Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo IV
Politicamente suspeita!
Era visível que todo mundo se esforçava por dignificar e distinguir o domingo. A
administração e os hóspedes ajudavam-se mutuamente nesse sentido. Logo com o café da manhã
já se serviu cuca de amêndoas; junto de cada lugar à mesa havia um pequeno vaso com algumas
flores, cravos da montanha e rosas alpinas, que os cavalheiros prendiam à lapela. O Sr. Paravant,
promotor público de Dortmund, até vestira para essa ocasião um fraque preto com colete a
fantasia. Os vestidos das senhoras tinham caráter festivo e vaporoso. Mme... Chauchat apareceu à
hora do café, trajando um amplo robe de rendas com mangas japonesas. Após ter fechado
estrondosamente a porta envidraçada, fez uma espécie de continência, para apresentar-se com graça a toda a sala, e só então encaminhou-se, a passo silencioso, para a sua mesa. Esse robe
assentava-lhe tão magnificamente, que a vizinha de Hans Castorp, a professora de Königsberg, se
mostrava toda entusiasmada. Até mesmo o casal bárbaro da mesa dos “russos ordinários” levava
em conta o dia do Senhor; o marido substituíra a jaqueta de couro por uma sobrecasaca curta e as
botinas de feltro por sapatos de couro; a esposa, embora usasse também dessa vez o boá de
penas pouco limpo, exibia uma blusa de seda verde, com gola pregueada. Ao vê-los, Hans
Castorp, de cenho carregado, mudou de cor, o que, nos últimos tempos, lhe acontecia com certa
frequência.
Logo depois do café da manhã começou o concerto no terraço. Reuniam-se ali
instrumentos de sopro de toda espécie, para tocar alternadamente músicas alegres e solenes, até
quase a hora do almoço. Durante o concerto, o repouso não era estritamente obrigatório. Se bem
que alguns pensionistas desfrutassem o deleite musical do alto das sacadas e também no alpendre
houvesse algumas espreguiçadeiras ocupadas, achava-se a maioria dos hóspedes em torno das
mesinhas brancas, na plataforma coberta. Uma turma de alegres vivedores, julgando por demais
correto sentar-se numa cadeira, instalara-se nos degraus de pedra da escadaria que conduzia ao
jardim, e ali manifestava muita animação. Eram jovens enfermos de ambos os sexos, que Hans
Castorp já conhecia em grande parte, ou de nome ou de vista. Hermine Kleefeld pertencia a essa
roda, bem como o Sr. Albin, que fazia circular uma grande caixa florida com chocolates, e
convidava a todos, enquanto ele próprio nada comia, limitando-se a fumar com ar paternal
numerosos cigarros de ponta dourada. Além do rapaz beiçudo da “Sociedade Meio-Pulmão”,
viam-se ainda a Srta. Levi, magra e de cor de marfim como sempre, um moço louro, de nome
Rasmussen, que deixava pender frouxamente as mãos, quais barbatanas, à altura do peito, e a Srª.
Salomon, de Amsterdam, matrona opulenta, de vestido vermelho, e que igualmente se unira à
mocidade. Aquele moço alto, de cabelos ralos, que sabia tocar a marcha nupcial do Sonho de uma
noite de verão, estava sentado atrás dela, cingindo-a com os braços pontudos e cravando-lhe na
nuca trigueira o olhar melancólico. Havia ainda uma mocinha ruiva, de nacionalidade grega;
outra, de origem desconhecida, com um perfil de anta; o garoto guloso com os óculos de lentes
grossas; outro rapazote de quinze ou dezesseis anos, com um monóculo fincado no olho e que,
ao tossir, levava à boca a unha comprida do dedo mindinho, da forma duma colherinha para sal,
dando a impressão de ser um perfeito imbecil, e outras pessoas mais.
O rapaz de unha comprida – contou Joachim em voz baixa – estava pouco doente ao
chegar. Não tivera febre, e seu pai, um médico, mandara-o por mera precaução ao sanatório,
onde, segundo a opinião do Dr. Behrens, deveria ficar uns três meses. Agora, porém, decorrido
esse prazo, tinha 37,8 a 38 e ia bastante mal. Verdade é que se comportava de modo tão
insensato, que merecia umas bofetadas.
Os dois primos tinham só para si uma mesinha um pouco distante das demais, visto Hans
Castorp fumar um charuto, para acompanhar a cerveja preta que levara consigo depois do café da
manhã. De tempo em tempo conseguia achar gosto no tabaco. Um pouco tonto pela cerveja e a
música, que, como sempre, fazia com que entreabrisse a boca e inclinasse a cabeça para o lado,
contemplava, com os olhos avermelhados, a vida despreocupada de estação de cura que o
rodeava. Absolutamente não o incomodava a consciência do fato de que toda essa gente escondia
no seu interior um processo de decomposição, com pouca probabilidade de se deter, e que a
maioria se achava num estado levemente febril; pelo contrário, esta consciência contribuía para
aumentar a singularidade do ambiente e emprestar-lhe um certo encanto intelectual... Bebia-se
limonada gasosa em torno das mesinhas. Na escadaria tiravam-se fotografias.
Alguns permutavam selos, e a grega ruiva desenhava a lápis, num bloco, o retrato do Sr.
Rasmussen; depois, não quis mostrar-lhe o desenho; rindo-se e exibindo os grandes dentes
separados, esquivava-se de um para outro lado, de maneira que ele levou muito tempo antes de
lhe arrancar o bloco. Hermine Kleefeld, com os olhos semicerrados, quedava-se no seu degrau,
batendo, com um jornal enrolado, o compasso da música, enquanto o Sr. Albin lhe prendia na
blusa um ramalhete de flores silvestres. O rapaz beiçudo, sentado ao pé da Srª. Salomon,
conversava com ela, voltando a cabeça para trás, ao passo que o pianista de cabelos ralos não
cessava de fitar a nuca da matrona.
Chegaram os médicos e meteram-se entre os hóspedes, o Dr. Behrens no jaleco branco, e
o Dr. Krokowski com a sua peculiar blusa preta. Passaram ao longo da fileira de mesinhas, e a
cada grupo de hóspedes o conselheiro áulico dizia jovialmente uma pilhéria qualquer, de forma
que uma esteira de hilaridade lhe marcava o caminho. A seguir, desceram pela escada, rumo à
mocidade, cuja parte feminina, requebrando-se e lançando olhares de soslaio, logo se agrupou em
torno do Dr. Krokowski, ao passo que o médico-chefe, em homenagem ao domingo, exibia ao
sexo forte o seu truque dos cordões de botina: colocou o pé enorme num degrau superior,
desatou a laçada, apanhou os cordões com uma mão só, empregando nisso uma técnica especial,
e conseguiu, sem se servir da outra, prendê-lo novamente aos ganchinhos, de forma cruzada;
habilidade que despertou a admiração de todos, e que alguns, em vão, tentaram imitar.
Mais tarde apareceu também Settembrini no terraço. Apoiando-se na bengala, saiu da sala
de refeições. Como sempre, trajava o paletó comprido e as calças amareladas. Com um ar
distinto, vivo e crítico, olhou em torno e aproximou-se então da mesa dos primos.
– Ah, bravo! – exclamou e pediu licença para sentar-se.
– Cerveja, tabaco e música – disse. – Eis a sua pátria! Vejo que o senhor acompanha o
espírito nacional, meu caro engenheiro. Folgo em ver que está no seu elemento. Deixe que eu
participe do seu harmonioso bem-estar.
Hans Castorp corrigiu as feições, o que, aliás, já procurara fazer logo que avistara o
italiano. Em seguida respondeu:
– O senhor chega tarde ao concerto, Sr. Settembrini. Já está quase no fim. Não gosta de
música?
– Por ordem superior, não – replicou Settembrini. – Nem quando é ditada pelo
calendário. Não simpatizo com ela, quando tem um cheiro de farmácia e me é ministrada pelas
autoridades para fins sanitários. Estimo ainda um pouco a minha liberdade, ou pelo menos aquele
restinho de liberdade e dignidade humana que sobra a gente como nós. Em ocasiões como esta,
costumo comparecer como visitante, assim como o senhor faz aqui em cima. Fico durante um
quarto de hora e depois vou-me embora. Isso me dá a ilusão de independência... Não digo que
seja mais do que uma simples ilusão; seja como for, a mim causa certa satisfação. Com seu primo,
o caso é diferente. Para ele, isto aqui é serviço. Não é, tenente? O senhor considera o concerto
como parte dos seus deveres. Ah! Sim, eu sei que o senhor conhece o truque de conservar o seu
orgulho em plena escravidão. É um truque desconcertante. Não há muitos na Europa que
entendam disso. E a música? O senhor não me perguntou se eu era amante da música? Bem, se o
senhor usou a palavra “amante” – Hans Castorp absolutamente não se lembrava de tê-la
empregado –, não escolheu mal a expressão, porque ela tem um quê de frivolidade afetuosa. Pois
é, estou de acordo. Sim, senhor, sou amante da música, o que não significa que a estime
particularmente, assim como estimo e amo, por exemplo, a palavra, o veículo do espírito, o
utensílio e o resplandecente arado do progresso... A música? Representa ela tudo o que existe de
semi-articulado, de duvidoso, de irresponsável, de indiferente. O senhor talvez me objete que ela
pode ser clara. Mas também a Natureza pode ser clara; também um arroio o pode ser, e de que
nos adianta isso? Não é essa a clareza verdadeira; é uma clareza sonhadora, despida de
significação, uma clareza que a nada obriga nem chega a ter consequências; é perigosa porque
induz a gente à complacência satisfeita... Suponhamos que a música tome uma atitude de
magnanimidade. Bem, nesse caso, ela inflamará os nossos sentimentos. No entanto, o que
importa é inflamar a nossa razão. Aparentemente a música é toda movimento, e contudo suspeito
nela o quietismo. Permita que eu leve a minha tese ao exemplo: tenho contra a música uma
antipatia de caráter político.
A essa altura da conversa, Hans Castorp não pôde deixar de bater com a mão sobre o
joelho e de exclamar que nunca na vida ouvira coisa semelhante.
– Mesmo assim, convém ponderar a ideia – disse Settembrini sorrindo. – A música é
inestimável como meio supremo de produzir entusiasmo, como força que faz avançar e subir,
mas só para pessoas cujos espíritos já estejam preparados para os seus efeitos. Porém, é
indispensável que a literatura a preceda. Sozinha, a música não é capaz de levar o mundo avante.
Para a sua pessoa, meu caro engenheiro, ela representa indubitavelmente um perigo. Isto
verifiquei logo ao chegar, na sua fisionomia.
Hans Castorp começou a rir.
– Ora, não olhe o meu rosto, Sr. Settembrini! O senhor não imagina até que ponto me
incomoda o ar aqui em cima. Aclimatar-me custa-me muito mais do que eu pensava.
– Creio que o senhor se engana.
– Mas por quê? Ainda, me sinto cansado e quente como o diabo.
– No entanto, me parece que devemos ficar gratos à direção por estes concertos – disse
Joachim circunspectamente. – O senhor considera o assunto de um ponto de vista superior, Sr.
Settembrini, por assim dizer, como escritor, e nesse sentido não quero contradizê-lo. Mas tenho a
impressão de que nós aqui deveríamos aceitar com gratidão um pouquinho de música.
Absolutamente não sou um entendido em música, e aquilo que tocam para nós não é grande
coisa. As peças não são nem clássicas nem modernas. É uma charanga e nada mais. Mesmo
assim, representa uma variação agradável que enche de uma forma decente algumas horas; quero
dizer que as assinala e as ocupa, de modo que elas tenham algum valor próprio, ao passo que em
geral se desperdiçam aqui horas e dias e semanas de um modo simplesmente pavoroso. Olhe,
essas pecinhas insignificantes duram sete minutos, em média, não é? E esses sete minutos têm
alguma coisa em particular, têm princípio e têm fim, destacam-se e são, de certo modo,
preservados da ameaça de se perderem sem mais nem menos na monotonia geral. Além disso,
são ainda muitas vezes subdivididos pelas partes da peça, e estas, por sua vez, se compõem de
compassos, de maneira que sempre acontece alguma coisa e cada instante recebe um certo -
sentido, ao qual alguém se pode agarrar, ao passo que normalmente... Não sei se me expressei...
– Bravo! – gritou Settembrini. – Bravo, tenente!
O senhor definiu muito bem um fator incontestavelmente moral na natureza da música; a
saber, que ela mede o curso do tempo de uma forma especial e cheia de vida, e assim lhe
empresta vigilância, espírito e preciosidade. A música desperta o tempo; desperta a nós, para
tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta... e portanto é moral. A arte é moral na
medida em que desperta. Mas que sucede quando ela faz o contrário? Quando entorpece,
adormenta, estorva a atividade e o progresso? Também disso a música é capaz; sabe
perfeitamente agir como ópio. Uma influência diabólica, meus senhores! O ópio é uma obra do
Diabo, porque causa apatia, estagnação, passividade, inatividade servil... Há na música um
elemento perigoso, senhores. Insisto no fato da sua natureza ambígua. Não exagero ao declarar
que ela é politicamente suspeita.
Settembrini continuou externando ideias desse gênero, e Hans Castorp escutava, sem, no
entanto, compreendê-lo perfeitamente, em primeiro lugar por causa do cansaço, e em segundo
porque se sentia distraído pela animada atividade dos jovens alegres espalhados pela escadaria.
Não o enganavam seus olhos? Que era isso? A senhorita de cara de anta estava ocupada em
pregar um botão na presilha de joelho, nos calções de golfe do jovem de monóculo. A asma
embargava a respiração da mocinha, enquanto o rapaz tossia, cobrindo a boca com a unha
comprida semelhante a uma colherinha de sal. Verdade era que ambos estavam doentes, e todavia
essa conduta não deixava de pôr em evidência os costumes estranhos que ali em cima reinavam
entre a mocidade. A banda de música tocava uma polca...
continua pág 074...
___________________
___________________
Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Politicamente suspeita!
___________________
A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário