sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A Montanha Mágica - Compra necessária (b)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Compra necessária

continuando...

Também Joachim estava um pouco perplexo, e Settembrini permaneceu calado, apenas alçando os sobrolhos, como quem, por cortesia, aguarda o fim da fala de um interlocutor. Na realidade, porém, tinha a intenção de deixar chegar o momento em que Hans Castorp se atrapalhasse todo. Por fim respondeu:

Sapristi, meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo, um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez. O método mais acertado de despertar no senhor repugnância contra ela talvez seja dizer-lhe que é velha e feia. Tem ela a sua origem em épocas supersticiosas, acossadas de remorsos, e nas quais a ideia do humano, privada de toda dignidade, degenerara a ponto de se tornar uma caricatura, épocas angustiadas, que consideravam a harmonia e o bem-estar coisas suspeitas, diabólicas, ao passo que a debilidade equivalia a um passaporte para o Céu. Mas a Razão e o Iluminismo dissiparam essas sombras que pairavam sobre a alma da humanidade; verdade é que ainda não terminaram a sua obra, e a luta continua. Esta luta, meu caro senhor, chama-se trabalho, trabalho terreno, trabalho em prol da Terra, da honra e dos interesses da humanidade. E temperadas, dia a dia, por essa luta, aquelas forças acabarão por libertar o Homem e por guiá-lo pelos caminhos do progresso e da civilização, rumo a uma luz cada vez mais clara, mais sua e mais pura.  

“Puxa!”, pensou Hans Castorp, espantado e confuso. “Mas isto soa como uma ária de ópera! Como é que provoquei esse discurso? Ele me parece, aliás, um pouco árido. Por que fala o homem constantemente do trabalho? Sempre insiste no trabalho, embora aqui em cima isto venha um pouco fora de propósito.” Finalmente respondeu:

– Muito bem, Sr. Settembrini. É mesmo notável como o senhor sabe falar. Essas coisas não poderiam ser ditas de um modo... de um modo mais plástico...

– Um retrocesso – prosseguiu Settembrini, enquanto erguia o guarda-chuva por cima da cabeça de um transeunte –, um retrocesso espiritual em direção aos conceitos desses tempos tenebrosos, atormentados... Creia-me, meu caro engenheiro, que isso é uma doença; uma doença explorada a fundo, para a qual a ciência conhece diversas denominações; uma deriva da terminologia estética e psicológica, e a outra, da política. São termos escolares, que nada têm a ver com o nosso tema, e dos quais o senhor pode perfeitamente prescindir. Mas, como tudo se encadeia na vida espiritual, e uma coisa se depreende da outra, como não se pode estender ao Diabo nem sequer o dedo mínimo, sem que ele logo agarre a mão inteira e com ela todo o homem... Como, por outro lado, um princípio são somente pode gerar efeitos sadios, sendo indiferente qual o ponto de partida – queira, pois, o senhor gravar na memória que a doença, longe de ser nobre e por demais digna de reverência para ser compatível com a estupidez, representa, pelo contrário, uma humilhação... Sim, senhor, uma humilhação dolorosa do Homem, um insulto à ideia, um rebaixamento que no caso individual pode merecer tolerância e cuidado, mas que seria uma aberração homenagear espiritualmente – grave isto na memória! –, uma aberração e o início de todas as demais aberrações espirituais. Aquela mulher que o senhor mencionou... Nem quero me lembrar do nome dela... Ah, sim, a Srª. Stöhr, muito obrigado... Bem, não é, ao que me parece, o caso dessa criatura ridícula o que coloca o sentimento humano diante de um dilema, para usar as suas palavras. Estúpido e doente -meu Deus, isto são as peculiaridades da própria miséria; o caso é simples, e nada nos resta a fazer senão sentir compaixão e encolher os ombros. O dilema, meu caro senhor, a tragédia começa onde a Natureza se mostrou bastante cruel para destruir, ou para tornar de antemão impossível, a harmonia da personalidade, associando um espírito nobre e cheio de vitalidade a um corpo pouco apto para a vida. O senhor conhece Leopardi, meu caro engenheiro? Ou o senhor, tenente? Um poeta infeliz da minha terra, um corcunda enfermiço, com uma alma primitivamente grande, mas rebaixada sem cessar pela miséria do seu corpo e arrastada aos abismos da ironia, uma alma cujas lamentações dilaceram o coração. Ouçam isto!

E Settembrini pôs-se a recitar em italiano, deixando as sílabas se derreterem na língua, agitando a cabeça e às vezes cerrando os olhos, sem se preocupar com o fato de que seus companheiros não entendiam uma só palavra. O que lhe importava era visivelmente saborear a beleza da sua prosódia e a força da sua memória, e exibi-las diante do auditório. Finalmente disse:

– Mas os senhores não compreendem. Estão ouvindo sem perceber o sentido doloroso dos versos. O aleijado Leopardi – é preciso sentir essa desgraça na sua plenitude, cavalheiros – carecia sobretudo do amor das mulheres, e foi isso, antes de mais nada, que o tornou incapaz de impedir o definhamento da sua alma. O esplendor da glória e da virtude empalidecia ante seus olhos; a Natureza afigurava-se-lhe malvada – ela é realmente malvada, estúpida e malvada; neste ponto concordo com ele – e ele caiu no desespero. É horrível dizê-lo: ele desesperou da ciência e do progresso. Eis, meu caro engenheiro, um exemplo de autêntica tragédia. Aqui o senhor encontra o seu “dilema para o sentimento humano”, e não no caso daquela mulher, de cujo nome recuso terminantemente carregar a minha memória... Não me fale da “espiritualização” que pode resultar da enfermidade; por amor de Deus, não faça isto! Uma alma sem corpo é tão desumana e horripilante quanto um corpo sem alma. A primeira é, aliás, uma rara exceção, e o segundo, o mais comum. Via de regra é o corpo que exubera, açambarca toda a vida e toda a importância, e se emancipa da maneira mais asquerosa. Um homem que vive enfermo é corpo e nada mais, e nisto está o anti-humano, o aviltante... Na maioria das vezes não vale mais que um cadáver... 

– Engraçado! – exclamou Joachim de súbito, inclinando-se para a frente, a fim de olhar o primo, que caminhava do outro lado de Settembrini. – Não faz muito, você disse uma coisa bem parecida. 

- Será? – tornou Hans Castorp. – Bem, pode ser que uma ideia semelhante me tenha passado pela cabeça. 

Settembrini permaneceu calado durante alguns momentos, antes de dizer:

– Tanto melhor, meus senhores. Tanto melhor se assim é. Longe de mim a intenção de lhes expor uma filosofia original. Não é isto o que me cabe fazer. Se o nosso engenheiro, espontaneamente, já chegou a observações análogas, confirma-se a minha opinião segundo a qual ele é um diletante do espírito e simplesmente se entrega, à maneira dos jovens talentosos, a experiências com toda espécie de conceitos possível. Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual tudo já foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseja manifestar-se... Os senhores fizeram compras? – perguntou então num tom diferente.

– Não, senhor, nada de especial – respondeu Hans Castorp. – Quer dizer...

– Compramos alguns cobertores para meu primo – respondeu Joachim displicentemente. 

– É para o repouso... Com esse frio de rachar... Dizem que devo observar o regime durante as semanas da minha estadia – explicou Hans Castorp, rindo e baixando os olhos. 

– Ah? Cobertores! Repouso! – exclamou Settembrini. – Sim, sim, sim! Com efeito: placet experiri – repetiu, com pronúncia italiana. Depois se despediu, pois, cumprimentados pelo porteiro coxo, acabavam de entrar no sanatório. No vestíbulo, Settembrini tomou o caminho para os salões, a fim de ler os jornais antes do almoço, segundo disse. Parecia querer gazear o segundo repouso.  

– Deus me livre! – desabafou Hans Castorp, quando estava com Joachim no elevador. – É mesmo um pedagogo. Ele já nos disse outro dia que tinha uma veia pedagógica. E a gente deve cuidar-se na presença dele e não dizer uma palavra indevida, senão segue logo uma preleção que não acaba nunca. Mas vale a pena ouvi-lo falar. Cada palavra lhe sai da boca tão arredondada e apetitosa, que sempre me faz lembrar pãezinhos frescos.

Joachim deu uma risada. 

– Não lhe diga isso. Creio que ele ficaria decepcionado se soubesse que você pensa em pãezinhos ao escutar as suas teorias. 

– Acha mesmo? Ora, não tenho tanta certeza disso. Sempre me parece que ele não se preocupa exclusivamente com as suas teorias, e que estas desempenham um papel secundário. O que lhe interessa mais é o falar em si, o seu modo peculiar de fazer as palavras saltar e rolar... tão elásticas como bolas de borracha... Tenho a impressão de que não lhe é desagradável verificar que os outros notam o efeito. O cervejeiro Magnus disse, indubitavelmente, uma asneira, quando falou dos “belos caracteres”, mas Settembrini nos deveria ter dito o que é, em realidade, o objetivo da literatura. Eu não quis perguntar, para não mostrar a minha ignorância. Não sou nada competente nessas coisas, e até agora nunca vi um literato. Contudo, se o que importa não são os belos caracteres, devem ser as belas palavras. Tal a minha impressão, quando me acho em companhia de Settembrini. Que palavras usa esse homem! Sem o mínimo acanhamento fala de “virtude”, ora essa! Nunca na vida empreguei esse vocábulo. Até mesmo na escola, dizíamos “coragem”, quando líamos “virtus” nos livros. Naquele momento senti um choque; não posso negá-lo. E depois, fico nervoso quando ele se mete a resmungar sobre o frio e sobre Behrens e sobre a Srª. Magnus, porque ela perde proteínas, sobre tudo o que existe, enfim. É um homem de oposição, como logo percebi. Investe contra qualquer coisa, e uma atitude dessas sempre me dá a impressão de negligência. Não posso evitá-lo.  

– É o que você pensa – disse Joachim ponderadamente. – Mas, por outro lado, tal atitude revela um certo orgulho que nada tem de negligente. Pelo contrário, Settembrini é um homem que se respeita a si mesmo, ou respeita os homens em geral. E isso me agrada nele, porque, a meu ver, é um sinal de decência.

– Tem razão – concordou Hans Castorp. – Ele até me parece um tanto severo. A gente, às vezes, fica constrangido diante dele, porque se sente... como dizer?... controlado. Sim, senhor, é isso mesmo. Você quer acreditar que tenho a impressão de que ele não aprovava a compra dos cobertores para o repouso, que se opunha a ela e até estava escandalizado?

– Não – disse Joachim, circunspecto e admirado. – Por que razão? Não posso imaginar... – E com isso se foi, metendo o termômetro na boca e levando todos os seus apetrechos para o repouso, enquanto Hans Castorp começou logo a mudar de roupa e a arrumar-se para o almoço, do qual os separava nem sequer uma hora.  

continua pág 066...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Compra necessária (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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