(II) o descolocado
11bs – notícia ruim
baitasar
uma mulher encorpada de histórias perdendo a paciência com tanta frouxidão, tanta explicação sem explicação, Estou falando do vizinho, Maria. Eu tenho o meu ganho que já não é lá essas coisas, Eu sei, um ganho cada vez mais curto, dias cada vez mais compridos, Pois então, mas é o meu ganho, Entendi, Virgílio. Mas tu não acha que falta um desses empregos bacanas de carteira assinada? E que conta tempo pra se encostar abrigado, não precisar viver de bico até morrer?
Um desses que enriquece o patrão?
E coloca comida na mesa!
Tu não entende...
O que eu não entendo?
aquela conversa não estava no gosto de nenhum dos dois, quantas vezes já foi dito, quantas vezes foi respondida, já tem cansaço suficiente, desespero, tragédia, cara aborrecida, sermão, evasivas bobas do homem que se repete, aquela pobreza, a memória no barracão cuidando do crescimento dos filhos e filha, os quefazeres do lar, o virgílio catando, caçando papelão, a memória acalmando e cobrando das crianças uma outra vida diferente daquela desgraça velha, Vocês precisam ser outra coisa, Eu quero ser traficante, a mão voando solta até o mais velho, a chegada da mão junto com o grito desesperado, Nunca! Nunca mais repita isso. Vocês precisam mudar suas vidas, precisam da escola, qualquer que ela seja, boa ou ruim, não me interessa. A solução não é o desespero nem a compaixão. Precisam continuar vivos e lutar contra a fome, gripes e coceiras, mijação e outras perebas. Não tem doutor aqui pra cuidar das doenças do frio e das feridas do garrão estropiado. Não tem polícia pra cuidar de vocês. Vocês já sabem que a polícia só entra pra matar. Estamos por nossa conta. Entenderam, nenhuma resposta dos olhos arregalados e lágrimas nos olhos, não escutei nada, Sim, foi a resposta dos dois, a futuro olhava sem entender a brabeza da mãinha, Sim, o quê, Entendemos que temos que ir à escola, E estudar, se parou olhando para os dois, mais uma coisinha, não quero ser chamada na escola pra ouvir reclamação de algum desaforo com as professoras, para essas conversas com as crianças não contava com o virgílio
Um homem sem a dignidade do seu próprio sustento, e que não alimenta a mulher e as crianças, perde o respeito dentro da cabeça, ele não falava só por falar suas desculpas esfarrapadas, queria ser melhor, mas não sabia como
Tá bem, isso não é bom pra ninguém, ela virou as costas e foi para o tanque das roupas sujas, o nariz gelado escorrendo, esfregou a manga da blusa uma vez, e mais uma, e outra vez, e fungava, fungava, depois continuava a soltura das palavras, faz parte da vida, Virgílio... pelo menos, desta vida aqui.
juntou do chão a calça biscateira, Santo Deus, mexia e remexia nos bolsos da pobreza, que imundice, Virgílio!
O que tá procurando?
Nada, Virgílio... apenas, costume.
respondeu sem dar importância, sem desespero, sem compaixão, sem despedidas, resistindo, costume velho que não incomoda ninguém, uma vida monótona, mas eficiente e simples, ela sabe o que fazer, jogou a calça cansada e puída, quase morrendo, no tanque, as duas aborrecidas e gastas, O que eu haveria de encontrar além de bolsos vazios e esburacados, né?
a calça afundando, Queria ser só uma vez o que não consigo, e não posso ser, as vontades afundando com as cobranças de ser mulher e mãe e pobre e preta, um sofrimento ensinado, repetições infinitas, desejos discriminados, Mulher tem que ser isso, preta não pode ser outra coisa, cresceu sem saber outra vida
pegou a calça atolada nas mãos, colocou em cima da tábua no tanque, a água gelada vazando dos bolsos vazios, sempre vazios, o sabão desbotado, alisava, esfregava, pingava
O sustento faz parte da vida, largou o sabão na tábua, e agarrada na calça, esfregava esfregava esfregava a vida na tábua, o cansaço, a falta de tudo, essa história de escravidão que não acaba
Virgílio, pois pra mim parece que não fazemos parte desta vida... uma merda de vida, o nariz que não parava de desembocar suas águas, jogou a calça ensaboada no balde
Eu sei, Maria. Viver de bicos ou emprego que não é emprego, sem direito nenhum, a gente não sai desse lugar.
juntou a cueca número dois do virgílio – a número um ficaria em uso mais uns dois dias, um pouquinho mais ou um pouquinho menos –, não perdia o costume de examinar, Tá com alguma coisa?
perguntou com voz que parecia de preocupação, sua atenção estava virada para o biscateiro sem sustento seguro – sem trabalho de carteira assinada –, pensou na vida que poderia ficar mais injusta, Tá com alguma doença?
o virgílio tomou um susto da pergunta, uma preocupação inesperada e sem necessidade, Eu não tô com nada, vira essa boca pra lá!
Tu não tá sentindo nada, além da vontade da cachaça?
Chega, Maria! Eu não tenho nada! E tô controlando a vontade da maldita...
Isso é verdade, não tem nada mesmo. E se não tem nada... não existe, se não existe... não pode estar sangrando por cima nem por baixo, falava devagarinho, parecia soletrando um livro.
Vira essa língua afiada e azarenta pra lá, e apontou para o quartinho dos despejos
uma vida paralítica que não salva ninguém, mas o que fazer de tanto medo e angústia que sufoca, tantos olhos e bocas que vigiam e não permitem que saiam do lugar até adoecerem e morrerem, Como se empurrar pra desentortar, a mesma pergunta sempre presa na garganta
A pergunta foi de preocupação, mostrou a cueca que parecia marcada como de costume, só que não, tá vendo esse riscão no fundão?
Por favor, Maria..., a ambição de um no outro tinha virado desambição, o interesse guloso tinha se derramado em cuidado com desestima
Tá vendo...?
Não...
Esse marrom avermelhado é a novidade.
Foi a beterraba, lembra? Beterraba no café, beterraba no meio do dia, beterraba no começo da noite, água de beterraba... sopa de beterraba.
Foi o que deu pra juntar na fruteira. Carne, leite e feijão deixou de ser costume nas panelas e no gosto.
jogou a cueca ferida e sangrando beterraba no tanque, sentiu o calorão da raiva e do embaraço subir até a carapinha embaraçada, riu da lembrança que teve, As branquelas não conseguem esconder o calorão da cara.
Vai no posto da villa, avisou como recomendação para o virgílio
E pra quê? É só perdê um dia de carrinho, esperando pra nada.
sem ânimo para um discurso trovão, achou melhor não insistir, Quem procura acha, é melhor não procurar... deixar acontecer.
as histórias da escravidão seguem favelistas
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Leia também:
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