segunda-feira, 30 de abril de 2018

O Segundo Sexo - 21. Fatos e Mitos: a era dos contratos e o casamento tornou-se contratual

Simone de Beauvoir



21. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


III


 : a era dos contratos e o casamento tornou-se contratual




FOI NO EGITO que a condição da mulher foi a mais favorecida. As deusas-mães conservaram seu prestígio em se tornando esposas; a unidade religiosa e social é constituída pelo casal; a mulher surge como aliada e complementar do homem. Sua magia é tão pouco hostil que o próprio medo do incesto é vencido e que não hesita em confundir a irmã com a esposa(1). Ela tem os mesmos direitos que o homem, a mesma força jurídica; herda e possui bens. Essa sorte singular nada tem de casual: provém do fato de que no Egito antigo o solo pertencia ao rei e às castas superiores dos sacerdotes e dos guerreiros; para os particulares, a propriedade territorial consistia apenas no usufruto; o fundo permanecia inalienável, os bens transmitidos por herança tinham pouco valor e não se via nenhum inconveniente em partilhá-los. Em virtude da ausência do patrimônio privado, a mulher conservava a dignidade de uma pessoa. Casava-se livremente e, quando viúva, podia tornar a casar-se. O homem praticava a poligamia mas, embora todos os filhos fossem legítimos, ele só tinha uma esposa verdadeira, a única associada ao culto e a ele ligada legalmente; as outras não passavam de escravas privadas de quaisquer direitos. A esposa-chefe não mudava de estatuto ao casar-se novamente: continuava dona de seus bens e com a liberdade de contratar. Quando o Faraó Bochóris estabeleceu a propriedade privada, a mulher ocupava uma posição demasiado forte para ser desalojada; Bochóris deu início à era dos contratos e o casamento tornou-se contratual. Houve três tipos de contrato: um dizia respeito ao casamento servil; a mulher tornava-se a coisa do homem mas especificava-se, por vezes, que ele não teria outra concubina; entretanto, a esposa legítima era considerada igual ao homem e todos os bens eram comuns; muitas vezes, o marido comprometia-se a pagar-lhe certa soma em caso de divórcio. Esse costume conduziu pouco mais tarde a um tipo de contrato singularmente favorável à mulher: o marido entregava-lhe um documento de dívida fictício. Havia graves penalidades contra o adultério, mas o divórcio era mais ou menos livre para os dois cônjuges. A prática dos contratos restringiu grandemente a poligamia; as mulheres açambarcavam as fortunas e transmitiam-nas aos filhos, o que provocou o advento de uma classe plutocrática. Ptolomeu Filopáter decretou que as mulheres não poderiam mais alienar seus bens sem autorização marital, fazendo delas eternas menores. Mas, mesmo no tempo em que gozaram de um estatuto privilegiado, único no mundo antigo, não foram as mulheres socialmente iguais aos homens; associadas ao culto, ao governo, podiam desempenhar o papel de regente, mas o faraó era homem; os sacerdotes e os guerreiros eram homens; elas só interferiam na vida pública de modo secundário; e na vida privada exigiam dela uma fidelidade sem reciprocidade.


(1) Em certos casos pelo menos o irmão deve desposar a irmã.

Os costumes dos gregos aproximam-se muito dos orientais; eles não praticam entretanto a poligamia. Não se sabe exatamente por quê. Na realidade, a manutenção de um harém sempre constituiu pesado encargo: é o faustoso Salomão, são os sultões das Mil e Uma Noites, os reis, os chefes, os ricos proprietários que podem dar-se ao luxo de um vasto serralho; o homem médio contentava-se com três ou quatro mulheres; o camponês raramente possuía mais de duas. Por outro lado — salvo no Egito, onde não há propriedade fundiária particular — a preocupação de conservar intato o patrimônio levava a outorgar ao primogênito direitos sobre a herança paterna; com isso se estabelecia uma hierarquia entre as mulheres, revestindo-se a mãe do herdeiro principal de uma dignidade muito superior à das outras esposas. Se a própria mulher possui bens, se é dotada, é uma pessoa para o marido: ele é ligado a ela por um laço religioso e exclusivo. Daí proveio, sem dúvida, o costume de reconhecer somente uma esposa; em verdade, o cidadão grego permanecia agradavelmente polígamo, porquanto podia encontrar a satisfação de seus desejos na prostituta da cidade ou na serva do gineceu. "Temos a hetaira para os prazeres do espírito, diz Demóstenes, a palákina para o prazer dos sentidos e a esposa para nos dar filhos." A palákina substituía a mulher no leito do senhor quando esta se achava doente, indisposta, grávida ou convalescente do parto, de maneira que, do gineceu ao harém, não vai grande diferença. Em Atenas, a mulher era encerrada em seus aposentos, adstrita por leis a uma disciplina severa e fiscalizada por magistrados especiais. Durante toda sua existência, ela permanece menor; é dependente do poder de seu tutor: pai ou marido, ou herdeiro do marido, ou na ausência de um desses, do Estado por intermédio de funcionários públicos; são os seus senhores e dela dispõem como de uma mercadoria, estendendo-se o poder de tutor, a um tempo, sobre a pessoa e os bens; o tutor pode transmitir seus direitos à vontade, o pai dá a filha em adoção ou em casamento; o marido pode, repudiando a esposa, entregá-la a um novo marido. A lei grega assegurava, entretanto, à mulher um dote que se destinava à sua manutenção e devia ser-lhe integralmente restituído em caso de dissolução de casamento; autorizava também, em certos casos muito raros, a mulher pedir o divórcio; mas eram as únicas garantias que a sociedade lhe outorgava. Naturalmente, toda a herança era legada aos filhos, representando o dote não um bem adquirido por filiação mas uma espécie de serviço imposto ao tutor. Entretanto, graças ao dote, ela não passa mais como um bem hereditário para as mãos dos herdeiros do marido: torna a submeter-se à tutela dos pais.

Um dos problemas formulados nas sociedades fundadas na agnação é o destino da herança na ausência de descendentes masculinos. Os gregos tinham instituído o costume do epiclerado: a herdeira devia desposar na gens paterna seu parente mais idoso; desse modo, os bens que lhe legava o pai eram transmitidos às crianças do mesmo grupo, a propriedade continuava pertencendo à gens; a epiclera não era herdeira e, sim, apenas uma máquina de procriar herdeiros; esse costume colocava-a inteiramente à mercê do homem, posto que era automaticamente entregue ao mais idoso dos homens da família que acontecia ser, o mais das vezes, um ancião.

Já que a opressão da mulher tem sua causa na vontade de perpetuar a família e manter intato o patrimônio, ela se liberta também dessa dependência absoluta na medida em que escapa da família. Se a sociedade, negando a propriedade privada, recusa a família, a sorte da mulher melhora consideravelmente. Esparta, onde prevalecia um regime comunitário, era a única cidade em que a mulher se via tratada quase em pé de igualdade com o homem. As meninas eram educadas como os meninos; a esposa não era confinada ao lar do marido; este só era autorizado a fazer-lhe furtivas visitas noturnas e a esposa lhe pertencia tão pouco que, em nome da eugenia, outro homem podia unir-se a ela: a própria noção de adultério desaparece quando a herança deixa de existir; pertencendo todos os filhos em comum a toda a cidade, as mulheres não se veem mais ciumentamente escravizadas a um senhor: ou, inversamente, pode-se dizer que não possuindo nem bem próprio nem descendência singular, o cidadão não possui tampouco a mulher. As mulheres suportam as servidões da maternidade como os homens as da guerra: mas, salvo o desempenho desse dever físico, nenhum constrangimento lhes limita a liberdade.

Ao lado das mulheres livres de que acabamos de falar e das escravas que vivem no interior da gens — e que são propriedade absoluta do chefe de família — encontravam-se prostitutas na Grécia. Os povos primitivos conheciam a prostituição hospitaleira, cessão da mulher aos hóspedes de passagem, que tinha sem dúvida razões místicas, e a prostituição sagrada destinada a libertar as misteriosas forças da fecundação em benefício da coletividade. Esses costumes existiam na Antiguidade clássica. Heródoto conta que, no século V a. C, toda mulher de Babilônia devia, uma vez na vida, entregar-se a um estranho no templo de Milita em troca de uma moeda que ela oferecia ao tesouro do templo; em seguida retornava ao lar para viver castamente. A prostituição religiosa perpetuou-se até hoje entre as almeias do Egito e as bailadeiras das índias que constituem castas respeitadas de músicas e dançarinas. Mas, o mais das vezes, no Egito, na índia, na Ásia Ocidental houve passagem da prostituição sagrada para a prostituição legal, encontrando a classe sacerdotal nesse comércio um meio de se enriquecer. Entre os próprios hebreus havia prostitutas venais. Na Grécia era principalmente à beira-mar, nas ilhas, nas cidades a que acorriam muitos estrangeiros, que existiam templos em que se encontravam "jovens hospitaleiras aos estrangeiros" como as denomina Píndaro: o dinheiro que recebem destina-se ao culto, isto é, aos sacerdotes e, indiretamente, à manutenção deles. Na verdade, sob uma forma hipócrita, exploram-se — em Corinto particularmente — as necessidades sexuais dos marinheiros, dos viajantes; e já existe a prostituição venal. Foi Sólon que fez dela uma instituição. Comprou escravas asiáticas e encerrou-as nos dicterions situados em Atenas, perto do templo de Vênus, não longe do porto. A direção era confiada aos pornotrops encarregados de administrar financeiramente o estabelecimento; cada jovem recebia um salário e os lucros cabiam ao Estado. Mais tarde abriram-se os kapaileia, que eram estabelecimentos particulares: um priapo vermelho servia-lhes de insígnia. Muito breve, além das escravas, mulheres gregas de baixa condição fizeram-se receber como pensionistas. Os dicterions eram considerados tão necessários que logo foram reconhecidos como lugares de asilo invioláveis. Entretanto, as cortesãs eram tacha das de infames, não tinham nenhum direito social, os seus filhos não eram obrigados a sustentá-las; deviam usar um vestido especial de fazenda sarapintada e enfeitada com flores, além de tingir os cabelos com açafrão. Além das mulheres encerradas nos dicteríons, havia cortesãs livres que se classificavam em três categorias: as Dicteríades, análogas às mulheres registradas na polícia, em nossos tempos; as Auletrides, que eram dançarinas e tocadoras de flauta; e as Hetairas, meretrizes que vinham geralmente de Corinto e tinham relações oficiais com os homens mais notáveis da Grécia e desempenhavam o papel social das "mundanas" de hoje. As primeiras recrutavam-se entre as forras e as jovens gregas de baixa extração; exploradas pelos proxenetas, levavam uma existência miserável. As segundas conseguiam muitas vezes enriquecer graças a seus talentos musicais: a mais célebre foi Lâmia, amante de Ptolomeu do Egito e, depois, do vencedor dele, o rei da Macedônia, Demétrio Poliorceta. Quanto às últimas, sabe-se que muitas se associaram à glória de seus amantes. Dispondo livremente de si mesmas e de sua fortuna, inteligentes, cultas, artistas, eram tratadas como pessoas pelos homens que se encantavam com seu comércio. Pelo fato de escaparem da família, situam-se à margem da sociedade e escapam também do homem: podem então apresentar-se a ele como uma semelhante e quase uma igual. Com Aspásia, Frinéia, Lais, afirma-se a superioridade da mulher liberta sobre a mãe de família.

Salvo essas brilhantes exceções, a mulher grega é reduzida a uma semiescravidão; ela não tem sequer a liberdade de se indignar. Mal se ouvem alguns protestos de Aspásia e, mais apaixonadamente, de Safo. Em Homero subsistem reminiscências da época heroica em que as mulheres tinham algum poder: entretanto os guerreiros as rechaçam com dureza para seus cômodos. Depara-se com o mesmo desprezo em Hesíodo: "Quem se confia a uma mulher confia-se a um ladrão". Na época clássica, a mulher é resolutamente confinada ao gineceu. "A melhor mulher é aquela de quem os homens menos falam", dizia Péricles. Platão, que propõe aceitar um conselho de matronas na administração da república e dar às jovens uma educação livre, é uma exceção: ele provoca as zombarias de Aristófanes: em Lisístrata, a uma mulher que o interroga acerca dos negócios públicos, responde o marido: "Não é da tua conta. . . Cala-te ou apanharás. . . Tece o teu pano". "Aristóteles exprime a opinião comum ao declarar que a mulher é mulher em virtude de uma deficiência, que deve viver fechada em sua casa e subordinada ao homem. "O escravo é inteiramente desprovido da liberdade de deliberar; a mulher a possui, mas fraca e ineficiente", afirma. Segundo Xenofonte, a mulher e o marido são profundamente estranhos um ao outro: "Existem pessoas com quem converses menos do que com tua mulher? — Muito poucas..." Tudo o que se exige da mulher em Economia é que seja uma dona de casa atenta, prudente, econômica, trabalhadeira como a abelha, uma intendente modelar. A condição modesta a que a mulher é reduzida não impede os gregos de serem profundamente mísógenos. Já no século VII a. C, Arquíloco escreve epigramas mordazes contra as mulheres. Lê-se em Sirmônide de Amorga: "As mulheres são o maior mal que Deus jamais criou: que pareçam por vezes úteis, logo se transformam em motivo de preocupação para seus senhores". E em Hiponax: "Só há dois dias na vida em que nossa mulher nos dá prazer: no dia de núpcias e no dia do enterro dela". São os habitantes da Jônia que, nas histórias de Mileto, manifestam maior mordacidade: conhece-se entre outros o conto da matrona de Éfeso. O que se censura principalmente às mulheres nessa época é serem preguiçosas, azedas, perdulárias, isto é, precisamente a ausência das qualidades que se exigem delas. "Há muitos monstros na terra e no mar, mas o maior de todos é ainda a mulher", escreve Menandro. "A mulher é um sofrimento que não nos larga". Quando, pela instituição do dote, a mulher assume certa importância, deplora-se a sua arrogância; é um dos temas familiares de Aristófanes e principalmente de Menandro. "Desposei uma feiticeira com um dote. Aceitei-a por causa de seus campos e de sua casa e isso, ó Apoio, é o pior dos males!..." "Maldito seja quem inventou o casamento, e em seguida o segundo, e o terceiro, e o quarto, e todos os que o imitaram". "Se sois pobre e casais com uma mulher rica, ficareis ao mesmo tempo escravo e pobre". A mulher grega era controlada de demasiado perto para que lhe censurassem os costumes. E não é a carne que se vilipendia nela. São principalmente os encargos e as servidões do casamento que pesam aos homens: isso nos permite supor que, apesar do rigor de sua condição, e embora nenhum direito lhe reconhecesse, ela devia ocupar um lugar importante no lar e gozar de certa autonomia; votada à obediência, podia desobedecer; podia atormentar o marido com cenas, lágrimas, tagarelices, injúrias; o casamento destinado a escravizar a mulher era também uma cadeia para o marido. Na personagem de Xantipa resumem-se todos os ressentimentos contra a esposa megera e os infortúnios da vida conjugal.



* * *




__________________



O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



______________________




Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



________________________



Leia também:








Nenhum comentário:

Postar um comentário