(II) o descolocado
14bs – um marido eficiente
baitasar
virgílio já foi muitos nomes quando está na ferrovia, esquece que é o virgílio – deslembra da memória, das crianças e do beco –, acostumou com a tarefa convocatória de inteirar o terno de trabalhadores, a ferrovia não cede, procura corpos quase inteiros para comer, um cio infindo, acostumou com a prontidão necessitada do virgílio
quantos mais – ferroviários, ajudantes ou vigilantes – acamam mais ele recebe ocupação de serviço temporário diarista, sem vínculo e sem registro, ele não existe, mas não esquece de rezar para algum corpo ser devorado, uma fome intensa, desembestada e silenciosa, tem vez que nem bem termina a oração e o chamado já está chegando, é coisa braba
já foi chamado de fura greve, coitados, eles não sabem o que dizem, a fome fura qualquer greve. sorte a dele, azar de alguém, sai nas três horas da madrugada, quase assobiando, primeiro vai na ferrovia, depois no eraldo – pedreiro dos bons – se na ferrovia não deu em nada, só no fim de tudo circula pela vigilância, não tem coisa melhor para um homem com miúdos para comerem que ter chamado de serviço, noite do amanhecer do futuro em agonia com a comida garantida, Caso o miúdo de Deus ache que não sou devedor de nenhum pecado importante e mereça mais uma ajudinha, peço que a pouca desgraça de alguém na ferrovia – ou na serventia do Seu Eraldo – seja a minha fortuna do dia.
quando não é chamado na ferrovia ele vira carregador de tijolos, na construção civil – gosta de dizer que trabalha na construção das casas em que nunca vai morar – não senta para descansar até erguerem os desenhos de tijolos da etapa, não tem tempo de almoço sentado, a boia fria é enfiada aos goles de água, sem música, sem soluço, sem dor, sem fome, vive elegante e faminto, não carrega joias de anel ou relógio, não usa a canga das correntes no pescoço, apenas dois dentes de ouro, bem na frente, em cima, suas joias de ostentar, Depois do meu passamento pode arrancar e vender, Deus do céu, não vou querer nada de defunto, O defunto vai ser eu, prometo que não vou incomodar nem ficar injuriado. É só arrancar e vender.
nunca teve lastro nem vínculos para comprar na cooperativa, Não tenho abono nem envelope, Maria. Os efetivos têm abono familiar, até o colégio dos filhos. Não tenho isso, também. Os efetivos têm hora-extra e podem comprar na prestação, Aposto que só entra pra efetivo quem não tem rastro de álcool no sangue, É... e precisa fazer curso, E tu não sabe nem ler nem escrever... e caiu pra bebida, Eu sou humilde, Tu é burro!
no anoitecer dos dias é vigia noturno, gosta desta ocupação, mas não é sempre que recebe convocação de substituição, gosta deste ofício de preenchimento, é quando dorme sem aborrecimento, gosta da vigilância, um lugar quase fixo, não tem necessidade de andar daqui para lá e de lá para cá – como os milico novo de prontidão –, quando o lugar de reposição do vigilante é mais longe que o costumeiro, mesmo para um caminhador, vai como ocupante transitório do bonde amarelo, sempre senta no último banco, último e insignificante passageiro a ser lembrado, sempre depois de todos, trabalhar na reposição e mover-se de bonde não enriquece ninguém
às vezes, quando o corpo está exausto de tanto se engalfinhar com os dormentes da ferrovia, atolado no último banco, pisoteado, mastigado como se fosse um chiclete, a boca vazia, amarga e seca, parece ouvir os berreiros do sinhô do engenho, o ranger dos dentes do sinhô das charqueadas, os insultos do dono das polícias, tanto faz, o destino é o mesmo, manter a baba burguesa bem nutrida, gritando com seu chapéu de abas largas, botas compridas de couro, o chicote em uma das mãos, o cuspe voando longe junto com os berros, Basta de matutar! É hora das moendas! Negro vagabundo! Preguiçoso!
sempre é hora das moendas, o moinho não pode parar, a carne precisa ser recortada e salgada, a cama do sinhô precisa ser aquecida, o virgílio balançando lado e outro, abrindo e fechando os olhos, despencando no colo da noite, um labirinto de cansaço e humilhações, um poço sem fim de histórias repetidas e perdidas
os pretos saem do refúgio mormacento, seus cantos de tristezas desvirginando o dia, começando mais cedo que o próprio dia, pretos açoitados empurram as rodas, as engrenagens do engenho gemem pelos silenciados, as canas sendo esmagadas enquanto o chicote estala estala estala sem cessar, todos trabalham sem descanso: o chicote e os pretos
escorre dos corpos suados o sangue do chicote suado – o mesmo sangue sempre –, não têm fim os feixes de cana que as pretas jogam nos carros de boi, empilham no lombo dos jegues, as pretas não param, desviando dos agarramentos do sinhô ou abraçadas na cana, nada sossega até o dia sonolento e moribundo cerrar as claridades, as lamparinas nas choças vão acendendo nas mãos pretas exaustas, uma sina que não toma sumiço por encantamento e não pode cair no esquecimento das caras sem vergonha, sem memória, sob medida para decretar que o passado não pode ser mudado e de nada vale continuar a lembrar reminiscências sem nome, sem biografias, vestígios que marcam a feiura da ganância de melhor viver que todos, acima de tudo
enquanto virgílio não sai do sonho do avoengo – sentado no último banco do bonde amarelo, balançando lado e outro, adormecido e acordado, sonhado e vigilante – não está de volta, planta, colhe e esmaga cana, é quem produz açúcar, é carneador do gado, enfia o facão direto no coração da res, solta rios de sangue no barro vermelho, tira o couro em poucos minutos, arranca as entranhas, o que serve separa do imprestável, chama o machadeiro que quebra a espinha do animal, depois separa as partes da sina de ser escravizado, as caras baixas, os rostos lavados em lágrimas, gemendo dolorosamente, olhando para os céus, lamentações em cantos, apartados dos filhos e filhas, pais e mães, as mulheres dos maridos, irmãos e irmãs distanciados, cada um caindo onde o leilão o levava, a lei do dinheiro para a família com deus, acima de tudo e de todos
virgíio não se pensa das áfricas do continente africano, apenas se enxerga um preto daqui, não planta café nem cana, não minera ouro, não é carneador, é um preto que se vende na ferrovia, carrega tijolo de barro, vende comida que carrega nas costas, vende panos, puxa carrinho, mendiga, tudo por um bocadinho de fartura na mesa, não se vê mais longe que a villa, volta sempre para o beco, carrega o discurso branco e se vê na feiura que recebeu do branco, não é apático, foi submetido a cultura da dominação que não permite vida ao dominado, apenas dores de cacos quebrados
volta todo espremido para a lamparina da sua casa, um marido maravilhoso, inventou com maria memória três lindas crianças, dois miúdos e uma miúda, iniciaram a ter vida fora da memória nas mãos da maria socorro, comadre de todos no beco, parteira dos arredores, teve vez que um ou outro aparecimento não vingou nas mãos da socorro, um pouco foi a ruindade no começo do ofício, a mão não puxou no tempo certo ou não teve empurrão com mais força, também teve sangue perdido em excesso, cordão enrolado no pescoço, o bacuri com os pés na cabeça, todo virado e atravessado, mas nunca deixou parição sem atendimento nem mãe embaraçada sem socorro e conforto
lamparino, o primeiro, chegou aos empurrões e gritos, tarde da noite, supimpo, o do meio, veio numa tarde de muito sol, maria futuro chegou numa manhã de muito vento – não queriam essa, mas depois de enraizada não teve o que fazer, mais uma boca – com uma circular do cordão, socorro desenrolou fácil, depois da futuro, memória e virgílio decidiram parar com isso de fazer filhos, Procurei ajuda no postinho, E o daí, Explicaram umas contas depois do sangramento, Não tô entendendo, E já vou avisando: regras são regras! Entendeu, Entendi... regras são regras... as regras do sangramento.
memória não tem tanta certeza desse entendimento das tais regras, É um homem maravilhoso quando não bebe. Trabalhador, descomplicado, simples, tolerante. Não é muito forte, mas muito decidido. Serviço é que não falta. Quando tudo parece arruinado ele repete, Vou dar um jeito, e dá o seu jeito. Não é qualquer preto – descontado de não ter ido pra escola – que recebe tantos chamados. Tenho dó que não fica efetivo, um dia quem sabe, né? Temos três miúdos que vieram pelo exagero das vontades da carne. A bem da verdade, tanto exagero meu quanto do Virgílio. Depois da regras ele ficou mais refreado, e eu mais abafada. Na dúvida de alguma contagem, não tem solução sem perigo... as vontades ficam penduradas. Não tem jeito, é isso ou mais uma boca. Tem vez que faz birra e ameaça perder as vontades se não tiver as cobiças agradadas. Resmunga que tá cansado de trabucar e dormir. Sacudo os ombros e pergunto se quer mais um miúdo pra matar a fome. Um santo remédio, o Virgílio fica amolecido e piquininino. Um trocinho que até dá pena e vontade de perguntar... como é que muda tanto? Quando bebe repete as ameaças de perder as vontades. Não perde. Gosta dos festejos na cama.
A minha Maria já teve mais formosura, Não tenho mais? Que pena, É uma formosura diferente, Hum..., tu é uma Memória mais encorpada. Eu não quero ser atrevido em tempo de recolhimento, mas não resisto essa rezinga de ter tanto molho engrossado nas mãos, parou a discurseira, atento que ficou com o silêncio da memória, O que foi? Eu disse alguma besteira?
memória sorriu, procurou com a ponta dos dedos a franja que não lembra se já teve, respondeu com a intimidade que o arremate lhe pedia, Tu é um marido muito eficiente quando não bebe. Venha cá...
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