Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo IV
Digressão sobre o sentido do tempo
– Só mesmo alguns veteranos – disse o primo – sabem jogar simultaneamente os dois
cobertores por cima do corpo, com apenas três manobras precisas. É uma habilidade rara e
invejada, que exige não somente anos de prática mas também um talento natural. – Essas últimas
palavras fizeram com que Hans Castorp estourasse de riso, deixando-se cair para trás, sobre as
costas doloridas. Joachim, que no primeiro instante não compreendera o que havia nisso de
cômico, olhou-o com um ar incerto, e depois também desatou a rir.
– Feito! – disse quando Hans Castorp, exausto de toda essa ginástica, arrumado em forma
de cilindro, e como que sem membros, estava estendido na espreguiçadeira, com o rolo elástico
por baixo da nuca. -mesmo que fizesse uns vinte graus abaixo de zero, nada lhe poderia acontecer
agora. – Com isso desapareceu atrás da divisão de vidro, para se agasalhar a si próprio.
Essa coisa dos vinte graus abaixo de zero parecia bastante duvidosa a Hans Castorp, que
se ressentia muito do frio. Repetidas vezes, calafrios lhe passaram pelo corpo, enquanto
contemplava, através das arcadas de madeira, a umidade que lá fora caía, pingando, garoando, e
dando a impressão de estar a ponto de se transformar, de um momento para outro, em nova
nevada. Era, porém, estranho que, não obstante o tempo úmido, ele continuasse com o rosto
seco e ardente, como se se achasse num quarto superaquecido. Ademais, sentia-se ridiculamente
cansado em virtude dos exercícios realizados para envolver-se nos cobertores. Com efeito, o
Ocean steamships tremia-lhe nas mãos quando o aproximava dos olhos. Era evidente que a sua
saúde não era lá muito boa – “totalmente anêmico”, dissera o Dr. Behrens –, e por isso
incomodava-se tanto com o frio. Mas essas sensações desagradáveis eram compensadas pela
grande comodidade da sua posição, pelas qualidades insondáveis e quase misteriosas dessa
espreguiçadeira, que Hans Castorp já descobrira, entusiasmado, quando da estréia, e que
voltavam a comprovar-se de modo sumamente ameno. Fosse devido ao tipo das almofadas, à
inclinação conveniente do encosto, à altura e largura acertadas dos braços, ou talvez à
consistência apropriada do rolo atrás da nuca – em todo caso era impossível imaginar um método
mais humano para garantir o bem-estar de membros em repouso do que os serviços dessa cadeira
perfeita. E grande satisfação invadia a alma de Hans Castorp, ao pensar nas duas horas vazias,
cheias de paz assegurada, que tinha à sua frente, essas horas sagradas que o regulamento da casa
destinava ao repouso principal, e que ele, apesar de ser um simples visitante, aprovava como uma
instituição inteiramente adequada ao seu caráter. Pois Hans Castorp era paciente por natureza, e
bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer
que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar. Às quatro horas iria
tomar o chá da tarde, com bolo e confeitos; depois haveria um novo repouso na espreguiçadeira;
às sete, vinha o jantar, que, como todas as refeições, ofereceria algumas sensações e certos
aspectos curiosos, dignos de serem aguardados com prazer; depois, alguns olhares no interior da
caixa estereoscópica, no caleidoscópio em forma de luneta, e no tambor cinematográfico... Hans
Castorp já sabia de cor o programa do dia, ainda que fosse exagero dizer que já se “aclimatara”
perfeitamente.
No fundo constitui fenômeno esquisito esse processo de aclimatação num lugar estranho,
a adaptação – por mais laboriosa que seja – e a mudança de hábitos à qual as pessoas se
submetem só para variar e na intenção firme de abandoná-la imediatamente ou pouco depois de
completada, a fim de voltarem ao estado anterior. Intercala-se tal processo como uma espécie de
interrupção ou entreato, no curso principal da vida, e isso para fins de “restabelecimento”, quer
dizer, para exercitar, renovar e revolucionar o organismo que corria perigo, e já estava a ponto de
se amimalhar, de enlanguescer e de entibiar, na desarticulada monotonia da existência rotineira.
Mas, qual é a origem desse langor, dessa tibieza, nos casos de continuidade por demais extensa e
ininterrupta de uma rotina? Trata-se menos do cansaço e do desgaste físico e espiritual, que
causam as exigências da vida – para eles, o simples descanso bastaria como remédio
reconstituinte –, do que de algo psíquico: é a consciência do tempo que ameaça perder-se na
uniformidade constante, e que liga laços tão estreitos de parentesco e afinidade à própria sensação
de vida, que não se pode debilitar uma sem que a outra sofra e definhe também. Com respeito à
natureza do tédio encontram-se freqüentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a
novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no,
ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade,
senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem
“tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas
e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por
outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do
conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em
acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são
varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma
brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os
grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto
mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade
perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos.
O hábito representa a modorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de
os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola
e foge cada vez mais depressa – esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente
que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para
manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento,
um reforço, um retardamento da nossa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa
sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de
recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num
ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou
oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se “aclimata”, começa a sentir uma progressiva
abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror
como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana – de
quatro, por exemplo – é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do
nosso senso de tempo produz efeitos além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa
já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram
também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se
reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão. E o senso de tempo de quem já
está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possuiu desenvolvido em alto grau – o que é sinal
de pouca força vital –, volta a adormecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é
como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu ambiente habitual, e a viagem não passasse
do sonho de uma noite.
Inserimos aqui essas observações porque o jovem Hans Castorp tinha em mente ideias
análogas, quando, depois de alguns dias, disse ao primo, fixando nele os olhos estriados de
sangue:
– É mesmo curioso como o tempo, no começo, parece longo a quem se encontra num
lugar estranho. Quer dizer... Absolutamente não me aborreço; nada disso! Ao contrário, posso
afirmar que me divirto esplendidamente. Mas quando olho para trás – em retrospectiva, sabe? –
tenho a impressão de estar aqui há não sei quanto tempo já. E de agora até aquele momento em
que cheguei a Davos-Dorf e não compreendi que já estava no fim da minha viagem e você me
disse: “Pode descer” – lembra-se ainda? –, isto me parece toda uma eternidade. Essas coisas nada
têm a ver com medidas e raciocínios. São puramente questão de sentimentos. Claro que seria
tolice dizer: “Tenho a impressão de estar aqui há dois meses”; isto seria um absurdo. Só posso
dizer: “Há muito tempo já”.
– Pois é – disse Joachim, com o termômetro na boca. – Eu também me aproveito disso.
De certo modo, posso me segurar em você, desde que está aqui. – E Hans Castorp riu-se de que
o primo dissesse isso assim tão simplesmente, sem acrescentar nenhuma explicação.
continua pág 068...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Digressão sobre o sentido do tempo
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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