Ópera do malandro
Ópera do malandro
PRIMEIRO ATO
CENA 3
Casa de Duran; sentado à escrivaninha, Duran fala ao telefone, enquanto Vitória anda de um lado para o outro
DURAN
Olha aí, meu camarada, diga ao Chaves que eu não to telefonando pra cobrar dívida não. Pode até dizer que é pra perdoar a dívida, tá? Perdoar, é! Quero ver se agora ele não me atende. . . Saiu mesmo, é? Casamento de alta patente, é? Capitão de fragata? Almirante,? Sei... Então, assim que ele chegar, diz que é pra me ligar urgente! Toma nota. . .
VITÓRIA
Nunca me convidaram pra casamento de alta patente. Aliás, nunca convidam a gente pra nada. Ontem mesmo o Guinie deu uma festa no Fluminense e convidou "le tout Rio". Só ficou de fora o sapo, o time de futebol e adivinhe quem mais?
DURAN
Fernandes de Duran. É pra ligar sem falta, viu? É assunto de interesse dele. (Desliga)
VITÓRIA
O que é que eles pensam que são? Aristocracia brasileira? Faz-me rir, ha ha ha. Os Monteiro da Fonseca têm um pé na cozinha, já reparou nas fotografias? O tio dos Castro Melo enriqueceu com a febre amarela. O pai dos Vasconcelos roubava cavalo em Araraquara. Os Santo Espírito vieram corridos de Portugal. Os Frink são judeus, os Salum são turcos e os Masserotti são uns carcamanos da Calábria. . . Quer saber duma coisa? Se me convidarem pro Juju e Balangandãs, eu não vou. Minha mãe era francesa! Legítima!
DURAN
Sua filha da mãe!
VITÓRIA
Como disse?
DURAN
Como é que você se atreve?. . . Vitória, pergunta à tua filha como é que ela tem coragem de encarar seus pais!
VITÓRIA
Minha filha? Oh, Teresinha! Como você demorou!
TERESINHA
Mamãe, diga ao papai que eu só vim me despedir de você e apanhar duas mudas de roupa.
VITÓRIA
Minha filha, que bom que você veio! É que espalharam um boato horrível a teu respeito. Imagina que inventaram que você se casou com um contraventor! Um patife! Um pagão! Daí o teu pai ficou nervoso, e com toda a razão. Teresinha, pelo amor de Deus! Desminta logo essa falácia se você não quer matar teu pai de desgosto e tua mãe do coração. . .
TERESINHA
Se você tá se referindo ao capitão Max Overseas, mamãe, eu casei sim.
VITÓRIA
Ohhhh! Me segura que deu bambeira nas pernas. . . (Vai desmaiar; Teresinha antecipa-lhe o porta-pó que está na mesa)
TERESINHA
Cheira aqui teu rapé, mãe. Duas fileiras.
DURAN
Vitória, assim que você se refizer, diga à sua filha que ela tá proibida de se encontrar de novo com aquele canalha!
TERESINHA
Mamãe, eu tô casada e emancipada. Você sabe que o lugar da esposa é ao lado do marido.
VITÓRIA
Filha, filha, onde é que você anda com a cabeça? Mulher de soldado e mulher de bandido não têm marido. E agora? Me diga do que é que você pretende viver?
DURAN
Cortei a tua mesada, viu?
TERESINHA
Ora, mamãe, igualzinho a todas as mulheres decentes do mundo. Vou viver do trabalho do meu esposo.
DURAN
Esse capitão nunca trabalhou na vida. É ladrão!
TERESINHA
Pode chamar de ladrão quanto quiser que eu nem ligo. Ninguém mais liga pra essas coisas. Aquele alemão que escreve pra teatro, como é mesmo o nome dele?
VITÓRIA
Einstein.
TERESINHA
Não, não. É Bertolt Brecht. Ele também não é ladrão? Me disseram que esse Brecht rouba tudo dos outros e faz coisas maravilhosas. Então, ninguém quer saber de onde vem a riqueza das pessoas. Importa é o que as pessoas vão fazer com essa riqueza. Max, por exemplo, não vai guardar dinheiro no colchão nem vai emprestar a juros de agiota. E muito menos vai morar numa casa infecta da Lapa, só pra fiscalizar os negócios de perto! O que Max vai fazer é dar uma bruta recepção no nosso futuro bangalô na serra. Você tá convidada, mãe.
VITÓRIA
Teresinha, esse tarado te comprou com conversa de bangalô? Virou criança? Ah, não, fala a verdade. O que foi que você viu de aproveitável nesse homem?
TERESINHA
Eu não vi nada, casei no escuro. Casei por amor.
DURAN
Que isso?
TERESINHA
O amor não tem fronteiras. O amor destrói barreiras. Só o amor constrói. E nós vamos construir um bangalô em Teresópolis! (Sobe as escadas cantarolando)
DURAN
Onde foi que ela ouviu tanta cretinice?
VITÓRIA
Aqui em casa é que não foi.
DURAN
Nunca demos mau exemplo.
VITÓRIA
É. Só pode ser influência dessas malditas novelas da Rádio Nacional.
DURAN
Eu atiro esse rádio pela janela!
VITÓRIA
Teresinha, duas pessoas podem até se amar que nem nas novelas. Só que na vida real, se você ama uma pessoa, é lógico que não vai casar com ela. Casa com qualquer outro. Veja teu pai e eu. Como é que esse casamento durou esse tempo todo? Aqui ninguém ama nem desama.
DURAN
Nem fede nem cheira.
VITÓRIA
Nem bate, nem alisa. Então é casamento pra vida inteira. É pão pão, queijo queijo. É um tijolo.
DURAN
É sólido como um banco.
VITÓRIA
Porque ninguém suporta os defeitos da pessoa amada por mais de um fim de semana em Paquetá. Depois a pessoa amada vai ficando é muito chata. O amor vai virar exigência e exigência vai virar frustração que vai virar rancor que vai virar ódio e o ódio vai ser mortal. Aí não tem perdão, Teresinha. Só se perdoa a quem não se ama.
A orquestra ataca em ritmo de valsa.
Teresinha canta "Teresinha".
O primeiro me chegouComo quem vem do floristaTrouxe um bicho de pelúciaTrouxe um broche de ametistaMe contou suas viagensE as vantagens que ele tinhaMe mostrou o seu relógioMe chamava de rainhaMe encontrou tão desarmadaQue tocou meu coraçãoMas não me negava nadaE assustada eu disse nãoO segundo me chegouComo quem chega do barTrouxe um litro de aguardenteTão amarga de tragarIndagou o meu passadoE cheirou minha comidaVasculhou minha gavetaMe chamava de perdidaMe encontrou tão desarmadaQue arranhou meu coraçãoMas não me entregava nadaE assustada eu disse nãoO terceiro me chegouComo quem chega do nadaEle não me trouxe nadaTambém nada perguntouMal sei como ele se chamaMas entendo o que ele querSe deitou na minha camaE me chama de mulherFoi chegando sorrateiroE antes que eu dissesse nãoSe instalou feito um posseiroDentro do meu coração
A orquestra silencia
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
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