quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Poemança Africana: Hélder Proença (Guiné-Bissau)

Poemança Africana - 38


língua portuguesa


escritor, professor e político da Guiné-Bissau



a experiência brasileira de Hélder Proença:

"Os ventos, os montes, a dureza da vida, o movimento precipitado de tudo, até das horas, a intranquilidade brutal da chuva fria que cai sobre estas calçadas torturadas e infestadas de cadáveres, os sertões que gritam os Índios - raízes desta terra vermelha -, o Amazonas e todo o nordeste ameaçado, agora fazem parte de mim; e as minhas palavras já não são mais do que a voz asfixiada do asmático que golpeia o ar e profana a morte procurando viver mais um dia, para cheirar as flores e beijar a liberdade." (PROENÇA, 1987, p. 399-400).




NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mios
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a "Deus Pai todo-poderoso criador dos céus
e da terra"

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo. Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!




NÓS SOMOS

Nós somos
aqueles que dia e noite
fazem com suas mãos
os alicerces da vida.

Nós somos
lágrimas, suor e sangue
que desafiando mortes e séculos...
fundiram esperanças e fé!

Nós somos, irmãos
o florir, a madrugada
e o verde selvagem dos maquis
que em noites sombrias
trazem a canção da vida.

Nós somos
dança, música e ritmo
que em anos 40
sobreviveram a tempestade da fome.

Nós somos irmãos
terra, chuva e arado
que alimentam vidas
e alicerçam o homem!

Nós somos
o tantã da verdade
em místicas noites do fanado*
nós somos irmãos
a certeza e o porvir!


*fanado = cerimônia de iniciação pela qual todos jovens da Guiné têm que passar.




NAS NOITES DE N'DJIMPOL

Nas noites de N’djimpol
vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro.

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando!

Vi braços robustos e livres
sonho campos loiros
espigas dardejando ao sabor do vento
brisas e pássaros cantando
sol e flautas beijando o suor fecundante.

Nas noites de N’djimpol
Vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro...

Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando

Sim,
Vi nas noites de N’djimpol
sonho mamãe terra
sonho compassos rítmicos no capinzal
dilatando a fé do homem-terra
o horizonte e o brilho das nossas mãos.

Oiço o grito das brisas loiras...
na imensidão farta dos campos
sim mamãe terra
firmemente sonho
na certeza gritante
de sermos loiros e fortes

como espigas e o sol

fortes e loiros…
Mamãe terra
Sonho mas juramos-te!




CANTO A SUNDIATA*

Esta é a noite
do perfume
sorriso
brotando
E digo-te
canta flor
mas fita sério!
Este luar-guitarra
é longo e suave
e jovem e sorridente
solfeja e dedilha
refina ancas
emacia o beijo e a ternura
E também
amo
neste tom guitarra
do luar, Sundiata
E digo-te
canta flor
mas fita bem!
Neste luar prata
se atiçam sensibilidades
esqueço-me
e afirmo-me
Como fumos sorridentes
e prateados
em longas andanças
E digo-te
canta flor
mas fita bem!
Esta é a noite
do perfume sorriso
brotando

Os olhos de ver
morrem na doçura prateada do horizonte
Enamoro a cruel dureza das rochas
Caso-me com o cristal mais negro
e triste do debaixo da 1ª terra

E também
sonho
neste tom guitarra do luar, Sundiata

Neste luar prata
perfilo-me entre os lábios
mais usados
Hasteio como estandarte
o sexo de todos os Deuses,
enfim, e da virgem santíssima, também!

E digo-te
canta flor
mas fita sério
Também
agonizo neste tom guitarra do luar, Sundiata
E digo, Amem!
E digo-te — Sundiata:
«abô i fidjo di miséria
ca bu tchora bu sufrimentu»
Porque há sono de dormir
ainda
no solfejo cristalino
de cada nuance pequeno-burguês
se assim é...
em cada coisa, em tudo ou
em cada coisa?!
e digo, que assim seja, Sundiata!

Desenhando
este silêncio interno
esta música permanente
este retrato multifacético do luar e da agonia

Digo-te
não posso adiar a palavra, Sundiata
se pequei contra ti
e porque no
Amem
e Aleluia subescrevendo
Agora?!
E digo-te, Sundiata
canta flor
mas fita bem
Porque
esta é a noite
do perfume
sorriso
brotando.



* Sundiata: Sundiata Keita era o Imperador do Mali, nascido em 1190 em Niani (Reino Mandinga, atual Guiné) e faleceu em 1255. Filho de Naré Maghann Konaté (também conhecido Maghan Kon Fatta ou Maghan Keita) e Sogolon Djata (a mulher búfalo). O épico de Sundjata é contado pelos griots, através da tradição oral. A lenda conta a história de Sundiata um pouco diferente do que realmente aconteceu, era mágica, magia e várias outras coisas. A história verdadeira foi realmente apenas uma guerra que ele venceu e virou rei.




MÃE

Será que feri o teu coração materno?
porque as lágrimas não cesam de te
correr pela face?

Mãe deixa a noite com a sua tristeza,
deixa as aves cantarem livremente
deixa a lua minguante sorrir na plena noite da trevas

Mãe encara a madrugada e o sol nascente,
vê as flore desabrocharem no canteiro livre da nossa terra.
Mamã, se as aves não fossem ingratas dir-te-iam

Onde estou, mas talves os ventos te digam
que aqui estou neste maravilhoso paraiso
onde importa: liberdade, o trabalho e a felicidade!

Mamã, parti, parti buscando uma luz.
lua para a qual o sol é trevas.
A Lua da Liberdde




ESCREVEREI MAIS UM POEMA

viverei mais um dia
e escreverei mais um poema
poema que quebra as correntes
e faz ceder as montanhas!
Escreverei mais um poema
enquanto as minhas células morrem e vivem em mim

poema que desata as âncoras
e solta os navios

Escreverei mais um poema
poema que alimenta a vitalidade
ritmado pelo encadeamento do processo transformador.

Enquanto a minha decomposição
do superior ao inferior não se realizar
escreverei um poema que todas as crianças compreenderão

Enquanto há braços misticamente estendidos
sobre a fortaleza da resignação
escreverei um poema

Poema que será a arma dos oprimidos!
poema que se confunde com os anseios do povos
O MEU POEMA SERÁ A VOZ DO POVO

Enquanto a opressão perturba o cérebro humano
escreverei um poema - VITALIZDO PELA REVOLUÇÃO -
poema que alimenta as condições
para a transformação de velho em novo!
Mas se não conseguir viver mais um dia
se a minha decomposição vier a se realizar
A REVOLUÇÃO FA-LO-Á POR MIM!




O MEU POEMA DEIXARÁ DE SER
UM SIMPLES POEMA

lá onde a minha pátria chora
o meu poema fincará os pés- mesmo rijo-
sobre a terra firme!
e deixará de ser poema
e enxugará todas as lágrimas
e transformar-se-á numa labareda
iluminando os caminhos espinhosos.

Lá onde a agonia ferve
o meu poema cavalgará pelos atalhos da morte,
e transformar-se-á numa barreira contra a morte

descobrindo estrelas nas matas
semeando verdura em todas as negras nuvens.

Quando as noites se profanam
quando há turbilhão de sangue
quando sufoca o crescimento do nosso arroz
o meu primeiro poema se juntará a todos os outros poemas
proliferando transformando-se em orik
engravidando de sangue o amarelo da nossa colheita.
Ak então todos os meus poemas deixarão de ser simples poemas

sairão em noites de luar
e bailarão n’aiê incarnados em n’aiê
transmitindo força e vitalidade
porque o povo jamais dormiu no silêncio



Quando te propus





_____________________


Hélder Magno Proença Mendes Tavares (1956 - Bissau, 5 de junho de 2009), foi um escritor, professor e político da Guiné-Bissau, havendo lutado na guerra de independência do país, na década de 1970.

Desde a adolescência que Proença escrevia poemas, àquele tempo sob a temática anti-colonialista, que resultou na publicação, em 1977, da primeira antologia poética guineense, sob sua coordenação, entre outros, e que também prefaciou, intitulada "Mantenhamos Para Quem Luta!".

Não concluiu os estudos, havendo participado das lutas pela independência do país. Mais tarde, completou a formação no Rio de Janeiro, integrando os quadros do Ministério da Cultura de seu país, e principiando o magistério em História. Havia, antes, sido o responsável pela educação de Bolama.

Na política foi deputado na Assembleia Nacional Popular e membro do Comité Central do PAIGC (Partido único, de orientação marxista, que governou o país da independência em 1974 até a democratização nos anos 1990).

Ocupou, ainda, o cargo de Ministro da Defesa.

Como escritor publicou em vários periódicos, como Raízes (de Cabo-Verde), África (Portugal), e os panfletários Libertação e O Militante, ligados ao PAIGC. Em 1982 publicou o livro "Não posso adiar a palavra", que reuniu seus versos dos tempos de guerrilha.

Em junho de 2009 Hélder foi assassinado numa emboscada militar quando viajava do Senegal, onde residia, para Bissau. O motivo do assassinato está centrado numa presumível responsabilidade pela articulação de um golpe de Estado. A morte de Hélder Proença foi anunciada após o assassinato de Baciro Dabó (ministro da Administração Territorial), candidato às presidenciais, em 28 de junho (2009) e antigo aliado do ex-presidente Nino Vieira, assassinado em março do mesmo ano. Proença foi morto, juntamente com seus seguranças e motorista, após uma troca de tiros com uma força do governo que o prenderia. Outras versões são apontadas, o que revela uma complicada trama pelo poder neste pequeno país da África ocidental e também a multiplicidade de narrativas que se pode articular em torno de fatos históricos e políticos.


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