sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6.(1)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


6..


Podemos nos sentir obrigados a olhar fotos que recordam graves crimes e crueldades. Deveríamos nos sentir obrigados a refletir sobre o que significa olhar tais fotos, sobre a capacidade de assimilar efetivamente aquilo que elas mostram. Nem todas as reações a tais fotos estão sob a supervisão da razão e da consciência. A maioria das imagens de corpos torturados e mutilados suscita, na verdade, um interesse lascivo. (As desgraças da guerra constituem, de forma notável, uma exceção: as imagens de Goya não podem ser vistas com um ânimo lascivo. Elas não se alicerçam na beleza do corpo; os corpos estão cobertos por roupas pesadas e grossas.) Todas as imagens que exibem a violação de um corpo atraente são, em certa medida, pornográficas. Mas imagens do repugnante também podem seduzir. Todos sabem que não é a mera curiosidade que faz o trânsito de uma estrada ficar mais lento na passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Para muitos, é também o desejo de ver algo horripilante. Chamar tal desejo de “mórbido” sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara e constitui uma fonte permanente de tormento interior.

Com efeito, o mais antigo reconhecimento (até onde estou ciente) da atração exercida por corpos mutilados se encontra em uma descrição fundamental do conflito mental. Trata-se de uma passagem de A república, Livro IV, na qual o Sócrates de Platão descreve como a razão pode ser esmagada por um desejo vil, que leva a pessoa a se enfurecer contra uma parte da natureza. Platão vinha desenvolvendo uma teoria tripartida da função mental, constituída pela razão, pela raiva ou indignação, e pelo apetite ou desejo — numa antevisão do esquema freudiano formado de superego, ego e id (com a diferença que Platão coloca a razão no topo e a consciência, representada pela indignação, no meio). No decorrer da argumentação, a fim de ilustrar como uma pessoa pode render-se, ainda que com relutância, a atrações repulsivas, Sócrates conta uma história que ouviu acerca de Leôncio, filho de Aglaion:


Ao avançar, um dia, do porto de Pireu, para além do muro norte da cidade, Leôncio avistou os corpos de alguns criminosos que jaziam por terra e o executor, de pé, ao lado. Quis ir até lá e vê-los, mas, ao mesmo tempo, sentiu repulsa e tentou desviar-se. Lutou durante algum tempo e cobriu os olhos, mas, por fim, o desejo foi excessivo para ele. Abrindo bem os olhos, correu até os corpos e gritou. “Pronto, aí está, olhos malditos, regalem-se à vontade com essa bela visão.”

Ao evitar escolher o exemplo mais comum de uma paixão sexual imprópria ou ilegal para ilustrar a luta entre razão e desejo, Platão parece ter como líquido e certo que nós também temos um apetite por cenas de degradação, dor e mutilação. Sem dúvida, a contracorrente profunda desse impulso desprezado também deve ser levada em conta quando se discute o efeito de fotos de atrocidades.

No início da modernidade, pode ter sido mais fácil reconhecer que existe um tropismo inato orientado para o horrível. Edmund Burke observou que as pessoas gostam de olhar para imagens de sofrimento. “Estou convicto de que extraímos um grau de prazer, e não pequeno, dos infortúnios e das dores reais dos outros”, escreveu em Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo (1757). “Não há espetáculo que busquemos com mais avidez do que o de alguma calamidade invulgar e angustiante.” William Hazlitt, em seu ensaio sobre o personagem Iago, de Shakespeare, e sobre a atração exercida pela vilania no palco, indaga: “Por que sempre lemos, nos jornais, as notícias sobre incêndios pavorosos e assassinatos chocantes?”. Porque, responde ele, “o amor à maldade”, o amor à crueldade, é tão natural aos seres humanos como a solidariedade.

Um dos principais teóricos do erótico, Georges Bataille, tinha sobre sua escrivaninha, onde a podia olhar todos os dias, uma foto tirada na China, em 1910, de um prisioneiro no momento em que padecia “a morte de cem cortes”. (Legendária, desde então, ela é reproduzida no último livro de Bataille publicado em vida, em 1961, As lágrimas de Eros.) “Essa fotografia”, escreveu Bataille, “teve um papel decisivo na minha vida. Nunca deixei de me sentir obcecado por essa imagem de dor, a um só tempo extasiante e intolerável.” Segundo Bataille, contemplar essa imagem constitui tanto uma mortificação dos sentimentos como uma libertação do conhecimento erótico assinalado como tabu — uma reação complexa que muitos devem julgar difícil de acreditar. Para a maioria, a imagem é simplesmente insuportável: já sem braços, a vítima sacrificial de diversas facas em movimento contínuo, no estágio terminal do esfolamento — uma foto, não uma pintura; um Mársias real, e não mítico —, ainda está viva, na imagem, com uma expressão tão extática em seu rosto voltado para cima quanto a de qualquer são Sebastião do Renascimento italiano. Como objetos de contemplação, imagens de atrocidades podem atender a diversas necessidades. Podem nos enrijecer contra a fraqueza. Tornar-nos mais insensíveis. Levar-nos a reconhecer a existência do incorrigível.

Bataille não diz que obtém prazer com a visão desse martírio. Mas diz que pode imaginar o sofrimento extremo como algo mais do que o mero sofrimento, como uma espécie de transfiguração. Trata-se de uma visão do sofrimento, da dor dos outros, que está enraizada no pensamento religioso e vincula a dor ao sacrifício, o sacrifício à exaltação — uma visão que não poderia ser mais alheia à sensibilidade moderna, que encara o sofrimento como um erro, um acidente ou um crime. Algo a ser corrigido. Algo a ser recusado. Algo que faz a pessoa sentir-se impotente.



continua pág 267...

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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (1)
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"Quando o mundo estiver unido
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não mais lutando por dinheiro e
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