domingo, 21 de agosto de 2022

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV... Agrupamento bizarro

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM



Agrupamentos bizarros

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas — êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; — rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...
Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador. Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum engulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos benditos lúgubres como responsórios...
A reveses, as fogueiras quase abafadas, vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porém mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos.
Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento. Mas não há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis.
De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau esvai-se-lhes contemplativo e vago...
José Venâncio, o terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a fronte para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante-de-ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dous irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas estradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio.
Joaquim Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-Torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.
Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó...
A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.
O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais tarde.
Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila-Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa.
No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.
E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.




O “beija” das imagens

As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas.
Era o “beija” das imagens.
Instituíra-o o Conselheiro completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido.
Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas a meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembleia adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas de crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava a multidão um desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro...
Mas de repente o tumulto cessava.
Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do Santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro.
Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava...




Por que não pregar contra a República?

Pregava contra a República; é certo.
O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso.
Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.
Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.
Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de Verzegnis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.
Os perfectionistas exagerados rompem, então, ilógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã...
Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.
Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimos; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...
E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras...
Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as instituições nascentes.
E Canudos era a Vendéia...
Entretanto quando nos últimos dias do arraial foi permitido ingresso nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.
Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente, os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelha com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo — heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anticristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvarios em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixam bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloquente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.

Copiemos ao acaso alguns:

“Sahiu D. Pedro segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brazil ficou atôa!

A República era a impiedade:

“Garantidos pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Elles tem a lei do cão!”

“Bem desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!”

“Casamento vão fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

“D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento!”

“O anticristo nasceu
Para o Brazil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para delles nos livrar!”

“Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão!”

A lei do cão...
Este era o apotegma mais elevado da seita.
Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários. Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...
Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.
Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.




continua 088...

______________________

Leia também:


OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES - A Terra: IV As caatingas
OS SERTÕES - A Terra: IV A tormenta
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - A Terra: V Como se extingue o deserto
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: I Variabilidade do meio físico
OS SERTÕES - O Homem: I ...e sua reflexão na História
OS SERTÕES - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES - O Homem: II ... O vaqueiro
OS SERTÕES - O Homem: II ... Um parêntese irritante
OS SERTÕES - O Homem: III ... O sertanejo é, antes de tudo, um forte
OS SERTÕES - O Homem: III ... Servidão inconsciente
OS SERTÕES - O Homem: III ... Tradições
OS SERTÕES - O Homem: III ... Religião mestiça
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES - O Homem: IV   Mais lendas...
OS SERTÕES - O Homem: IV   Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: IV... Agrupamento bizarro 
OS SERTÕES - O Homem: IV...  Uma missão abortada
 
______________________


Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário