sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)

Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio



Luandino Vieira



Um tal Lomelino dos Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas, vivia com a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga∗. Melhor ainda: no sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira∗. As pessoas que estão morar lá dizem é o Sambizanga; a polícia que anda patrulhar lá, quer já é Lixeira mesmo. Filho de Anica dos Reis, mãe, e de pai não lhe conhecia, o comerciante mais perto era mesmo o Amaral. Ou assim disse, na Judiciária, quando foi na justiça. Mas também podia ser mentira dele, lhe agarraram já com o saco, lá dentro sete patos gordos e vivos e as desculpas nasceram ainda poucas. 

Um amigo dele é que lhe salvou. O Futa, Xico Futa, deu-lhe encontro lá na esquadra, senão ia lhe pôr chicote o auxiliar Zuzé.

Começou assim:

Entrou meia-noite e meia já passava, o saco tinha ficado no piquete, os patos lá dentro a mexerem, cuacavam∗, cadavez estavam perceber tinham-lhes salvado o pescoço. Zuzé dormia nessa hora e sempre ficava raivoso quando lhe acordavam só para guardar um preso. Foi o que sucedeu. Cheio de sono, os olhos vermelhos parecia era tinha fumado diamba, deixou as mãos à toa revistarem o homem, resmungando, xingando só para ele ouvir. Dosreis nem que mexia nada; quieto, os braços em cima da cabeça, no coração a raiva desse sungaribengo do Garrido aumentava, crescia, arreganhava. Apostava quem queria, jurava mesmo, sabia, o coxo tinha-lhe queixado...

— Elá! Isso aqui é o quê então? Pópilas! Se eu fico dormir...

Ria, o sono tinha-lhe fugido logo dando encontro com a pequena faca de sapateiro, no bolso de trás. Dosreis, caçado, disfarçou arranjando os trapos do casaco todo roto e desarrumado da revista.

— Você és bandido, não é?...

— Bandido não sou, não senhor!

— Cala-te a boca mas é! Você é bandido... Vamos!

Mas Dosreis não admitiu, não gostava ninguém que lhe empurrava. Tinha as pernas dele para andar, não era assim um cipaio qualquer que ia lhe enxotar, mesmo que estava na esquadra∗ não fazia mal. 


Refilou:

— Sukua’! Um aço assim pode se matar uma pessoa? Você tens cada uma... Xê! Não empurra! Sei o caminho!

— Anda lá! ‘tás arreganhar?

— Não empurra, já disse. Cipaios, tens a mania...

E foi aí mesmo já dentro da cadeia que aumentou a confusão. Zuzé arreou-lhe uma chapada no pescoço e Dosreis saltou, quis lhe dar soco, mas, no escuro da cela, os trapos do casaco amarraram-lhe e o auxiliar pôs-lhe um soco na cara. Nessa hora, toda a gente já estava acordada com o barulho e adiantava refilar, xingar para o escuro, uns vieram separar ainda, outros só falavam asneiras de insultar famílias nesses sacristas, vinham assim acordar o sono leio∗, sem respeito...

— Ená, seu sacana! Você pensas podes abusar autoridade, pensas? Dou-te com o chicote, ouviste, se você não ganhas juízo! Já se viu, um velho todo velho e ainda quer pelejar...

— Velho é trapo! Não tenho medo de cipaio...

As palavras ainda não tinham acabado e já lhe arreganhara uma cabeçada, de repente, na zuna∗, ninguém que podia pensar um corpo magro e pequeno, todo amarrado com os farrapos ia mesmo fazer aquela corrida parecia era pacassa∗. Zuzé nem teve tempo de fugir, só pôs as mãos para aguentar a cabeça do homem quando bateu na barriga dele. Aí é que apareceu o Futa, para desapartar e salvou o Lomelino mesmo na hora.

— Elá, Dosreis! Calma então!

Agarrou-lhe os braços atrás das costas, puxando com a força dele, de levantar barril cheio, sozinho, o Lomelino ficou no ar a mexer as pernas, parecia era um boneco de brinquedo. Os outros queriam apaziguar o Zuzé, ele estava raivoso, então concordavam ele tinha razão, ninguém que podia dar-lhe cabeçada assim no serviço, era um polícia para lhe respeitarem e ele jurara se iam lhe largar punha chicotes nesse cap’verde∗...

— Deixa lá. o homem, sô Zuzé... Está bêbado, não vês ainda?

— Ih?! Bêbado? Esse bandido, ponho-lhe chicotes!

— Pronto já! Ambul’o kuku∗, mano! Eu conheço-lhe bem, o homem só está com raiva da prisão... compreendes?

A voz de Futa era assim como o corpo dele, quieta e grande e com força para calar os outros. Calaram mesmo; só que Zuzé agora queria — e isso ninguém que podia lhe convencer do contrário, eram as ordens de ordem-de-serviço — o Lomelino tinha de tomar banho, todos os bêbados quando entram têm de ir embaixo do chuveiro para passar as manias... Mas ninguém que lhe ouvia já, só gozavam, com olhares malandros no auxiliar, e falavam baixinho para Dosreis: não havia direito, um homem como ele, assim civilizado e limpo, a roupa estava velha, verdade, mas não adiantava, fazerem-lhe tomar banho no cacimbo, uma da manhã, parecia era um qualquer!... E isso era ainda para lhe verem arreganhar outra vez, xingar o cipaio, adiantarem gozar mais um pouco.

Nessa hora, Xico Futa já ia acompanhar o Zuzé na porta, falando, todo abaixado em cima dele, Zuzé era um cambuta∗ metade de bocado de cana só, explicando sabia o homem e a família, era um bom, só que agora parecia tinha qualquer coisa para lhe fazer ficar raivoso. Conhecia-lhe bem, de visita mesmo, jurava era um pacífico.

— Aka! Um bom, assim com as cabeçadas?... Não precisa m’intrujar só, mano Futa. Hoje eu deixo, o amigo estás pedir, senão...

Tudo estava ficar sossegado outra vez; muitos, já tinham-se deitado para dormir; Futa, nas grades despedia com o auxiliar, aproveitava acender cigarro na beata do outro. Mas não acabou, não, porque a raiva na cabeça de Dosreis era grande e não sabia como ia-lhe fazer para sair, a porta que era preciso abrir para chegar o ar limpo e o sol quente outra vez. Só tinha lembrança do saco dos patos, sete patos gordinhos assim a dormir lá no piquete, nem chegara-lhes a ver. Atacara no escuro, devagar, um a um meteu no saco, cheio de cuidado para não assustar os gansos, esses é que fazem mais barulho que todos, na noite não presta para lhes roubar. Essa lembrança é que doía, pior que o sítio da chapada do cipaio aí na cara, em cima dos pêlos brancos da barba. Tinha de ser mesmo o Garrido que lhe queixara, não podia ser outro ainda, para lhe agarrarem logo-logo, nem que chegara no Rangel, no sítio de deixar o saco, o jipe deu-lhe encontro ainda perto da quitanda da Viúva. Azar! Mas esse sungaribengo ia-lhe pagar, jurava. E depois também, esse outro com a mania das chapadas só porque deu-lhe encontro com a faquinha...

Ximba∗ não usa cueca! — berrou-lhe, parecia era monandengue.

Alguns saltaram nas tábuas para lhe segurar, não deixaram Dosreis chegar nas grades, Futa agarrou-lhe embaixo dos braços, rindo no Zuzé para fazer desculpar, pondo dedo na testa a querer dizer. Depois, devagar, passeando na prisão enquanto o sono estava vir tapar os corpos ajuntados três-três cada tábua da cama, o amigo falou-lhe como mais novo para ouvir a sabedoria do mais velho, mas a verdade é quem estava a conselhar era o Futa mesmo. Um bocado escuro, uma falta de luz estava entrar na janela alta e a claridade pouca trazia sono com ela. Lomelino puxava o fumo quente, nessa falta de barulho da noite só o arder do tabaco misturava-se com o respirar das pessoas. Sentaram na ponta da tarimba, o grosso braço de Futa nas costas de Dosreis para proteger, parecia era asa de galinha tapando pintinho.

— Então, compadre... estás melhor?

O riso cabobo∗ de Lomelino barulhou no meio do escuro e o outro riu também, cheio de vontade.

— Sukua’, avô! Você estás velho mas arreganhas...

— É! Esse sacana do cipaio... Mal que cheguei, nem esperou nem nada, deume com a chapada logo-logo! O qu’é eu ia fazer? Ficar-me? Possa! Lomelino dos Reis não leva porrada sem devolver, mano Futa! Chapada da cara, nem minha mãe, Deus Nosso Senhor Cristo lhe conserve!





continua página 36...


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∗ Sambizanga — musseque de Luanda.
∗ Lixeira — musseque de Luanda.
∗ cuacar — o grasnar dos patos.
∗ esquadra — delegacia de polícia.
∗ leio (a) — alheio; dos outros.
∗ zuna — corrida com velocidade; que passa em velocidade; zunindo.
∗ pacassa — boi selvagem, semelhante ao búfalo.
∗ cap’verde — caboverde; no texto, caboverdiano.
∗ ambul’o kuku — deixa o avô; larga o velho.
∗ cambuta — baixinho.
∗ ximba — (gíria) cipaio.
∗ cabobo — sem dentes, desdentado.
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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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Resenha - Luuanda






a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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