domingo, 21 de agosto de 2022

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Momentos cruéis (XVIII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XVIII

MOMENTOS CRUéIS


E ela me confessa! Conta até os menores detalhes! Seu belo olhar fixo no
meu descreve o amor que sentiu por outro!.

SCHILLER



EXTASIADA, A SRTA. DE LA MOLE só pensava na felicidade de ter estado a ponto de ser morta. Chegava a dizer-se: ele é digno de ser meu mestre, pois esteve a ponto de matar-me. Quantos jovens garbosos da sociedade seria preciso reunir para chegar a tal movimento de paixão?
Tenho que admitir que ele estava muito belo no momento em que subiu na cadeira para recolocar a espada, precisamente na posição pitoresca que lhe dera o decorador! Afinal, não fui tão louca de amá-lo.
Naquele instante, se algum meio honesto de reconciliação tivesse se apresentado, ela o teria pego com prazer. Julien, encerrado em seu quarto à chave com duas voltas, entregava-se ao mais violento desespero. Em suas ideias loucas, pensava em lançar-se aos pés dela. Se, em vez de esconder-se num lugar apartado, ele saísse a andar pela mansão e pelo jardim, de maneira a estar ao alcance das oportunidades, talvez tivesse num único instante transformado na mais intensa felicidade sua terrível desgraça.
Mas a astúcia, cuja ausência lhe reprovamos, teria excluído o movimento sublime de pegar a espada que, naquele momento, o tornava tão belo aos olhos da srta. de La Mole. Esse capricho, favorável a Julien, durou o dia inteiro; Mathilde fazia-se uma imagem encantadora dos breves instantes durante os quais o amara, e sentia saudade deles.
Em realidade, ela se dizia, minha paixão por esse pobre rapaz só durou, para ele, desde uma hora da madrugada, quando o vi chegar pela escada com as pistolas no bolso do casaco, até as oito da manhã. Foi uns quinze minutos depois, durante a missa em Sainte-Valère, que comecei a pensar que ele ia julgar-se meu mestre, e que poderia tentar fazer-me obedecer em nome do terror.
Depois do almoço, a srta. de La Mole, longe de evitar Julien, falou-lhe e de certo modo o obrigou a acompanhá-la ao jardim; ele obedeceu. Essa prova lhe faltava. Mathilde cedia sem perceber muito bem o amor que voltava a sentir por ele. Sentia um prazer extremo em passear ao lado dele, era com curiosidade que olhava aquelas mãos que de manhã haviam pego a espada para matá-la.
Depois de tal ação, depois de tudo que se passara, não era mais possível voltar à antiga conversa deles.
Aos poucos, Mathilde pôs-se a fazer confidências íntimas sobre o estado de seu coração. Ela sentia uma volúpia singular nesse tipo de conversa; passou a contar-lhe os movimentos de entusiasmo passageiros que sentira pelo sr. de Croisenois, pelo sr. de Caylus...

– Quê! Pelo sr. de Caylus também?, exclamou Julien; e todo o amargo ciúme de um amante abandonado explodia nessa frase. Mathilde julgou assim e não se sentiu ofendida.

Continuou a torturar Julien, descrevendo-lhe os sentimentos de outrora da maneira mais pitoresca e com o acento da mais íntima verdade. Este percebia que ela descrevia o que tinha ante os olhos. Sentia a dor de observar que, ao falar, ela fazia descobertas em seu próprio coração.
A infelicidade do ciúme não pode ir mais longe.
Suspeitar que um rival é amado já é bastante cruel, mas ouvir a confissão detalhada do amor que ele inspira pela mulher que adoramos é certamente o cúmulo do sofrimento.
Ó, como eram punidos, naquele instante, os movimentos de orgulho que tinham levado Julien a julgar-se preferido aos Caylus, aos Croisenois! Com que infelicidade íntima e sentida ele exagerava as menores vantagens deles! Com que boa-fé ardente desprezava-se a si mesmo!
Mathilde parecia-lhe adorável, qualquer palavra era fraca para exprimir o excesso de sua admiração. Ao passear ao lado dela, olhava furtivamente suas mãos, seus braços, seu porte de rainha. Estava a ponto de cair a seus pés, aniquilado de amor e de infelicidade, e clamando-lhe: piedade!
E essa criatura tão bela, tão superior a tudo, que uma vez me amou, é o sr. de Caylus que ela certamente em breve irá amar!
Julien não podia duvidar da sinceridade da srta. de La Mole; o acento da verdade era demasiado evidente em tudo que ela dizia. Para que absolutamente nada faltasse à sua infelicidade, houve momentos em que, à força de ocupar-se dos sentimentos que tivera uma vez pelo sr. de Caylus, Mathilde passou a falar dele como se o amasse atualmente. Por certo havia amor no seu jeito de falar, Julien percebia isso nitidamente.
Se o interior de seu peito fosse inundado de chumbo derretido, ele teria sofrido menos. De que maneira, chegado a esse excesso de infelicidade, o pobre rapaz teria podido adivinhar que era porque lhe falava que a srta. de La Mole sentia tanto prazer em recordar as veleidades de amor que sentira outrora pelo sr. de Caylus ou pelo sr. de Luz?
Nada poderia exprimir as angústias de Julien. Ele escutava as confidências detalhadas de amor sentido por outros, na mesma aleia de tílias onde, poucos dias antes, esperava que soasse uma hora para penetrar no quarto dela. Um ser humano não pode suportar a infelicidade num grau mais elevado.
Esse tipo de intimidade cruel durou oito longos dias. Mathilde parecia ora buscar, ora não evitar as ocasiões de lhe falar; e o assunto de conversa, ao qual ambos voltavam com uma espécie de volúpia cruel, era o relato dos sentimentos que ela tivera por outros: ela contava-lhe as cartas que escrevera, lembrava-lhe até mesmo as palavras, recitava-lhe frases inteiras. Nos últimos dias, ela parecia contemplar Julien com uma espécie de alegria maligna. Os sofrimentos dele eram um gozo intenso para ela.
Percebe-se que Julien não tinha a menor experiência da vida, ele não havia lido sequer romances; se não fosse tão inexperiente, teria dito com alguma frieza a essa jovem, por ele tão adorada e que lhe fazia confidências tão estranhas: Admita que, embora eu não valha todos esses senhores, é no entanto a mim que você ama...
Talvez ela ficasse feliz de ser adivinhada; pelo menos, o sucesso dependeria inteiramente da graça com que Julien exprimisse essa ideia, e do momento escolhido. Em todo caso, ele se sairia bem, e com a vantagem, para ele, de uma situação que ia se tornar monótona para Mathilde.

– E você não me ama mais, a mim que a adoro!, disse-lhe um dia Julien, perdido de amor e de infelicidade. Era a maior tolice que poderia cometer.

Essa frase destruiu, num piscar de olhos, todo o prazer que a srta. de La Mole sentia em falar-lhe do estado de seu coração. Ela começava a surpreender-se que, depois do que se passara, ele não se ofendesse com seus relatos. Chegou até a imaginar, no momento em que Julien lhe dirigiu essa frase tola, que talvez ele não a amasse mais. O orgulho certamente extinguiu seu amor, ela pensava. Ele não é homem de ver-se impunemente preterido por criaturas como Caylus, de Luz, Croisenois, que ele confessa serem-lhe tão superiores. Não, não o verei mais a meus pés!
Nos dias anteriores, na ingenuidade de seu infortúnio, Julien fazia-lhe com frequência um elogio sincero das brilhantes qualidades desses senhores; chegava até a exagerá-las. Esse detalhe não escapara à srta. de La Mole; ela ficara surpresa, mas não adivinhara-lhe a causa. A alma frenética de Julien, ao louvar um rival que ele acreditava amado, simpatizava com sua felicidade.
Sua frase franca, mas estúpida, veio alterar tudo num instante: Mathilde, segura de ser amada, desprezou-o completamente.
Ela passeava com ele no momento dessa frase desastrada; imediatamente o deixou, e seu último olhar exprimia o mais terrível desprezo. No salão, à noite, não olhou mais para ele. No dia seguinte, esse desprezo ocupava todo o seu coração; não havia mais o movimento que, durante oito dias, dera-lhe tanto prazer de tratar Julien como o amigo mais íntimo; a visão dele era-lhe desagradável. A sensação de Mathilde chegou à aversão; nada poderia exprimir o excesso de desprezo que sentia ao vê-lo.
Julien nada compreendera do que se passava no coração de Mathilde nesses oito dias, mas percebeu o desprezo. Teve o bom senso de só aparecer na frente dela o mais raramente possível, e em nenhum momento a olhou.
Mas não foi sem um sofrimento mortal que se privou, de certo modo, da presença dela. Acreditou sentir que sua infelicidade aumentava ainda mais com isso. A coragem de um coração masculino não pode ir mais longe, ele pensava. Passava o tempo junto a uma pequena janela no alto da mansão; a persiana era fechada com cuidado e dali, pelo menos, podia avistar a srta. de La Mole quando ela aparecia no jardim.
Como sofria, então, ao vê-la, depois do almoço, passear com o sr. de Caylus, o sr. de Luz ou algum outro, por quem ela lhe confessara uma veleidade de amor outrora sentida!
Julien não fazia ideia de tal intensidade de sofrimento; sentia vontade de gritar. Essa alma tão firme estava, enfim, perturbada de cima a baixo.
Todo pensamento alheio à srta. de La Mole tornara-se-lhe odioso; era incapaz de escrever as cartas mais simples.

– O que há com você?, disse-lhe o marquês.

Julien, temendo ser descoberto, falou de doença e conseguiu fazer-se acreditar. Felizmente, para ele, o marquês fez gracejos acerca de sua próxima viagem: Mathilde compreendeu que ela poderia ser bastante longa. Havia já vários dias que Julien a evitava, e os jovens brilhantes que tinham tudo o que faltava a essa criatura pálida e sombria, a quem ela amara, não tinham mais o poder de tirá-la do devaneio.
Uma moça comum, pensava, teria buscado o homem que ela prefere entre esses jovens que atraem todos os olhares num salão; mas um dos traços do gênio é não arrastar seu pensamento no carreiro traçado pelo vulgo.
Companheira de um homem como Julien, a quem só falta a fortuna que possuo, chamarei continuamente a atenção, não passarei despercebida na vida. Longe de temer a todo instante uma revolução como minhas primas, que por temor do povo não ousam repreender um cocheiro que as conduz mal, terei certeza de desempenhar um papel e um grande papel, pois o homem que escolhi tem caráter e uma ambição sem limites. O que lhe falta? Amigos, dinheiro? Darei isso a ele. Mas seu pensamento tratava um pouco Julien como um ser inferior, por quem a gente se faz amar quando quer.


continua página 247...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Momentos cruéis (XVIII)

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