Luaanda... Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos
Vinham andando os dois, calados agora no fim de muita conversa na hora do almoço. Maneco, as mãos nas algibeiras do macaco∗ cheio de óleo, fumava; Zeca Santos olhando todos os vidros e os olhos das raparigas que passavam para gozar bem a vaidade que lhe fazia essa sua camisa amarela, florida. Devagar, ao lado do amigo, ia sentindo cada vez mais um fogo a crescer no estômago, a avançar no sangue, trepando na cabeça, pondo nuvem fina de cacimbo na frente dos olhos. Mas era melhor assim. Tinha esquecido a lombriga a roer, tinha esquecido mesmo vavó e as raízes que queria lhe dar no almoço, tinha esquecido o trabalho que não conseguia arranjar...
Quatro horas eram já quase e, à toa, seguiam no passeio do Catonho-Tonho, direção do mar. Zeca Santos tinha dado encontro no amigo dele, agarrara-lhe ainda no emprego, nesse dia Maneco estava sair mais tarde, dia de chuva os carros eram muitos lá na estação de serviço e queria fazer umas horas na vez de um amigo. Por isso é que três horas só Maneco veio para almoçar. Saiu logo conversa desse baile do último sábado, a peleja que tinha passado por causa a Delfina e Maneco gabou Zeca:
— Você arreou-lhe mesmo uma bassula∗ de mestre! Possa! A malta gramou!
Gabado, Zeca Santos endireitou o corpo magro e as orelhas-de-abano — ele tinha raiva essas orelhas, todas as pequenas gostavam lhe gozar e só depois, quando adiantava falar, elas esqueciam na música das palavras — ficaram a arder, quentes. Espreitou a camisa amarela e continuou, vaidoso, ao lado do amigo, caminho da quitanda.
Nessa hora em que deram entrada aí na loja e Maneco cumprimentou sô Sá pedindo dois almoços, o que custou em Zeca foi aquela mentira que saiu logo-logo, nem mesmo que pensou nada, nem ouviu ainda o bicho do estômago a reclamar, só a vergonha é que começou as palavras que arrependeu depois:
— Ih! Dois almoços!? Já almocei, Maneco!
E mesmo que Maneco não tinha respondido ainda nada; Zeca repetiu, atrapalhado:
— Juro! Comi bem. Estou cheio.
Ai! Mas na sopa de Maneco saía um cheiro bom e quente; a colher descia, subia; aquele barulho dos beiços do lavador de carros a chupar o puré de feijão, tudo isso desafiava Zeca Santos, atrapalhado para disfarçar ainda o cuspo que estava sempre engolir, engolir... Logo-logo veio um guisado de feijão, um cheiroso quitande∗ amarelo parecia era maboque∗. Mano Maneco comia, sorria, o trabalho de muitas horas pusera-lhe fome grande, mas não parava de falar as pequenas, os bailes, a motorizada cadavez ia lhe comprar mesmo lá no serviço, mas Zeca mirava só os dentes do amigo, amarelos também do azeite, os beiços brilhantes da gordura e nem que falava, ele mesmo, Zeca Santos, que só sabia esses assuntos de farras e pequenas!... Só que a força da barriga é muita e, na hora das bananas, não conseguiu aguentar. Aí, voz de caniço∗, falou, fingindo não estava dar importância;
— Banana, sim. Fruta eu não tive tempo de comer. O maximbombo∗, sabe, Maneco...
Mas calou logo a boca, pensou já falara tinha vindo a pé, gostava andar a pé no fim da chuva e ficou espiar se ia ser agarrado na mentira. Maneco, distraído com a comida, não deu conta e Zeca Santos pôde então engolir com depressa duas bananas, nem lhes mastigou nem nada e o copo de palheto∗ é que ajudou-lhe ainda sossegar o roer da barriga. Sentindo mais calma, o estômago a parar os mexeres dele, o cuspo mais quieto na boca e aliviado, falou também as miúdas, a Delfina, os bailes...
Fora, o sol já tinha rasgado os últimos bocados de nuvens e espreitava no meio das folhas das grandes árvores velhas. Devagar, fumando Maneco, Zeca Santos feliz com o vinho na barriga, atravessaram a rua de pedra, deixaram os pés levarem-lhes no cais de cabotagem, na muralha onde, nos domingos e outros dias à noite, as pessoas da Baixa vêm passear com as famílias delas. Sentados na frente do mar escuro e vermelho das águas da chuva, Maneco virou as conversas:
— Mas nada que conseguiste ainda?
— Nada, Maneco! — Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. — Já mais de uma semana que estou procurar trabalho e nada!...
Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:
— E esse do jornal, já foste?
— Ainda.
— O melhor é mesmo aproveitar hoje, cadavez, quem sabe?...
— Oh! Não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal “escritório e armazém”. Você já sabe: sai serviço pesado!
Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. Em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão∗ pondo uma chapada nas costas de Zeca:
— Vamos, miúdo!
Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:
— Eu vou sozinho, Maneco. Sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...
Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada e, antes de sair embora, recomendou:
— Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!
O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios do sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio do emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...
Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de cáqui bem engomada, espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigiu-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. Um homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:
— Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? Anda para aqui. Xico, ó Xico!
O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado∗; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar do escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:
— Ouve lá, pá, onde é que nasceste?
— Nasceu onde? — repetiu o contínuo.
— Catete, patrão!
O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.
— De Catete, hem?! Icolibengo∗?... Calcinhas∗ e ladrões e mangonheiros!... E agora por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes∗!...
Zeca Santos nem percebeu mesmo como é saiu tão depressa sem dar encontro na porta de vidro. A cara do homem metia medo, parecia tinha ficado maluco, bêbado, todo encarnado a mostrar-lhe com o dedo, ameaçando-lhe, xingando, e todas as pessoas que estavam passar olhavam o rapaz banzado∗, quieto, levando encontrões e pisa-delas, um miúdo pôs-lhe mesmo uma chapada no pescoço. O homem, na porta, continuava com as palavras dele:
— Icolibengo, hem!? Filho da puta!... Se aqui apareces mais, racho-te os chifres!...
De repente, vendo as pessoas nos passeios começarem a parar e perguntar saber os casos, Zeca Santos sentiu o medo a avisar-lhe no coração, um sinal parecia tinha dormido e acordava agora no meio do perigo, no escuro e, com a fome a pôr-lhe riscos encarnados na frente dos olhos, correu pela Rua da Alfândega, para esquivar na confusão de pessoas, na Mutamba∗.
continua página 020...
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∗ macaco — macacão.
∗ bassula — golpe em luta corporal, semelhante à capoeira, que consiste em dar rasteiras no
adversário.
∗ quitande — refogado de purê de feijão temperado com azeite-de-dendê.
∗ maboque — fruta ácida, de casca dura (Strychnos aculaata Solered), que se come simples,
com açúcar ou na forma de refresco.
∗ caniço (voz de) — fina.
∗ maximbombo — ônibus.
∗ palheto — tipo de vinho tinto, de cor pouco carregada.
∗ gozão — gozador.
∗ assimilado — africano identificado com a cultura do colonizador.
∗ icolibengo — natural da região de Icolo e Bengo, perto de Luanda.
∗ calcinhas — (depreciativo) que se veste à européia.
∗ catetes — naturais de Catete. localidade a leste de Luanda.
∗ banzado — espantado, pasmado, surpreso.
∗ Mutamba — nome de um largo de Luanda.
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Leia também:
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a chuva não caía (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a raiva era muita e quente (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... ...Dona Cecília de Bastos Ferreira (03)
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Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)
Luandino Vieira
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Quatro horas eram já quase e, à toa, seguiam no passeio do Catonho-Tonho, direção do mar. Zeca Santos tinha dado encontro no amigo dele, agarrara-lhe ainda no emprego, nesse dia Maneco estava sair mais tarde, dia de chuva os carros eram muitos lá na estação de serviço e queria fazer umas horas na vez de um amigo. Por isso é que três horas só Maneco veio para almoçar. Saiu logo conversa desse baile do último sábado, a peleja que tinha passado por causa a Delfina e Maneco gabou Zeca:
— Você arreou-lhe mesmo uma bassula∗ de mestre! Possa! A malta gramou!
Gabado, Zeca Santos endireitou o corpo magro e as orelhas-de-abano — ele tinha raiva essas orelhas, todas as pequenas gostavam lhe gozar e só depois, quando adiantava falar, elas esqueciam na música das palavras — ficaram a arder, quentes. Espreitou a camisa amarela e continuou, vaidoso, ao lado do amigo, caminho da quitanda.
Nessa hora em que deram entrada aí na loja e Maneco cumprimentou sô Sá pedindo dois almoços, o que custou em Zeca foi aquela mentira que saiu logo-logo, nem mesmo que pensou nada, nem ouviu ainda o bicho do estômago a reclamar, só a vergonha é que começou as palavras que arrependeu depois:
— Ih! Dois almoços!? Já almocei, Maneco!
E mesmo que Maneco não tinha respondido ainda nada; Zeca repetiu, atrapalhado:
— Juro! Comi bem. Estou cheio.
Ai! Mas na sopa de Maneco saía um cheiro bom e quente; a colher descia, subia; aquele barulho dos beiços do lavador de carros a chupar o puré de feijão, tudo isso desafiava Zeca Santos, atrapalhado para disfarçar ainda o cuspo que estava sempre engolir, engolir... Logo-logo veio um guisado de feijão, um cheiroso quitande∗ amarelo parecia era maboque∗. Mano Maneco comia, sorria, o trabalho de muitas horas pusera-lhe fome grande, mas não parava de falar as pequenas, os bailes, a motorizada cadavez ia lhe comprar mesmo lá no serviço, mas Zeca mirava só os dentes do amigo, amarelos também do azeite, os beiços brilhantes da gordura e nem que falava, ele mesmo, Zeca Santos, que só sabia esses assuntos de farras e pequenas!... Só que a força da barriga é muita e, na hora das bananas, não conseguiu aguentar. Aí, voz de caniço∗, falou, fingindo não estava dar importância;
— Banana, sim. Fruta eu não tive tempo de comer. O maximbombo∗, sabe, Maneco...
Mas calou logo a boca, pensou já falara tinha vindo a pé, gostava andar a pé no fim da chuva e ficou espiar se ia ser agarrado na mentira. Maneco, distraído com a comida, não deu conta e Zeca Santos pôde então engolir com depressa duas bananas, nem lhes mastigou nem nada e o copo de palheto∗ é que ajudou-lhe ainda sossegar o roer da barriga. Sentindo mais calma, o estômago a parar os mexeres dele, o cuspo mais quieto na boca e aliviado, falou também as miúdas, a Delfina, os bailes...
Fora, o sol já tinha rasgado os últimos bocados de nuvens e espreitava no meio das folhas das grandes árvores velhas. Devagar, fumando Maneco, Zeca Santos feliz com o vinho na barriga, atravessaram a rua de pedra, deixaram os pés levarem-lhes no cais de cabotagem, na muralha onde, nos domingos e outros dias à noite, as pessoas da Baixa vêm passear com as famílias delas. Sentados na frente do mar escuro e vermelho das águas da chuva, Maneco virou as conversas:
— Mas nada que conseguiste ainda?
— Nada, Maneco! — Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. — Já mais de uma semana que estou procurar trabalho e nada!...
Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:
— E esse do jornal, já foste?
— Ainda.
— O melhor é mesmo aproveitar hoje, cadavez, quem sabe?...
— Oh! Não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal “escritório e armazém”. Você já sabe: sai serviço pesado!
Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. Em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão∗ pondo uma chapada nas costas de Zeca:
— Vamos, miúdo!
Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:
— Eu vou sozinho, Maneco. Sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...
Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada e, antes de sair embora, recomendou:
— Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!
O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios do sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio do emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...
Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de cáqui bem engomada, espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigiu-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. Um homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:
— Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? Anda para aqui. Xico, ó Xico!
O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado∗; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar do escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:
— Ouve lá, pá, onde é que nasceste?
— Nasceu onde? — repetiu o contínuo.
— Catete, patrão!
O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.
— De Catete, hem?! Icolibengo∗?... Calcinhas∗ e ladrões e mangonheiros!... E agora por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes∗!...
Zeca Santos nem percebeu mesmo como é saiu tão depressa sem dar encontro na porta de vidro. A cara do homem metia medo, parecia tinha ficado maluco, bêbado, todo encarnado a mostrar-lhe com o dedo, ameaçando-lhe, xingando, e todas as pessoas que estavam passar olhavam o rapaz banzado∗, quieto, levando encontrões e pisa-delas, um miúdo pôs-lhe mesmo uma chapada no pescoço. O homem, na porta, continuava com as palavras dele:
— Icolibengo, hem!? Filho da puta!... Se aqui apareces mais, racho-te os chifres!...
De repente, vendo as pessoas nos passeios começarem a parar e perguntar saber os casos, Zeca Santos sentiu o medo a avisar-lhe no coração, um sinal parecia tinha dormido e acordava agora no meio do perigo, no escuro e, com a fome a pôr-lhe riscos encarnados na frente dos olhos, correu pela Rua da Alfândega, para esquivar na confusão de pessoas, na Mutamba∗.
continua página 020...
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∗ macaco — macacão.
∗ bassula — golpe em luta corporal, semelhante à capoeira, que consiste em dar rasteiras no
adversário.
∗ quitande — refogado de purê de feijão temperado com azeite-de-dendê.
∗ maboque — fruta ácida, de casca dura (Strychnos aculaata Solered), que se come simples,
com açúcar ou na forma de refresco.
∗ caniço (voz de) — fina.
∗ maximbombo — ônibus.
∗ palheto — tipo de vinho tinto, de cor pouco carregada.
∗ gozão — gozador.
∗ assimilado — africano identificado com a cultura do colonizador.
∗ icolibengo — natural da região de Icolo e Bengo, perto de Luanda.
∗ calcinhas — (depreciativo) que se veste à européia.
∗ catetes — naturais de Catete. localidade a leste de Luanda.
∗ banzado — espantado, pasmado, surpreso.
∗ Mutamba — nome de um largo de Luanda.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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