempo...
E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações sobre o casamento.
E ela se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as considerações, impudentes e irritantes; queria fugir à conversa, mas voltavam ao mesmo assunto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide, mais loquaz e curiosa que comumente. Esse suplício que se repetia em todas as visitas, quase a fazia arrepender-se de ter aceitado o pedido. Por fim, achou um subterfúgio, perguntando:
- Como vai o general?
- Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Ele deve andar bem, a Ismênia é que anda triste, desolada - coitadinha!
Dona Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da filha do general. Cavalcanti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara para o interior, há três ou quatro meses, e não mandara nem uma carta nem um cartão. A menina tinha aquilo como um rompimento; e ela, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma aplicação mais séria de energia mental e física, sentia-o muito, como cousa irremediável que absorvia toda a sua atenção.
Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir. Arranjar outro era problema insolúvel, era trabalho acima de suas forças. Cousa difícil! Namorar, escrever cartinhas, fazer acenos, dançar, ir a passeios - ela não podia mais com isso. Decididamente, estava condenada a não se casar, a ser tia, a suportar durante toda a existência esse estado de solteira que a apavorava. Quase não se lembrava das feições do noivo, dos seus olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente ósseo; independente da memória dele, vinha-lhe sempre à consciência, quando, de manhã, o estafeta não lhe entregava carta, essa outra ideia: não casar. Era um castigo... A Quinota ia casar-se, o Genelício já estava tratando dos papéis; e ela que esperara tanto, e fora a primeira a noivar-se ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos estavam contentes com aquela fuga inexplicável de Cavalcanti. Como eles se riam durante o carnaval! Como eles atiraram aos seus olhos aquela sua viuvez prematura, durante os folguedos carnavalescos! Punham tanta fúria no jogo de confetes e bisnagas, de modo a deixar bem claro a felicidade de ambos, aquela marcha gloriosa e invejada para o casamento, em face do seu abandono.
Ela disfarçava bem a impressão da alegria deles que lhe parecia indecente e hostil; mas o escárnio da irmã que lhe dizia constantemente: “Brinca, Ismênia! Ele está longe, vai aproveitando” - metia-lhe raiva, a raiva terrível de gente fraca, que corrói interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.
Então, para espantar os maus pensamentos, ela se punha a olhar o aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as serpentinas irisadas pendentes nas sacadas; mas o que fazia bem à sua natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquele ruído de atabaques e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa barulheira, o seu pensamento repousava e como que a ideia que a perseguia desde tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.
De resto, aqueles vestuários extravagantes de índios, aqueles adornos de uma mitologia francamente selvagem, jacarés, cobras, jabutis, vivos, bem vivos, traziam à pobreza de sua imaginação imagens risonhas de rios claros, florestas imensas, lugares de sossego e pureza que a reconfortavam.
Também aquelas cantigas gritadas, berradas, num ritmo duro e de uma grande indigência melódica, vinham como reprimir a mágoa que ia nela, abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de gritos, mas para o que não lhe sobrava força bastante e suficiente.
O noivo partira um mês antes do carnaval e depois do grande festejo carioca a sua tortura foi maior. Sem hábitos de leitura e de conversa, sem atividade doméstica qualquer, ela passava os dias deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar. Era-lhe doce chorar.
Nas horas da entrega da correspondência, tinha ainda uma alegre esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e voltava ao seu pensamento: não casar.
Dona Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismênia, comentou:
- Merecia um castigo isso, não acham?
Coleoni interveio com brandura e boa vontade:
- Não há razão para desesperar. Há muita gente que tem preguiça de escrever...
- Qual! fez Dona Adelaide. Há três meses, Senhor Vicente!
- Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.
- E ela ainda o espera, Dona Adelaide? perguntou Olga.
- Não sei, minha filha. Ninguém entende essa moça. Fala pouco, se fala diz meias palavras... É mesmo uma natureza que parece sem sangue nem nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.
- É orgulho? perguntou ainda Olga.
- Não, não... Se fosse orgulho, ela não se referia de vez em quando ao noivo. É antes moleza, preguiça... parece que ela tem medo de falar para que as cousas não venham a acontecer.
- E os pais que dizem a isso? indagou Coleoni.
- Não sei bem. Mas pelo que pude perceber, o incômodo do general não é grande e Dona Maricota julga que ela deve arranjar “outro”.
- Era o melhor, disse Ricardo.
- Eu creio que ela não tem mais prática, disse sorrindo Dona Adelaide. Levou tanto tempo noiva...
E a conversa já tinha virado para outros assuntos, quando a Ismênia veio fazer a sua visita diária à irmã de Quaresma.
Cumprimentou todos e todos sentiram que ela penava. O sofrimento dava-lhe mais atividade à fisionomia.
As pálpebras estavam roxas e até os seus pequenos olhos pardos tinham mais brilho e expansão. Indagou da saúde de Quaresma e depois calaram-se um instante. Por fim Dona Adelaide lhe perguntou:
- Recebeste carta, Ismênia?
- Ainda não, respondeu ela, com grande economia de voz.
Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço num dunkerque, veio atirar ao chão uma figurinha de biscuit, que se esfacelou em inúmeros fragmentos, quase sem ruído.
continua página 35...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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