Luaanda... Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos
Luandino Vieira
— Você tens é raiva! O rapaz trabalha, tem seu carro dele, e fala-me mesmo para casar comigo...
Gostava muito de Delfina, queria mesmo ela sabia todas coisas da vida dele, mas como ia-lhe contar então o que tinha sucedido nesses dias de procura de trabalho? Ou mesmo falar esse trabalho de carregar cimento no porto, serviço assim só de monangamba? Ela não ia aceitar, ia-lhe deixar naquela hora, naquele sítio, no meio do caminho das barrocas. Também dizer não tinha trabalho, não encontrava serviço, era pior. Delfina continuava falar, sentia-se mesmo na voz dela era só para fazer raiva, dizia João Rosa já tinha-lhe prometido falar no patrão para lhe mudarem no escritório; que ela devia mas é ir mesmo na escola da noite; que, depois, queria se casar com ela, se ia aceitar namoro dele e mais outras conversas, só para irritar Zeca Santos. Essas palavras magoavam-lhe lá dentro, sentia tristeza, vergonha dele mesmo, mas também sorte não tinha, gostava a pequena, o pior é que trabalho de todos os dias custa encontrar. Pensou a tarde já estava a ser boa com esse encontro, pena Delfina estar lhe xingar assim. Medroso, agarrou-lhe no braço e baixando a voz falou como ele sabia:
— Ouve então, Fininha. Você esqueceste o sábado? Aquilo que disseste, enh? Para quê você está se zangar? E depois, falar assim à toa nesse sungadibengo∗ de Rosa, para quê? Eu não fico raivado, qu’é que você pensa? Agora tenho o meu emprego aí com Maneco, na estação de serviço... E depois, você sabe, você viu no baile, Marcelina anda-me chatear...
— Ih! Essa sonsa?! Sukuama! Já viram? Tem nada de cheirar?...
Calou-se logo, Delfina. O sorriso de Zeca Santos estava na frente dela, um sorriso ela gostava e tinha raiva ao mesmo tempo, ficava parecia era cara de gato quando anda brincar com o rato...
Devagar, com toda a técnica ele tinha estudado, desviou-lhe do caminho onde iam, atravessaram um bocado de capim, borboletas e quinjongos∗ saltaram para todos os lados. Sentados debaixo de uma grande acácia, vermelha de flores, Zeca puxou Delfina na cintura, mostrando-lhe só os olhos a rir, uns olhos de criança malandra que ela gostava. Mesmo assim não aceitou: tirou-lhe as mãos atrevidas, arranjou o vestido e ela é que sentou como quis, ali perto, puxando a chita de cores para cima dos joelhos, agarrando-lhe com as mãos por baixo das coxas fortes.
Zeca Santos ficou um tempo deitado a chupar um capim, sem falar nada; depois rastejou parecia era sardão∗, na direção de Delfina, mirando-lhe com olhos doces e amigos. A menina nem nada que disse, deixou só a cabeça dele deitar no colo, era bom sentir assim aquele peso, o calor dele contra a barriga, as orelhas-de-abano a mostrarem bem o feitio da cabeça, os olhos cheios de felicidade. Sem mesmo poder parar-lhes, as mãos dela começaram a pôr festas de samaúma na carapinha, na pele quente do pescoço, do princípio do peito, e Zeca suspirou, falou-lhe mansinho:
— Ai, Fina, meu amor! Se você vem mais com João Rosa não sei ainda o que vou fazer...
— Não venho mais, Zeca, juro sangue de Cristo! Só de você é que eu gosto, só de você, você sabe...
Sorriu; era bom sentir essas falas assim, as festas, o calor das mãos dela na pele toda, nada que ficava no corpo: nem a fome a roer na barriga; nem o vinho a pôr as coisas brancas e leves; só um quente novo, um fresco bom, melhor que o vento que soprava xaxualhando as pequeninas folhas verdes das acácias, empurrando as flores, algumas deixavam cair as suas folhas vermelhas e amarelas, parecia era mesmo uma chuva de papel de seda em cima deles.
— Agora que arranjaste mesmo um bom emprego, Zeca, não fica dormir mais, não?
— Não, Fina!
— Se tu queres eu vou-te acordar de manhã... bato na janela...
Zeca sorriu outra vez, feliz com a amizade.
— Não precisa, Fininha! Agora mesmo vou ter juízo, juro!
— Sukuama! Já é idade, Zeca. Se não vai ter mais juízo, não vou te gostar mais...
Os olhos grandes, claros, de Delfina, mostravam toda a mentira dessas palavras, mas Zeca já não estava ver. Tinha escondido a cabeça no colo, a vergonha não queria lhe largar o coração, a vontade de falar só a verdade na menina, como ela merecia, e a certeza nessa hora que falasse ia lhe perder mesmo quando ela ia saber ele só tinha um serviço de monangamba e, pior, João Rosa, seu “Morris”, suas delicadas falas a quererem-Lhe roubar a pequena, tudo isso pelejava na cabeça fraca dele, no coração fraco de Zeca Santos.
E essa dor foi tão grande, o roer na barriga a atacar outra vez, a fazer fugir as coisas boas na frente dos olhos dele, que tudo começou a girar à roda, a cabeça leve, o estômago a doer, na boca um cuspo amargo e azedo, toda a barriga pedia-lhe para vomitar, deitar fora as bananas e o vinho que lhes azedara, e, nessa hora, sentiu medo. Levantou os olhos grandes, de animal assustado, para Delfina, e as mãos procuraram o corpo da namorada para agarrar sua última defesa, seu último esconderijo contra esse ataque assim de todas as coisas desse dia, desses dias atrasados, contra esse receio de vomitar logo ali. Sentiu, debaixo dos dedos, as mamas pequenas dela de repente apertadas, e a outra mão espetou-se com força e medo, com raiva, na coxa negra e forte que o vestido, desarrumado, não tapava mais.
As cigarras calaram a cantiga delas, uma pica fugiu do pau onde chupava flores: Delfina, com toda a força dela, pôs uma chapada na cara do namorado, e Zeca, magrinho e mal deitado, rebolou até no tronco da acácia.
Quase a chorar, agarrando o vestido aí no sítio onde os dedos dele tinham rebentado os botões, Delfina zuniu-lhe todas as palavras-podres que a cabeça inventava, que a sua boca sabia, insultou, cuspiu-lhe:
— Você pensas eu sou da tua família, pensas? Que sou dessas, deita no capim, paga cinquenta, vem dormir comigo? Pensas? Seu sacana, seu vadio de merda! Vagabundo, vadio, não tens vergonha! Chulo de sua avó, seu pele-e-osso!...
Mas Zeca Santos nem percebia bem o que estava a passar. O vômito grande juntava-se na barriga, apertou-lhe com as mãos para poder respirar, mas não teve mais tempo de levantar: Delfina empurrou-lhe outra vez contra o tronco da acácia, saindo depois a correr pelo capim abaixo, borboletas e gafanhotos fugiam dos seus pés irritados, as cigarras calavam-se com as palavras que foi gritando sempre, enquanto Zeca podia ouvir:
— Vadio de merda! Homem só no dia do casamento, sabes, rosqueiro∗? No dia do casamento, na cama, não é como os bichos no capim, seu pele-e-osso dum raio!...
Para os lados do colégio das madres o sino começou tocar devagar e o sol, na hora de dar fimba∗ no mar, descia vermelho e grande. O vento a soprar, brincalhão, nos troncos dos paus, trouxe nas orelhas dele, doridas da chapada, o grito de Delfina, lá de baixo, do princípio do morro, só as cores bonitas do vestido de chita é que se viam bem no meio das folhas:
— Não tens vergonha, seu merda?! Estás magrinho parece és bordão de ximbicar∗! Até faz pena!...
Com os vômitos, Zeca Santos nem deu conta da teimosa alegria que queria nascer, rebentar, debaixo dessas palavras que a boca de Delfina falou sem saber mais por quê.
continua página 027...
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∗ cafofo — cego.
∗ sungadibengo ou sungaribengo — (depreciativo) mulato; mestiço.
∗ quinjongos — gafanhotos grandes.
∗ sardão — espécie de lagarto.
∗ rosqueiro — sodomita.
∗ fimba — mergulho na água.
∗ ximbicar — empurrar o barco com uma vara longa.
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Leia também:
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a chuva não caía (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a raiva era muita e quente (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... ...Dona Cecília de Bastos Ferreira (03)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi...Vinham andando os dois... (04)
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∗ cafofo — cego.
∗ sungadibengo ou sungaribengo — (depreciativo) mulato; mestiço.
∗ quinjongos — gafanhotos grandes.
∗ sardão — espécie de lagarto.
∗ rosqueiro — sodomita.
∗ fimba — mergulho na água.
∗ ximbicar — empurrar o barco com uma vara longa.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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