Luaanda... Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos
Lamentou outra vez:
— Aiuê!... Não te disse para ir no sô Souto? Cadavez se você ia lhe ajudar, ia nos fiar outra vez, cada-vez quem sabe...
— O branco sô Souto, o branco sô Souto! Vê só, vavó, vê ainda, mira bem!
Zeca Santos estava tirar a camisa amarela de desenhos de flores coloridas, essa camisa que tinha-lhe custado o último dinheiro e provocado uma grande maca∗ com vavó. Na pouca luz da cubata e do dia sem sol, as costas estreitas de Zeca apareceram com um comprido risco vermelho atravessado. Vavó levantou com depressa e passou as mãos velhas e cheias de calos nas costas novas do neto.
— Aka!∗ Como é o menino arranjaste?... Diz só! Fal’então!?
Mas ele já tinha vestido outra vez a camisa. Virado para vavó Xíxi, empurrou-lhe devagar para ir no caixote dela e sentando o comprido corpo magro na mesa pequena, começou falar triste, disse:
— Vavó me disseste para eu ir lá e eu fui. Verdade! Nem mesmo a chuva que tinha começado a chover e a fome estava-me chatiar nessa hora...
Sô Souto recebera-lhe bem, amigo e risonho, pôs mesmo a mão no ombro dele para falar:
— Pois claro! Para o filho de João Ferreira tenho sempre qualquer coisa. E a avó, vai bem? Diz ela não precisa ter vergonha... a conta é pequena, pode vir ainda cá...
Tinha desaparecido depois, na direção do armazém, arrastando a barriga dele dentro da camisola suja e Zeca Santos distraiu-se a olhar a bomba da gasolina com tambor e manivela de medir, não era automática como as da Baixa, não senhor. E dois vidros amarelos, cada qual marcando cinco litros...
— Juro, vavó, não fiz nada, não disse nada! Só tinha-lhe pedido para trabalhar na bomba de medir gasolina, mais nada... Só para comer e para te fiar comida ainda, vavó! E ele estava rir, estava dizer sim senhor, eu era filho de João Ferreira, bom homem e depois nem dei conta, vavó...
Zeca Santos queria chorar, os olhos enchiam de água, mas a raiva era muita e quente como tinha sido o grito do cavalmarinho∗ nas costas dele e esse calor mau secava as lágrimas ainda lá dentro dos olhos, não podiam sair mesmo.
— ...me arreou-me∗ não sei por que então, vavó! Não fiz nada! Quando eu fugi, ficou me gritar ia pôr queixa no Posto, eu era gatuno como o Matias que andava lhe roubar o dinheiro da gasolina quando estava trabalhar lá...
— Ih!? Mas esse menino está preso mesmo, mentira?
— Sim, vavó! Foi ele que lhe levou no Posto. E estava-me gritar eu era filho de terrorista, ia-me pôr uma queixa, não tinha mais comida para bandidos, não tinha mais fiado...
Vavó Xíxi Hengele, velha sempre satisfeita, a vida nunca lhe atrapalhava, descobria piada todo o dia, todos os casos e confusões, não queria acreditar essas coisas estava ouvir, mas as costas do neto falavam verdade. Um branco como sô Souto, amigo de João Ferreira, como é ele ia ainda bater de chicote no menino só porque foi pedir serviço? Hum!... Muitas vezes Zeca tinha começado com as manias antigas, o melhor era procurar saber a verdade inteira...
— Mas ouve ainda, Zeca! Você não lhe tiraste nada? Nem mexeste mesmo nas roupas da porta, só para ver?...
Cautelosa, com toda a esperteza e técnica dos anos que tinha vivido, vavó Xíxi começou explorar o neto, pôr perguntas pareciam à toa mas eram para descobrir se ele falava mentira. Zeca não aceitou: saltou da mesa, os sapatos furados puseram um barulho mole no chão de barro, e gritou raivoso, defendendo-se:
— Vavó, possa!∗ Não sou ladrão! Não roubei nada! Só queria o serviço, juro, vavó!
Os grandes soluços, as lágrimas brancas a descerem na cara magra dele, a cabeça encostada na mesa e escondida nos braços, todo o corpo a tremer sacudido com a dor desse falso∗, com a raiva que a fome trazia, calaram a boca de vavó.
Lá fora, a chuva tinha começado cair mais fina e vagarosa, parecia era mesmo cacimbo, e muitas pessoas já que adiantavam sair, os monas com suas brincadeiras de barcos de luando∗ e penas de pato nas cacimbas do mus-seque. Junto com os estalos da lenha a arder e o cantar da água na lata, os soluços de Zeca Santos enchiam a cubata com uma tristeza que, pouco-pouco, começou atacar vavó, fez a cabeça velha ficar abanar à toa, pensando essa vida assim, sem comida, trabalho nada, no choro do neto, nessa vez parece ele tinha razão. Mas também Zeca não ganhava mais juízo, quando estava ganhar o vencimento no emprego que lhe correram, só queria camisa, só queria calça de quinze embaixo, só queria peúga∗ vermelha, mesmo que lhe avisava para guardar ainda um dinheiro, qual?! Refilava ele é que ganhava e só farra, farra, acordar tarde, sair nas corridas até que lhe despediram. Uma grande ternura, uma grande vontade de lhe deitar no colo como nos tempos do antigamente, de mo-nandengue chorão e magrinho, adiantou entrar no coração dela, velho e cansado; para disfarçar, foi, sem barulho, desembrulhar o pacote ela tinha trazido da Baixa.
A chuva já estava calada e um fresco vento molhado punha pequenas ondas nas águas barrentas das cacimbas, sacudia as gotas das folhas dos paus. Os zincos despregados batiam devagar com esse sopro. O barulho do papel a desembrulhar debaixo da mesa, as costas dobradas de vavó, os pés dela, descalços e grossos, espetados no chão vermelho de lama, obrigaram Zeca Santos a levantar a cabeça ainda cheia de lágrimas. Tudo parecia-lhe agora mais claro, mais leve, sem tantas sombras; a dor na barriga já não estava lá, era só fresco, vazio, nesse sítio, parece mesmo não tinha mais nada, era oco aí, como as coisas dentro da cubata estavam também a ficar. E o olhar bom de vavó, desembrulhando o jornal na frente dele, vinha de longe, parecia ela mesmo uma sombra.
— Zeca! Olha ainda, menino... Parece estas coisas é mandioca pequena, vou lhes cozer. E tem esta laranja, vê ainda, menino! Arranjei para você...
E foi nessa hora, com as coisas bem diante da cara, o sorriso de vavó cheio de amizade e tristeza, Zeca Santos sentiu uma vergonha antiga, uma vergonha que lhe fazia querer sempre as camisas coloridas, as calças como sô Jaime só quem sabia fazer, uma vergonha que não lhe deixava aceitar comida, como ainda nessa manhã: Maneco tinha querido dar meia-sandes∗, voltara-lhe. Agora enchia-lhe no peito, no coração. Fechou os olhos com força, com as mãos, para não ver o que sabia, para não sentir, não pensar mais o corpo velho e curvado de vavó, chupado da vida e dos cacimbos, debaixo da chuva, remexendo com suas mãos secas e cheias de nós, os caixotes de lixo dos bairros da Baixa. As laranjas quase todas podres, só ainda um bocado é que se aproveitava em cada uma e, o pior mesmo, aquelas mandiocas pequenas, encarnadas, vavó queria enganar, vavó queria lhes cozer para acabar com a lombriga a roer no estômago...
Nem Zeca mesmo podia saber o que sucedeu: saltou, empurrou vavó Xíxi e, sem pensar mais nada, antes que as lágrimas iam lhe nascer outra vez nos olhos, saiu a gritar, a falar com voz rouca, a repetir parecia era maluco:
— São dálias, vavó! São flores, vavó! É a raiz das flores, vavó!
A porta inchada com a chuva não entrou no caixilho dela. Bateu com força uma vez, duas vezes; ficou depois a ranger, a chorar baixinho essa saída de Zeca. Vavó Xíxi, no meio da cubata escura e cheia de fumo mal soprado, olhava a saída do neto, segurando nas mãos a tremer as raízes de dália e abanando a cabeça num lado e noutro, sem mesmo dar conta, parecia era um boneco de montra de lotaria.
continua página 011...
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∗ maca — confusão.
Passar maca — criar confusão.
∗ aka — interjeição de surpresa.
∗ cavalmarinho — o mesmo que cavalo-marinho ou chicote cavalo-marinho: chibata feita de
couro ou cauda de hipopótamo.
∗ arrear — bater.
∗ possa! — interjeição que equivale aproximadamente a “puxa vida!”.
∗ falso — mentira; o mesmo que falso testemunho.
∗ barcos de luando — barquinhos feitos com pedaços da esteira denominada luando (essa
esteira é tecida com folhas de palmeira).
∗ peúga — meia.
∗ meia-sandes — meio sanduíche.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Leia também:
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a raiva era muita e quente (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Mas tinha já alegria (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... Virou-lhe o mataco (02)
Leituras: JOSÉ LUANDINO VIEIRA
- JOÃO VÊNCIO: OS SEUS AMORES
Luandino Vieira
Lamentou outra vez:
— Aiuê!... Não te disse para ir no sô Souto? Cadavez se você ia lhe ajudar, ia nos fiar outra vez, cada-vez quem sabe...
— O branco sô Souto, o branco sô Souto! Vê só, vavó, vê ainda, mira bem!
Zeca Santos estava tirar a camisa amarela de desenhos de flores coloridas, essa camisa que tinha-lhe custado o último dinheiro e provocado uma grande maca∗ com vavó. Na pouca luz da cubata e do dia sem sol, as costas estreitas de Zeca apareceram com um comprido risco vermelho atravessado. Vavó levantou com depressa e passou as mãos velhas e cheias de calos nas costas novas do neto.
— Aka!∗ Como é o menino arranjaste?... Diz só! Fal’então!?
Mas ele já tinha vestido outra vez a camisa. Virado para vavó Xíxi, empurrou-lhe devagar para ir no caixote dela e sentando o comprido corpo magro na mesa pequena, começou falar triste, disse:
— Vavó me disseste para eu ir lá e eu fui. Verdade! Nem mesmo a chuva que tinha começado a chover e a fome estava-me chatiar nessa hora...
Sô Souto recebera-lhe bem, amigo e risonho, pôs mesmo a mão no ombro dele para falar:
— Pois claro! Para o filho de João Ferreira tenho sempre qualquer coisa. E a avó, vai bem? Diz ela não precisa ter vergonha... a conta é pequena, pode vir ainda cá...
Tinha desaparecido depois, na direção do armazém, arrastando a barriga dele dentro da camisola suja e Zeca Santos distraiu-se a olhar a bomba da gasolina com tambor e manivela de medir, não era automática como as da Baixa, não senhor. E dois vidros amarelos, cada qual marcando cinco litros...
— Juro, vavó, não fiz nada, não disse nada! Só tinha-lhe pedido para trabalhar na bomba de medir gasolina, mais nada... Só para comer e para te fiar comida ainda, vavó! E ele estava rir, estava dizer sim senhor, eu era filho de João Ferreira, bom homem e depois nem dei conta, vavó...
Zeca Santos queria chorar, os olhos enchiam de água, mas a raiva era muita e quente como tinha sido o grito do cavalmarinho∗ nas costas dele e esse calor mau secava as lágrimas ainda lá dentro dos olhos, não podiam sair mesmo.
— ...me arreou-me∗ não sei por que então, vavó! Não fiz nada! Quando eu fugi, ficou me gritar ia pôr queixa no Posto, eu era gatuno como o Matias que andava lhe roubar o dinheiro da gasolina quando estava trabalhar lá...
— Ih!? Mas esse menino está preso mesmo, mentira?
— Sim, vavó! Foi ele que lhe levou no Posto. E estava-me gritar eu era filho de terrorista, ia-me pôr uma queixa, não tinha mais comida para bandidos, não tinha mais fiado...
Vavó Xíxi Hengele, velha sempre satisfeita, a vida nunca lhe atrapalhava, descobria piada todo o dia, todos os casos e confusões, não queria acreditar essas coisas estava ouvir, mas as costas do neto falavam verdade. Um branco como sô Souto, amigo de João Ferreira, como é ele ia ainda bater de chicote no menino só porque foi pedir serviço? Hum!... Muitas vezes Zeca tinha começado com as manias antigas, o melhor era procurar saber a verdade inteira...
— Mas ouve ainda, Zeca! Você não lhe tiraste nada? Nem mexeste mesmo nas roupas da porta, só para ver?...
Cautelosa, com toda a esperteza e técnica dos anos que tinha vivido, vavó Xíxi começou explorar o neto, pôr perguntas pareciam à toa mas eram para descobrir se ele falava mentira. Zeca não aceitou: saltou da mesa, os sapatos furados puseram um barulho mole no chão de barro, e gritou raivoso, defendendo-se:
— Vavó, possa!∗ Não sou ladrão! Não roubei nada! Só queria o serviço, juro, vavó!
Os grandes soluços, as lágrimas brancas a descerem na cara magra dele, a cabeça encostada na mesa e escondida nos braços, todo o corpo a tremer sacudido com a dor desse falso∗, com a raiva que a fome trazia, calaram a boca de vavó.
Lá fora, a chuva tinha começado cair mais fina e vagarosa, parecia era mesmo cacimbo, e muitas pessoas já que adiantavam sair, os monas com suas brincadeiras de barcos de luando∗ e penas de pato nas cacimbas do mus-seque. Junto com os estalos da lenha a arder e o cantar da água na lata, os soluços de Zeca Santos enchiam a cubata com uma tristeza que, pouco-pouco, começou atacar vavó, fez a cabeça velha ficar abanar à toa, pensando essa vida assim, sem comida, trabalho nada, no choro do neto, nessa vez parece ele tinha razão. Mas também Zeca não ganhava mais juízo, quando estava ganhar o vencimento no emprego que lhe correram, só queria camisa, só queria calça de quinze embaixo, só queria peúga∗ vermelha, mesmo que lhe avisava para guardar ainda um dinheiro, qual?! Refilava ele é que ganhava e só farra, farra, acordar tarde, sair nas corridas até que lhe despediram. Uma grande ternura, uma grande vontade de lhe deitar no colo como nos tempos do antigamente, de mo-nandengue chorão e magrinho, adiantou entrar no coração dela, velho e cansado; para disfarçar, foi, sem barulho, desembrulhar o pacote ela tinha trazido da Baixa.
A chuva já estava calada e um fresco vento molhado punha pequenas ondas nas águas barrentas das cacimbas, sacudia as gotas das folhas dos paus. Os zincos despregados batiam devagar com esse sopro. O barulho do papel a desembrulhar debaixo da mesa, as costas dobradas de vavó, os pés dela, descalços e grossos, espetados no chão vermelho de lama, obrigaram Zeca Santos a levantar a cabeça ainda cheia de lágrimas. Tudo parecia-lhe agora mais claro, mais leve, sem tantas sombras; a dor na barriga já não estava lá, era só fresco, vazio, nesse sítio, parece mesmo não tinha mais nada, era oco aí, como as coisas dentro da cubata estavam também a ficar. E o olhar bom de vavó, desembrulhando o jornal na frente dele, vinha de longe, parecia ela mesmo uma sombra.
— Zeca! Olha ainda, menino... Parece estas coisas é mandioca pequena, vou lhes cozer. E tem esta laranja, vê ainda, menino! Arranjei para você...
E foi nessa hora, com as coisas bem diante da cara, o sorriso de vavó cheio de amizade e tristeza, Zeca Santos sentiu uma vergonha antiga, uma vergonha que lhe fazia querer sempre as camisas coloridas, as calças como sô Jaime só quem sabia fazer, uma vergonha que não lhe deixava aceitar comida, como ainda nessa manhã: Maneco tinha querido dar meia-sandes∗, voltara-lhe. Agora enchia-lhe no peito, no coração. Fechou os olhos com força, com as mãos, para não ver o que sabia, para não sentir, não pensar mais o corpo velho e curvado de vavó, chupado da vida e dos cacimbos, debaixo da chuva, remexendo com suas mãos secas e cheias de nós, os caixotes de lixo dos bairros da Baixa. As laranjas quase todas podres, só ainda um bocado é que se aproveitava em cada uma e, o pior mesmo, aquelas mandiocas pequenas, encarnadas, vavó queria enganar, vavó queria lhes cozer para acabar com a lombriga a roer no estômago...
Nem Zeca mesmo podia saber o que sucedeu: saltou, empurrou vavó Xíxi e, sem pensar mais nada, antes que as lágrimas iam lhe nascer outra vez nos olhos, saiu a gritar, a falar com voz rouca, a repetir parecia era maluco:
— São dálias, vavó! São flores, vavó! É a raiz das flores, vavó!
A porta inchada com a chuva não entrou no caixilho dela. Bateu com força uma vez, duas vezes; ficou depois a ranger, a chorar baixinho essa saída de Zeca. Vavó Xíxi, no meio da cubata escura e cheia de fumo mal soprado, olhava a saída do neto, segurando nas mãos a tremer as raízes de dália e abanando a cabeça num lado e noutro, sem mesmo dar conta, parecia era um boneco de montra de lotaria.
continua página 011...
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∗ maca — confusão.
Passar maca — criar confusão.
∗ aka — interjeição de surpresa.
∗ cavalmarinho — o mesmo que cavalo-marinho ou chicote cavalo-marinho: chibata feita de
couro ou cauda de hipopótamo.
∗ arrear — bater.
∗ possa! — interjeição que equivale aproximadamente a “puxa vida!”.
∗ falso — mentira; o mesmo que falso testemunho.
∗ barcos de luando — barquinhos feitos com pedaços da esteira denominada luando (essa
esteira é tecida com folhas de palmeira).
∗ peúga — meia.
∗ meia-sandes — meio sanduíche.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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"As palavras mentem..."
Leituras: JOSÉ LUANDINO VIEIRA
- JOÃO VÊNCIO: OS SEUS AMORES
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