Luaanda... Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos
O sol desce mangonheiro para trás do morro da Fortaleza e todo o Coqueiros está a se cobrir com uma poeira de luz que faz parecer o mar, lá adiante, vidro de espelho. Mas as moscas pousam-lhe muito e a voz de Cecília Ferreira, nga Xíxi para as amigas e vizinhas, põe, de repente, confusão no meio das raparigas dentro da casa, cortando, cosendo e engomando panos e as roupas de vender.
— Madía, Madí’é∗!... Venha cá!
E nga Xíxi, dona Cecília, que está morar nos Coqueiros em casa de pequeno sobrado, com discípulas de costura e comidas, com negócio de quitanda∗ de panos, fica-se, gorda e suada, sentindo o bom do vento do abano que Maria está abanar ali mesmo, na cara da rua.
É fim da tarde, as pessoas passam para suas casas e o respeito pelos Bastos Ferreira sai nos cumprimentos, nos sorrisos, no curvar das costas, nas palavras:
— Nga Xíxi, como vai? Vai bem? E o seu homem?
— Gozando o fresco, dona Cecília?... Os meus respeitos!
Tem mesmo o branco Abel, malandro empregado da Alfândega, que chega, respeitador e interesseiro, para beijar a mão negra da mulher de pele brilhante.
— Os sinceros respeitos a V. Ex.a deste humilde admirador!
Ri os dentes brancos dela, parece são conchas, xuculula-lhe∗, mas não é raiva nem desprezo, tem uma escondida satisfação no fundo desse revirar dos olhos bonitos e, no fim, aponta a esteira, quase séria:
— Brinque com o Joaozinho, Abel! Se Bastos Ferreira sabe as suas palavras... você, Abelito, vai sujar as calças!
E despede-o com um muxoxo, a conversa com esse homem pode ser de perigo se lhe dá confiança, o rapaz tem fama. Lá dentro, as discípulas recomeçam o barulho do trabalho, dos risos e cantigas: tinham parado, curiosas, sempre nessa hora gostavam ouvir os quissendes de nga Xíxi no rapaz da Alfândega.
Dona Cecília continua tomando conta de Joãozinho, monandengue quieto, de grandes olhos quase parados. O vento do fim do dia vem, com as cores do sol a fugir no mar, cobrir, tapar o Coqueiros, e é um sol muito grande, grande, que cresce, encarnado, a queimar as cores das casas, o verde dos paus, o azul do céu... ...
Sentada no chão molhado da porta da cubata, nga Xíxi Hengele, como lhe chamam no musseque — boca dela tem sempre piada, mesmo se é conversa de óbito não faz mal, ela sempre fala de maneira que uns riem, outros não estão perceber — resmunga num estreito raio de sol fugido das nuvens para lhe bater na cara velha e magra. Vavó pisca os olhos, sente o corpo mole, a boca amarga, a cabeça pesada.
Lembra depois os pensamentos, quase estivera a sonhar; um sorriso triste vem-lhe torcer os riscos todos na cara seca. Fala só para o seu coração:
— Nga Xíxi!... Dona Cecília!... P’ra quê eu lembrei agora?!
Ri um riso triste, gasto, rouco do tabaco das cigarrilhas fumadas para dentro.
— Auá!∗ Se calhar∗ é por causa as mandiocas eu comi...
Verdade a barriga está lhe doer. Esses dias todos só água de café e então, de repente, cozinhou aquelas batatas, comeu-lhes todas, muitas vezes era isso que tinha-lhe feito mal. Gosto delas não era bem mandioca, batata-doce também não era, esses são gostos vavó conhece mesmo, mas não aceita lembrar outra vez as palavras do neto saindo, zangado, naquela hora do almoço...
— Oh!... Não vou morrer, e a fome já não tenho...
Mas essas ideias, aparecidas durante o sono, não querem lhe deixar, agarram na cabeça velha, não aceitam ir embora, e a lembrança dos tempos do antigamente não foge: nada que faltava lá em casa, comida era montes, roupa era montes, dinheiro nem se fala... Continua ali a morder-lhe, mesmo agora, não sendo mais dona Cecília Bastos Ferreira. E vavó não resiste, não luta; para quê? Deixa esses farrapos das coisas antigas brincarem na cabeça, porem pena, tristeza; continua só repetindo, baixinho, parece quer dar sua desculpa em alguém:
— É a vida!... Deus é pai, não é padrasto. Deus é que sabe!...
No sol pequeno, pelejando com as nuvens ainda a tapar o azul do céu, vem um calor fresco da água que caiu. Pelos fios, atravessando o musseque, as piápias∗ estão pousadas em bandos, esquecendo, distraídas, as fisgas dos miúdos∗. Os pardais já saltam, pardal não sabe andar, e vão assim, pelo chão molhado, apanhar as jingunas∗ de encher os papos. Nos troncos mais novos das mulembas, plim-plaus∗ e rabos-dejunco∗ estão cantar a derrota que dão nos figos desses paus. Marimbondos saem malucos dos ninhos deles, nos cajueiros; os gumbatetes∗ aproveitam o barro para adiantar construir as casas. Das cubatas, as galinhas e os pintinhos já saíram muito tempo, chovia pequeno ainda e todo o chão de sítio de gafanhotos e salalés∗ e formigas está remexido. Só os cães ficaram nas portas, enrolados, no fundo dos buracos, aproveitando a areia fresca.
Mas vavó não sente esse barulho da vida à volta dela. Tem o soprar do vento, o bater dos zincos; nalguns sítios, o cantar da água a correr ainda e, em cima de tudo, misturando com todos os ruídos, o zumbir das vozes das pessoas do musseque, falando, rindo, essa música boa dos barulhos dos pássaros e dos paus, das águas, parece sem esse viver da gente o resto não podia se ouvir mesmo, não era nada. Tudo isso é para vavó muito velho, muito antigo, sempre a vida dela lhe conheceu todos os anos, todos os cacimbos, todas as chuvas, e agora, nessa hora, a barriga estava lhe doer, a cabeça cada vez mais pesada, o corpo com frio. Vontade para ir dentro da cubata também já não tem; deixa-se ficar assim mesmo, sentada, as moscas pousadas nos panos pretos, a boca respirando com força o ar novo que está soprar, os olhos quase fechados...
— Boa-tarde, vavó Xíxi. Como passa?
Abre os olhos, quer sorrir; o sol na cara não deixa. Conhece nga Tita, fala:
— Ai! Bem ‘brigada, menina. Gregório, então?
Nga Tita baixa a cabeça, encolhe os ombros; responde depois, mais corajosa:
— Sempre o mesmo, nga Xíxi. Lá está...
Velha Xíxi encosta as mãos na parede e sua amiga ajuda-lhe a levantar, devagar, com jeito, o reumatismo espera esses dias frescos para atacar, os vizinhos sabem.
— Aiuê, nossa vida. Vida de pobre é assim.
— Pois é, vavó!... Sukuama!∗ Mas ninguém mesmo que me diz quando vai sair, nem nada. Falei no chefe, jurei mesmo meu homem não é terrorista, não senhor, dormia comigo sempre na cama, como é estava andar em confusões e essas coisas que eles querem?...
Vavó Xíxi suspirou, a barriga mordia, estava doer muito.
— É verdade, menina! Mas é assim, os brancos não aceitam...
— Ih! Falou-me eu é que dormia com ele mas ele é que conhecia bem... Veja só, vavó, veja só essa vida!... Bem! Logo-é! Quando vou voltar, paro mais para falar com a senhora.
— ‘brigada, menina. Mas diz ainda...
E a voz de nga Xíxi começou com essas palavras a fazer abrir mais os olhos quietos dela. A curiosidade, essa mania de vavó saber mesmo tudo como era, de pôr sempre sua fala, sua sentença, opinião dela saía logo-logo, obrigou-lhe a falar:
— ...Vai longe?...
— Em casa do sô Cristiano, vavó.
— Fazer o quê então, no sô Cristiano?
— Não sabe? Ai, não sabe? Mulher dele lhe nasceu uma menina!
— Ená! Outra? Possa! Esse homem só sabe fazer as raparigas!
— É verdade, vavó! E quis-lhe arrear, veja só. Diz a culpa é dela. No dia mesmo que a pobre pariu, vejam só!
Vavó Xíxi riu: o riso gasto e velho dela parecia mais novo, neste assunto. Os olhos pequenos, escondidos no fundo dos ossos, piscavam muito e toda a cara, iluminada pelo sol que já brilhava, parecia tinha azeite-palma∗. Nga Tita chegou mais perto para contar: a menina nascera cassanda∗, isso mesmo vavó, nasceu branca, branca, parecia era ainda filha de ngüeta∗, se ela não lhe conhecia bem na sua amiga Domingas, podia ficar pensar muitas vezes um branco tinha-se enganado na porta da cubata...
Vavó ria, batia as mãos satisfeita, gozando, fechando os olhos, pondo muxoxo, dobrando na cintura para rir ainda com mais força. E quando nga Tita despediu outra vez e saiu, também a rir, pela areia molhada adiante, caminho do Rangel, vavó encontrou a sua coragem antiga, sua alegria de sempre e mesmo com o bicho da fome a roer na barriga, foi-lhe gritando, malandra e satisfeita:
— Sente, menina! Mu muhatu mu ‘mbia! Mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uaku-suka...∗
continua página 016...
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∗ tipóia — palanquim de rede.
∗ Madía, Madí’é — Maria.
∗ quitanda — comércio ambulante; pequena loja.
∗ xuculular — revirar os olhos em sinal de desprezo, raiva ou ódio.
∗ auá! — interjeição de estranheza, que equivale aproximadamente a “puxa!”.
∗ se calhar — vai ver que.
∗ piápias — andorinhas.
∗ miúdo — garoto.
∗ jinguna — inseto; formiga branca alada.
∗ plim-plaus — pássaro castanho.
∗ rabo-de-junco — pássaro frugívoro, de plumagem acastanhada e cauda comprida.
∗ gumbatetes — gênero de insetos himenópteros, cuja larva parasita outros insetos.
∗ salalé — tipo de formiga cujos formigueiros se elevam como montículos de barro; cupim,
aleluia, sililuia, siriruia.
∗ sukuama! — interjeição de repulsa.
∗ azeite-palma — azeite-de-dendê.
∗ cassanda — mulher branca de má educação.
∗ ngüeta — branco.
∗ Mu muhatu mu ‘mbia! Mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka... — A
mulher é como a panela: dela sai o que é branco, o que é preto, o que é vermelho...
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Leia também:
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a chuva não caía (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... a raiva era muita e quente (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi...Vinham andando os dois... (04)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)
Luandino Vieira
continuando...
...Dona Cecília de Bastos Ferreira, sentada na cadeira de bordão, na porta da casa, vê passar o vento fresco das cinco horas, mas as moscas não lhe largam. É dezembro, calor muito; seu homem, Bastos Ferreira, mulato de antiga família de condenados, saiu já dois quinze dias para negociar no mato perto, acompanhando grande fila de monangambas∗, fazendo o caminho a pé com os empregados dele, tipóia∗ não gostava, dizia que homem não anda nas costas de outro homem. O sol desce mangonheiro para trás do morro da Fortaleza e todo o Coqueiros está a se cobrir com uma poeira de luz que faz parecer o mar, lá adiante, vidro de espelho. Mas as moscas pousam-lhe muito e a voz de Cecília Ferreira, nga Xíxi para as amigas e vizinhas, põe, de repente, confusão no meio das raparigas dentro da casa, cortando, cosendo e engomando panos e as roupas de vender.
— Madía, Madí’é∗!... Venha cá!
E nga Xíxi, dona Cecília, que está morar nos Coqueiros em casa de pequeno sobrado, com discípulas de costura e comidas, com negócio de quitanda∗ de panos, fica-se, gorda e suada, sentindo o bom do vento do abano que Maria está abanar ali mesmo, na cara da rua.
É fim da tarde, as pessoas passam para suas casas e o respeito pelos Bastos Ferreira sai nos cumprimentos, nos sorrisos, no curvar das costas, nas palavras:
— Nga Xíxi, como vai? Vai bem? E o seu homem?
— Gozando o fresco, dona Cecília?... Os meus respeitos!
Tem mesmo o branco Abel, malandro empregado da Alfândega, que chega, respeitador e interesseiro, para beijar a mão negra da mulher de pele brilhante.
— Os sinceros respeitos a V. Ex.a deste humilde admirador!
Ri os dentes brancos dela, parece são conchas, xuculula-lhe∗, mas não é raiva nem desprezo, tem uma escondida satisfação no fundo desse revirar dos olhos bonitos e, no fim, aponta a esteira, quase séria:
— Brinque com o Joaozinho, Abel! Se Bastos Ferreira sabe as suas palavras... você, Abelito, vai sujar as calças!
E despede-o com um muxoxo, a conversa com esse homem pode ser de perigo se lhe dá confiança, o rapaz tem fama. Lá dentro, as discípulas recomeçam o barulho do trabalho, dos risos e cantigas: tinham parado, curiosas, sempre nessa hora gostavam ouvir os quissendes de nga Xíxi no rapaz da Alfândega.
Dona Cecília continua tomando conta de Joãozinho, monandengue quieto, de grandes olhos quase parados. O vento do fim do dia vem, com as cores do sol a fugir no mar, cobrir, tapar o Coqueiros, e é um sol muito grande, grande, que cresce, encarnado, a queimar as cores das casas, o verde dos paus, o azul do céu... ...
Sentada no chão molhado da porta da cubata, nga Xíxi Hengele, como lhe chamam no musseque — boca dela tem sempre piada, mesmo se é conversa de óbito não faz mal, ela sempre fala de maneira que uns riem, outros não estão perceber — resmunga num estreito raio de sol fugido das nuvens para lhe bater na cara velha e magra. Vavó pisca os olhos, sente o corpo mole, a boca amarga, a cabeça pesada.
Lembra depois os pensamentos, quase estivera a sonhar; um sorriso triste vem-lhe torcer os riscos todos na cara seca. Fala só para o seu coração:
— Nga Xíxi!... Dona Cecília!... P’ra quê eu lembrei agora?!
Ri um riso triste, gasto, rouco do tabaco das cigarrilhas fumadas para dentro.
— Auá!∗ Se calhar∗ é por causa as mandiocas eu comi...
Verdade a barriga está lhe doer. Esses dias todos só água de café e então, de repente, cozinhou aquelas batatas, comeu-lhes todas, muitas vezes era isso que tinha-lhe feito mal. Gosto delas não era bem mandioca, batata-doce também não era, esses são gostos vavó conhece mesmo, mas não aceita lembrar outra vez as palavras do neto saindo, zangado, naquela hora do almoço...
— Oh!... Não vou morrer, e a fome já não tenho...
Mas essas ideias, aparecidas durante o sono, não querem lhe deixar, agarram na cabeça velha, não aceitam ir embora, e a lembrança dos tempos do antigamente não foge: nada que faltava lá em casa, comida era montes, roupa era montes, dinheiro nem se fala... Continua ali a morder-lhe, mesmo agora, não sendo mais dona Cecília Bastos Ferreira. E vavó não resiste, não luta; para quê? Deixa esses farrapos das coisas antigas brincarem na cabeça, porem pena, tristeza; continua só repetindo, baixinho, parece quer dar sua desculpa em alguém:
— É a vida!... Deus é pai, não é padrasto. Deus é que sabe!...
No sol pequeno, pelejando com as nuvens ainda a tapar o azul do céu, vem um calor fresco da água que caiu. Pelos fios, atravessando o musseque, as piápias∗ estão pousadas em bandos, esquecendo, distraídas, as fisgas dos miúdos∗. Os pardais já saltam, pardal não sabe andar, e vão assim, pelo chão molhado, apanhar as jingunas∗ de encher os papos. Nos troncos mais novos das mulembas, plim-plaus∗ e rabos-dejunco∗ estão cantar a derrota que dão nos figos desses paus. Marimbondos saem malucos dos ninhos deles, nos cajueiros; os gumbatetes∗ aproveitam o barro para adiantar construir as casas. Das cubatas, as galinhas e os pintinhos já saíram muito tempo, chovia pequeno ainda e todo o chão de sítio de gafanhotos e salalés∗ e formigas está remexido. Só os cães ficaram nas portas, enrolados, no fundo dos buracos, aproveitando a areia fresca.
Mas vavó não sente esse barulho da vida à volta dela. Tem o soprar do vento, o bater dos zincos; nalguns sítios, o cantar da água a correr ainda e, em cima de tudo, misturando com todos os ruídos, o zumbir das vozes das pessoas do musseque, falando, rindo, essa música boa dos barulhos dos pássaros e dos paus, das águas, parece sem esse viver da gente o resto não podia se ouvir mesmo, não era nada. Tudo isso é para vavó muito velho, muito antigo, sempre a vida dela lhe conheceu todos os anos, todos os cacimbos, todas as chuvas, e agora, nessa hora, a barriga estava lhe doer, a cabeça cada vez mais pesada, o corpo com frio. Vontade para ir dentro da cubata também já não tem; deixa-se ficar assim mesmo, sentada, as moscas pousadas nos panos pretos, a boca respirando com força o ar novo que está soprar, os olhos quase fechados...
— Boa-tarde, vavó Xíxi. Como passa?
Abre os olhos, quer sorrir; o sol na cara não deixa. Conhece nga Tita, fala:
— Ai! Bem ‘brigada, menina. Gregório, então?
Nga Tita baixa a cabeça, encolhe os ombros; responde depois, mais corajosa:
— Sempre o mesmo, nga Xíxi. Lá está...
Velha Xíxi encosta as mãos na parede e sua amiga ajuda-lhe a levantar, devagar, com jeito, o reumatismo espera esses dias frescos para atacar, os vizinhos sabem.
— Aiuê, nossa vida. Vida de pobre é assim.
— Pois é, vavó!... Sukuama!∗ Mas ninguém mesmo que me diz quando vai sair, nem nada. Falei no chefe, jurei mesmo meu homem não é terrorista, não senhor, dormia comigo sempre na cama, como é estava andar em confusões e essas coisas que eles querem?...
Vavó Xíxi suspirou, a barriga mordia, estava doer muito.
— É verdade, menina! Mas é assim, os brancos não aceitam...
— Ih! Falou-me eu é que dormia com ele mas ele é que conhecia bem... Veja só, vavó, veja só essa vida!... Bem! Logo-é! Quando vou voltar, paro mais para falar com a senhora.
— ‘brigada, menina. Mas diz ainda...
E a voz de nga Xíxi começou com essas palavras a fazer abrir mais os olhos quietos dela. A curiosidade, essa mania de vavó saber mesmo tudo como era, de pôr sempre sua fala, sua sentença, opinião dela saía logo-logo, obrigou-lhe a falar:
— ...Vai longe?...
— Em casa do sô Cristiano, vavó.
— Fazer o quê então, no sô Cristiano?
— Não sabe? Ai, não sabe? Mulher dele lhe nasceu uma menina!
— Ená! Outra? Possa! Esse homem só sabe fazer as raparigas!
— É verdade, vavó! E quis-lhe arrear, veja só. Diz a culpa é dela. No dia mesmo que a pobre pariu, vejam só!
Vavó Xíxi riu: o riso gasto e velho dela parecia mais novo, neste assunto. Os olhos pequenos, escondidos no fundo dos ossos, piscavam muito e toda a cara, iluminada pelo sol que já brilhava, parecia tinha azeite-palma∗. Nga Tita chegou mais perto para contar: a menina nascera cassanda∗, isso mesmo vavó, nasceu branca, branca, parecia era ainda filha de ngüeta∗, se ela não lhe conhecia bem na sua amiga Domingas, podia ficar pensar muitas vezes um branco tinha-se enganado na porta da cubata...
Vavó ria, batia as mãos satisfeita, gozando, fechando os olhos, pondo muxoxo, dobrando na cintura para rir ainda com mais força. E quando nga Tita despediu outra vez e saiu, também a rir, pela areia molhada adiante, caminho do Rangel, vavó encontrou a sua coragem antiga, sua alegria de sempre e mesmo com o bicho da fome a roer na barriga, foi-lhe gritando, malandra e satisfeita:
— Sente, menina! Mu muhatu mu ‘mbia! Mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uaku-suka...∗
continua página 016...
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∗ tipóia — palanquim de rede.
∗ Madía, Madí’é — Maria.
∗ quitanda — comércio ambulante; pequena loja.
∗ xuculular — revirar os olhos em sinal de desprezo, raiva ou ódio.
∗ auá! — interjeição de estranheza, que equivale aproximadamente a “puxa!”.
∗ se calhar — vai ver que.
∗ piápias — andorinhas.
∗ miúdo — garoto.
∗ jinguna — inseto; formiga branca alada.
∗ plim-plaus — pássaro castanho.
∗ rabo-de-junco — pássaro frugívoro, de plumagem acastanhada e cauda comprida.
∗ gumbatetes — gênero de insetos himenópteros, cuja larva parasita outros insetos.
∗ salalé — tipo de formiga cujos formigueiros se elevam como montículos de barro; cupim,
aleluia, sililuia, siriruia.
∗ sukuama! — interjeição de repulsa.
∗ azeite-palma — azeite-de-dendê.
∗ cassanda — mulher branca de má educação.
∗ ngüeta — branco.
∗ Mu muhatu mu ‘mbia! Mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka... — A
mulher é como a panela: dela sai o que é branco, o que é preto, o que é vermelho...
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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