sábado, 20 de agosto de 2022

Úrsula - XII - Foge!

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



XII - Foge! 



— Aproxima-te, minha pobre filha, – exclamou a infeliz mãe com voz fraca e arrastada – ah! Que desgraçada entrevista!

— Bem me pressagiara o coração!

E as lágrimas começaram a cair-lhe a dois e dois.

— Baralham-se-me as ideias, minha Úrsula, – tornou-lhe a mãe, em cujo rosto se pintavam já os indícios da morte – talvez não me compreendas bem; mas escuta-me. Meu irmão veio abreviar os instantes, que ainda me restavam para te amar, e proteger-te contra os seus caprichos! Sabes, minha filha, o que quer esse homem?

E um tremor convulso agitou os membros da desditosa mãe, que ainda na sua agonia velava pela infeliz órfã.
A filha, a desvelada filha, tomou-a nos braços, uniu-a ao seu coração, orvalhou-a com as suas lágrimas, e sufocada pela dor lhe bradou:

— Oh! Minha mãe... minha querida mãe, que foi que vos fez esse homem malvado?

A pobre mulher não pôde retrucar-lhe, fechou os olhos, e parecia que de todo lhe faltava a vida:
Úrsula gritou, pediu socorro, e ao seu pranto doído só teve por eco o pranto de Susana!
Luísa tornou a si dessa penosa e prolongada síncope, porque Deus quis que uma vez ainda ela falasse a sua filha, por isso ela, recobrando um breve alento, mas já com os olhos amortecidos e vidrados, e com a voz pausada e abafada, que a custo se lhe deslocava dos lábios, disse:

— Minha filha querida... minha Úrsula, para que te dei essa vida?! Ah tu que eras o encanto dos meus dias... tu, a alma da minha existência... oh! Meu Deus! Senhor, dai-me sequer poucos dias mais de vida para protegê-la, para ampará-la...

E o pranto doloroso embargou-lhe a voz.

— Oh, não choreis, minha mãe, pelo céu – exclamou a pobre moça aflita por tantas dores. — Oh! Não choreis!

— Se soubesses, minha filha... – ia a dizer a mísera agonizante.

— Tudo sei, minha querida mãe – interrompeu a moça, torcendo as mãos de desespero. Sei tudo, ele diz que me ama, e que o seu amor ninguém desdenha impunemente.

— Ouviste-o em quanto me atormentava pela última vez?

— Oh! Não! – tornou Úrsula – esse homem me horrorizou, e eu fugi dele.

— E entretanto sabes que ele quer desposar-te?

— Disse-me na mata, quando me anunciou seu amor apaixonado. Mas perdoai-me de vos não ter ainda relatado esse triste acontecimento da minha vida. Via-vos tão débil, tão desalentada... que me não atrevia a dar-vos esse golpe. Uma tarde, não há muito, estendi o meu passeio até a mata próxima, e aí meditando sobre as promessas de...

Úrsula enrubesceu, e a voz sumiu-se-lhe dos lábios.
Depois de leve pausa continuou:

— Esqueci-me das horas, o tempo foi passando, e só ao cair da noite é que dei fé de mim e tratei de voltar. Nesse comenos, ouvi o estampido de uma espingarda, e uma pobre perdiz que, ferida, veio como pedir-me socorro. Acolhia-a ao seio; mas nem bem o havia feito, que dei junto a mim com um homem, que me fixava com olhos sinistros.

Tomou a donzela algum alento, e só depois de alguns minutos é que pôde relatar à sua moribunda mãe a sua fatal entrevista. Terminada que foi a narração acrescentou: — Por último cobrei ânimo e quis fugir-lhe; mas ele implorou em vosso nome, e eu ouvi-o!

Louca, louca, que eu fui, tinha diante dos olhos o comendador P***, o perseguidor de minha mãe, e...

— O assassino de teu pai, minha Úrsula – interrompeu Luísa B. com indefinível amargura.

— Será possível? – exclamou a moça atônita.

— Sim – tornou ela – acaba de confessar-me num transporte, que diz de vivo arrependimento.

— Oh! Que horror! – disse Úrsula levando as mãos ao rosto lívido de pavor.

— E diz que loucamente te adora, e quer compensar-te com o seu nome, e com a sua fortuna dos males que nos há feito!...

— Que insulto nos faz o comendador – o assassino de meu pai!!

— Silêncio, minha pobre filha! Agora escuta-me: são estas talvez minhas derradeiras palavras, pesa-as bem. Não chores, não, minha filha, não chores, se queres ainda ouvir-me por um instante. Bem sei quanto te é penosa esta dura separação; mas tarde, ou cedo, ela devia chegar, e tu deves resignar-te, e aproveitar o tempo, que urge.

Frágil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceira do meu leito como se fosse anjo do extermínio a falar-me de coisas, que só me poderiam abreviar os instantes. Conheci que chegava o termo dos meus dias, ele também conheceu, e conquanto esta ideia, apesar da dureza do seu coração, lhe fosse amarga, ele contudo deixou-me à pressa para ir à cidade de *** donde deve voltar amanhã.
Fernando voltará aqui com um sacerdote, que há de abençoar, em presença deste leito de agonia, a união forçada da filha de Paulo B. com o seu assassino!

— Oh! Não...nunca! Nunca! – bradou a donzela fora de si.

— Sim, nunca – replicou a pobre moribunda aproveitando suas últimas forças; mas um novo desmaio, seguido de violentas convulsões reapareceu, e seu rosto tornou-se mais esquálido, e as feições mudadas e o suor gelado da morte mostrou-se.

— Meu Deus! Meu Deus! – exclamou Úrsula no auge da mais pungente aflição – Oh! vós Senhor, que sois bom e que podeis tanto, restitui-lhe a vida ainda em troco da minha! E caiu sobre o corpo já meio gelado da infeliz mãe.

Luísa de novo abriu os olhos para dar um último adeus à filha de suas adorações, e por um esforço derradeiro, disse-lhe:

— Úrsula, minha filha, teme a cólera de Fernando; mas sobretudo teme e repele seu amor desenfreado e libidinoso.

Meu Deus! Perdoai-me se peco nisto...
Aconselho-te.... que fujas...
Foge... minha ...fi...lha!.. fo...ge!...
Foram suas últimas palavras a custo arrancadas e entrecortadas pela morte.
Então Úrsula, a pobre órfã, ajoelhou aos pés do leito, e volvendo em seus braços o corpo inanimado, com seus lábios, trêmulos de dor, tocou os lábios frios e inertes de sua mãe, tentando, embalde, transmitir ao coração materno o hálito ardente, que a animava.
Mas quando voltou à realidade, quando teve plena consciência de que estava só, e entregue ao rigor da sua sorte, quando pôde acreditar que sua mãe já não existia, então prorrompeu em lágrimas, e estorceu-se pelo chão, e agitou-se como uma possessa, porque as grandes e profundas dores do coração só acham alívio na expansão ilimitada da dor, e na fadiga do corpo e do espírito...
Ao romper do seguinte dia, via-se um cadáver quase sem acompanhamento, que ia ser inumado no cemitério de Santa Cruz.
Era o da infeliz paralítica Luísa B.


continua pág 96...

_________________________


Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

____________________

Úrsula - XII - Foge!
Úrsula - XIII - O cemitério de Santa Cruz

Nenhum comentário:

Postar um comentário