domingo, 31 de julho de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (II) 12bs - fome é fome

becos sem saída


(II) o descolocado
12bs – fome é fome

baitasar


É uma atrapalhação ser homem sem emprego, dá pena ver o homem descolocado ou recolocado com salário curto e mês espichado, sem benefício, carente de tudo. O desalento da fome adoece o corpo e a cabeça incapaz de reagir acaba entristecendo. Termina acreditando que é a sina da vida e não vai mudar.

a cueca manchada e a calça no molho da melancolia, o sabão sem cheiro de perfume que encanta a limpeza, santa maria esfregando vigorosa, sem rancor, a onda do vento gelado aparece zumbindo pequeno, nada ali é aparecimento do encantamento nem a casca do ovo da cobra quer se quebrar

É triste, Virgílio. memória suava e enxugava o suor na manga que esfregava a pingação, nunca fugiu daquela demanda da lavação, é mulher valente, não tinha flores na casa, fazia frio gelado, sempre com uma prece em seus lábios, os miúdos brincavam na escola. na vila, os miúdos ficavam em casa, nada saia do controle da memória, Mas tu quer saber o que me deixa enfurecida?

esperou o virgílio responder que queria saber o que a deixava enfurecida, a resposta foi o silêncio, aquela sina do silêncio desinteressado, desaparecido e desatento, fingindo descuido na escutação, desatrevido, Esse não tem mais valia de jogo nenhum, resmungava do seu jeito mais natural, esqueceu das palavras que me deixava acessa. Não diz mais Eu gosto de você, minha preta.

ela se respondeu, e pronto

O que me deixa enfurecida é a mulherada sempre esquecida, deixada de lado. É menosprezada que se diz, né? Se não engravida é pouca mulher, se engravida e não parir é presa, se engravida mais que devia é uma vaca sem coragem pra tirar. Uma puta que não fecha as pernas ou uma bruxa que não gosta de dar. Tá acompanhando? Não importa, né? O exemplo pra molecada é ser dona-de-casa, amparo e amor, recebendo migalhas. Com pouco fazendo muito, multiplicando o pão nosso de cada dia. Quanto mais apanha mais precisa obedecer a hierarquia. Comigo não tem quem me mande ou me encoste. Então, calma com esse luzimento de tristeza. Esse aí do lado tem uma mulher gigante trabalhando duríssimo em casa, todo dia, cada dia, sem tempo pra choramingar, pagando o preço de ser mulher recatada e do lar.

um mundo de violência esquecida, homem e mulher sem a dignidade do próprio sustento, sem o respeito da sua casa – ou alugada em algum cafundó esquecido com muito mosquito e rato e alagamento – em algum beco escuro e sem saída

estorvo

marginal

libambo

trabalhador que se considera respeitado tem um patrão para enriquecer, outro beco sem saída na história da escravidão do trabalhador

trabalhador que finge não ter patrão para enriquecer é empreendedor de ocupação descartável, mais um cavalo da cavalaria

maria memória esfrega, funga, tosse, ensaboa, esfrega com mais força, torcida se mergulha na água, Não acordem a irmã de vocês! Não quero saber de brigas! Escutaram?! Agora vão... estudem! Escutem a professora, todas as manhãs do mesmo jeito, a mesma ladainha, torce, examina, sacode, virgílio descrava as vistas com desinteresse, as mãos não se metem mais com interesse, também resmunga sem a fome esfomeada de antes, Maria tá ficando sem molde de mulher. Um desenho de trapo, um corpo cansado sem a mesma disposição no recreio. Não tá provocativa, parece mais conformado que saciado

o silêncio se quebrava com as batida da roupa ensaboada na tábua, os gritos com os miúdos, as recomendações de comportamento na escola, Vocês são preto. E preto precisa fazer melhor que os branco porque se fizer igual que os branco vai perder... E nada de correr na rua, a polícia adora atirar em preto que corre, o dia cinza, E não peguem nada que não seja de vocês, as pancadas, trabalhava sozinha no tanque e na casa que já chamou de barraco – já teve feitio de barraco –, foi ajeitando pouco a pouco, daqui e dali, até ter os contornos e afetos de uma casa

as mãos seguravam a roupa suja e se mergulhavam na água, marido e mulher compadres, estava tudo bem, engoliram seus sonhos sem se darem conta, ele na penumbra da cachaça, ela na molhação do tanque, o dia seguia cinza, restaram os fuxicos para alívio do silêncio

um afeto desinteressado

o vizinho desempregado – maria memória também era vista como desempregada, a molhação do tanque era obrigação, a varrição da casa, a comida preparada, isso não é trabalho, é outra coisa, é feito igual todo dia e ninguém percebe o seu fazimento, serviço da casa não enriquece o patrão – parecia desanimado enquanto ia e vinha

descuidado

desafeiçoado

sonolento

vizinho novo sem aceno interessado, Bom dia ou boa tarde, muito menos, Boa noite, bem que maria memória tenta ajudar nas cortesias, o vizinho discreto e cabisbaixo, sem entusiasmo, sem mandingas, disfarçado, sem muitas palavras, pelo menos, ainda não foi parado no boteco, nem no dia nem à noite

em casa, os memórias também não são de muitas palavras, um fuxico ou outro que leva para outro disse que não disse ou disse que disse, já as descomposturas são com gritos sem inocência e ardentes, as cantigas ficaram desencantadas

só não conseguem engolir a fome, Virgílio... faz o que tiver que fazer!

têm o costume e gosto no trato diário por olhares e silêncios, os dias e noites eram assim, fuxicos curtos e desinteressados para alívio da carne, às vezes, muito raramente, o fuxico prossegue sem amolecimento, provocativo, Pobre infeliz, vai dar tudo certo, E o que pode ainda dar errado, Não sei, parece sempre fugindo, Será que matou alguém, Vai saber, todo mundo tem mania e esquisitice, Eu é que sei, O que foi, Nada, Deixa pra lá, Fala, Vai dormir, Mais que merda, Fala baixo, homem sem Deus... vai acordar a Futuro, Então, diz o que tava pensando, A mania da cachaça, Lá vem a mesma ladainha. Quantas vezes preciso repetir? Eu paro quando eu quero, É melhor estar bêbado que não sentir nada

dói na memória ver aquele seu homão – ela nem sabe mais o porquê desse aborrecimento – voltar ao fim do dia, trocando os pés de um lado a outro, sempre do mesmo jeito, ombros curvados, olhar fixo no chão, torto das pernas, vacilante, desguarnecido das mandingas, um fantasma daqueles dias de tocar o berimbau

uma semana inteira sem gritos e ameaças, sem sentir nada, de repente os olhares de amparo se renovando, nada parecido com o vizinho, as promessas de boa vizinhança, Bom dia, vizinho, Bom dia, senhora, nenhum encorajamento, duas casas sem rosto, sem a transparência dos pensamentos, a cara fechada, um vulto silencioso que viveu o seu apogeu

três crianças, todas da memória

na casa silenciosa, não se tem notícia de crianças, Ainda bem, é muito difícil sentir a fome nos filhos. Crianças são devoradoras, estômagos de avestruz esfomeado. O frio não vem conforme o tamanho do cobertor, tampouco a fome vem conformada com o tamanho do bolso, fome é fome!

para o bem da verdade e a mentira não prevaleça, nestes tempos de mentiras piedosas, ódios descontrolados e preços absurdos, o filho do meio da memória não tem por jeito comer carne – o virgílio agradece, silenciosamente, a pouca vontade do miúdo –, precisa dos empurrões de mãinha, por vezes, das súplicas, até que cansa de pedir e brincar, grita insultos, faz ameaças, é quando memória perde o jeito suave de conversar com os olhos e convidar com um sorriso, Engole!

os cabelos curtos, sem franja, nunca teve franja recortada – ou será que teve? não lembra –, Engole, uma fita desalinhada e gordurosa lhe enfeita, os caminhos do sangue se dilatam, quase rasgam, Engole, nada nela se sossega enquanto não vê aquele bolo de carne engolido, um bolo que dança e rebola na boca, uma luta desigual, para lá e cá, o miúdo mastiga de um lado e outro, morde, aperta, embola, abocanha e não traga, Engole!

as lágrimas, o bolo de carne, a falta de costume com aquele gosto de animal morto, os nervos na flor da pele, o estômago embrulhado, medo, tortura, exaustão, o miúdo xendengue chorando, o ranho escorrendo, a língua lambendo, memória gritando, Engole engole engole!

o miúdo vomita, não engole

ela sempre limpa e chora

mãe é mãe, Só se sente falta da água quando o pote está vazio, é verdade, quando não tem mais jeito é preciso engolir a saudade


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Leia também:

becos sem saída (I) 01bs - as águas que vêm e vão
becos sem saída (I) 02bs - histórias desamarradas e borradas
becos sem saída (I) 03bs - sobre nós e histórias borradas
becos sem saída (I) 04bs - cacete pra todo lado!
becos sem saída (I) 05bs - as mãos amarradas
becos sem saída (I) 06bs - o vazio da botina
becos sem saída (I) 07bs - maria futuro
becos sem saída (I) 08bs - um lugar para voltar
becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?
becos sem saída (II) 10bs - sem emprego, sem utilidade
becos sem saída (II) 11bs - notícia ruim
becos sem saída (II) 12bs - fome é fome
becos sem saída (II) 13bs - os tempos eram assim...

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