Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio
continuando...
Sentou o largo, redondo, duro mataco∗ desenhado no fundo do vestido, Kam’tuta ficou pensar era sempre assim, só um pano em cima da pele, cadavez mesmo cuecas nada... e isso pôs-lhe um arrepio, ficou a correr o corpo todo até na perna aleijada, mas fugiu embora logo mirando os olhos, quietos e amigos, diferentes da provocação desse corpo cheio de sumo. Jacó desatou a xingar-lhe outra vez com os cantares dele, mas Inácia foi lhe dar umas jingubas, falando docinho, parecia até gostava era do bicho.
— Então, querido! Pronto ainda! Toma, toma... Você sabe eu gosto de você... Hum! Meu bichinho...
Garrido não aguentava essas palavras assim no papagaio, jurava sentia-se roubado, um bicho indecente receber esse amor e ele ali sem nada, até parecia Inácia estava fazer de propósito. Falou isso mesmo, mas a pequena pôs-lhe os olhos mansos nos olhos azuis e só perguntou:
— Você pensa isso de mim? Você, que me gostas?!
— Não, Inácia! Falei mal, não penso nada. É só porque o bicho é porco!
— Porco? Sukua’! Jacó é limpo. Não é, meu amor, meu papagaizinho?...
E continuava; a dor crescia no peito de Kam’tuta, ela parecia não percebia estava magoar-lhe lá dentro, doía. Até punha um tremer nas ancas para lhes remexer, roçando a cara dela no cinzento sujo do papagaio.
— Inácia, ouve então! Me liga só um bocado!
— Um bocado só, juro!
Jurou e riu, afastando para levar o Jacó no quintal das galinhas, o bicho estava reclamar água, água, misturando cadavez essa palavra com muitas asneiras.
Devagar, maré a encher, Garrido adiantou. Com receio, primeiro coisas à-toa que não mostravam o que ele queria; depois, os casos da vida assim sem descobrir trabalho de trabalhar mesmo, só uns biscates nos amigos, arranjar sola rota, tomba∗, salto, e quando lhe deixavam, também ia nuns serviços de noite, aí já que adiantava ajuntar umas macutas∗. E enrolava as palavras para desviar, meter no caminho que queria; Inácia já sabia: o rapaz sempre começava assim, medroso, com receio do quissen-de, mas cinco minutos nem que passavam a conversa já era aquela ele gostava, tinha estudado noites e dias sem parar, pergunta e resposta de Inácia, podia-lhe intrujar até, fazer ela ir a reboque para onde as conversas eram melhores para ele.
— Sente, Garrido! — se lhe tratava de Garrido, já estava aceitar as conversas. — Você fala bem, és mesmo um vigarista, rapaz! Mas se eu ia-lhe aceitar, como é as pessoas iam falar?
— Não liga nas pessoas!
— Ih! Diziam já, um aleijado mesmo, nem que trabalha nem nada, só no capiango, como é ele vive e faz comer a mulher dele?
— Procuro trabalho de trabalhar!
— Você sempre fala isso, mês e mês, e até hoje, nada! Pra ser chulo∗ de sua mulher você não quer, não é?
— Por acaso não, Inácia, nem pensas nisso!
— Mas é assim que iam te falar! Sukua’! Que eu recebia dos outros para você comer, Garrido. Não esquece a sua perna!
— Oh! Nem fala a perna, merda!
— Já estás disparatar? Sempre que te falo as verdades, você disparata-me logo, não é?
— Não zanga, Naxinha, desculpa ainda! Não queria...
— Naxinha é a mãe!
A voz estava irritada, Kam’tuta sentia já no peito o medo ela ia se zangar.
Passavam sempre assim também as conversas. Muito bem que ele aguentava quando falava só as coisas imaginadas de noite; mas depois, quando as conversas vinham nos casos de verdade mesmo, da vida de todos os dias, ele refilava as idéias de Inácia, ela só estava pensar na comida, na casa, no amor não falava, e o fim era sempre o mesmo: ficava ainda com a dor de perder as palavras do Garrido, essas que lhe faziam sonhar e ela não queria aceitar. Então magoava-lhe, e se ele adiantava continuar mesmo que lhe xingava assim, punha-lhe quissende para ele ir embora.
Garrido tinha jurado, nessa hora quando veio, ia sair com resposta de sim ou não. Se sim, para dormir na cama dele; se não, nunca mais lhe falar e procurar matar o quissonde∗ que lhe ferrava no peito. Por isso não desistiu logo-logo, continuou a conversa dele, mas mais nada que podia voltar ao princípio. Inácia já estava má, com as falas de meio-riso na boca, provocadora.
— Olha até, Garrido! — ainda lhe falava assim, a zanga estava só principiar. — Já te falei uma vez eu vou ser como a minha senhora, ouviste?
Uns olhos de cão batido miravam-lhe lá no fundo da cara dele, lisa, da barba feita com cuidado, parecia era monandengue. E esses olhos assim ainda raivavam mais Inácia, faziam-lhe sentir o rapaz era mais melhor que ela, mesmo que estava com aquelas manias de menino que não dormiu com mulher, não sabe nada da vida, pensa pode-se viver é de palavras de amor. Por causa essa razão queria-lhe magoar, envergonhar-lhe como cadavez gostava de fazer.
— E olha mais, Kam’tuta...
A cabeça dele caiu e a pele lisa ficou cheia de riscos em todos os lados, a fome não enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo.
— ...aviso-te, enh?! Ficas avisado! Quando eu vou com a minha senhora, você nem que me cumprimenta, ouviste? ‘tás perceber? Nem que t’atreves a cumprimentar! Senão t’insulto mesmo aí no meio da rua!
— Pronto, está bem, Inácia.
— Cala-te a boca, eu é que falo! Ou você pensa eu vou vestir os vestidos minha senhora me dá embora, vestir sapato de salto, pôr mesmo batom — se eu quero, ponho, ouviu? Ponho! —, para ser ainda cumprimentada por um qualquer à toa como você? Pensas?
Os olhos azuis estavam outra vez colocados na cara dela e mostravam o princípio de um sorriso na boca es-treitinha. Não tinha mais vergonha esse sungaribengo, a gente insulta-lhe e ele fica sorrir com cara não sei de quê, parece é maluco. Também era bom, quente, ver uma amizade assim, nada que lhe acabava, mesmo que ela punha chapadas apostava ele um dia ia voltar. Sentiu, nessa hora, vergonha das palavras que tinha-lhe falado, mas não queria ainda desculpar senão o rapaz ia pensar tinha-lhe convencido. Mas não podia esconder todos os pensamentos, nos grandes olhos tinha muito brilho, cresciam no meio da cara bonita e larga, de pele bem esticada, parecia iam-lhe ocupar toda, tudo, com essa luz que davam.
— Pronto, Inácia, desculpa então...
Garrido atreveu isso com consentimento dos olhos dela. Inácia não respondeu, ficou olhar só, na cabeça dela estava passar confusão, não sabia mais como é ia lhe tratar nesse homem assim diferente, não se zangava, era fraco, a gente podia lhe insultar e tudo, mas nas palavras dele tinha um bocado de força, talvez se as pessoas fizessem o que ele queria, cadavez ia sair bem, quem sabe? Mas como é ela ia viver então com um aleijado, todo o musseque dali sabia, ele com a vergonha da perna, nunca que tinha-se deitado com mulher, as pessoas iam fazer pouco, uma pequena assim bonita e macia, rija como ela, Inácia Domingas, amigar com um homem à-toa e tantos que lhe queriam? E mais pior mesmo, sem serviço nem patrão.
A tarde descia depressa porque era cacimbo, o dia fugia cedo, do frio, do vento a xaxualhar nas folhas. No quintal, Jacó insultava, assobiava, cantava, sempre aos saltos para esquivar as bicadas dos galos. Inácia tinha-se calado, triste, estava só coçar o dedo grande do pé, deixar a cabeça fugir com as palavras do Garrido.
— Tem matacanha∗ aí, Inácia?
— Ih! Sukua’! Você pensa eu vivo na lixeira?
Mas ria, deitada em cima do pé, a raspar com a unha, sentia outra vez vontade de brincar. Esticou a perna na frente da cara dele, falou:
— É mesmo, Garrido. Imagina só, onde é que eu apanhei-lhe não sei...
— Aqui tem galinha, tem quintal...
— Você pode me tirar? Podes? Se você gosta de mim, não custa, mentira?
Essa ideia era mesmo daquela Inácia ele gostava olhar só, sem lhe mexer, da pequena que lhe apalpavam na quitanda e sempre esquivava e ria e punha partidas e brincadeiras para todos. Só Garrido é que não, nem ele sentia vontade, nem Inácia tinha coragem para deixar e depois, para desforrar, fazia-lhe pouco.
— Dá alfinete, então!
— Elá! Mas chega bem aqui! Não vai tirar assim de longe...
Chegou mais junto dela e parecia o vento frio do cacimbo tinha ficado quente nessa hora mesmo.
— Senta no chão, dá mais jeito, Gagá...
Tinha voz dela doce outra vez e os olhos macios. Empurrou-lhe o pé na barriga, com devagar de gato, o largo pé descalço de menina de musseque, mesmo em cima do meio das pernas, para pôr cócegas, e um fósforo aceso correu no sangue de Garrido, jindungo, quissondes a morder-lhe, era bom. Para passar a confusão que lhe atacava começou, com toda falta de jeito, a bicar com alfinete, mas a ponta não queria ficar quieta, não acertava na cabeça do bicho. Era uma bitacaia∗ nova, ainda só começava entrar, metade de fora parecia estava espreitar, cocaiar∗, gozando as pessoas, não era mauindo∗ ainda, não. Por isso mais, comichão estava muita. E a técnica de Kam’tuta, nesses casos, era encostar uma agulha fina na pele e avançar devagar, furar-lhe o corpo um bocado só, pouco, e, depois — tau! —, puxar-lhe. Mas como ia fazer nessa hora em que ele todo tremia, cheio de frio do calor no sangue e a mão quente de Inácia tinha-lhe agarrado na capanga∗ dele para não cair e todo o peito rijo e macio, a boa catinga do corpo maduro dela estavam em cima dele, sentia-lhe entrar em todos os buracos da roupa? Atrapalhado levantou um bocado a cabeça para respirar bem, ver se o quente ia embora, mas isso é que foi mesmo o pior, até a cabeça caiu com o peso do sangue a bater em todos os lados, ngoma∗ de farra dentro das orelhas.
continua página 53...
_____________________
∗ mataco — bunda, nádegas.
∗ tomba — remendo no sapato.
∗ macuta — moeda antiga da colônia.
* chulo — que explora a mulher, que vive ã custa da mulher.
∗ quissonde — formiga vermelha de picada dolorosa.
∗ matacanha — espécie de pulga que penetra na pele.
∗ bitacaia — espécie de pulga que penetra na pele.
∗ cocaiar — espreitar.
∗ mauindo — saco de ovos da bitacaia.
∗ capanga — parte posterior do pescoço, cangote; braço dobrado à volta do pescoço (golpe de
luta).
∗ ngoma — tambor.
______________________
José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Mas tinha já alegria (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Pois é (03)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Então podemos falar... (04)
Luandino Vieira
continuando...
Sentou o largo, redondo, duro mataco∗ desenhado no fundo do vestido, Kam’tuta ficou pensar era sempre assim, só um pano em cima da pele, cadavez mesmo cuecas nada... e isso pôs-lhe um arrepio, ficou a correr o corpo todo até na perna aleijada, mas fugiu embora logo mirando os olhos, quietos e amigos, diferentes da provocação desse corpo cheio de sumo. Jacó desatou a xingar-lhe outra vez com os cantares dele, mas Inácia foi lhe dar umas jingubas, falando docinho, parecia até gostava era do bicho.
— Então, querido! Pronto ainda! Toma, toma... Você sabe eu gosto de você... Hum! Meu bichinho...
Garrido não aguentava essas palavras assim no papagaio, jurava sentia-se roubado, um bicho indecente receber esse amor e ele ali sem nada, até parecia Inácia estava fazer de propósito. Falou isso mesmo, mas a pequena pôs-lhe os olhos mansos nos olhos azuis e só perguntou:
— Você pensa isso de mim? Você, que me gostas?!
— Não, Inácia! Falei mal, não penso nada. É só porque o bicho é porco!
— Porco? Sukua’! Jacó é limpo. Não é, meu amor, meu papagaizinho?...
E continuava; a dor crescia no peito de Kam’tuta, ela parecia não percebia estava magoar-lhe lá dentro, doía. Até punha um tremer nas ancas para lhes remexer, roçando a cara dela no cinzento sujo do papagaio.
— Inácia, ouve então! Me liga só um bocado!
— Um bocado só, juro!
Jurou e riu, afastando para levar o Jacó no quintal das galinhas, o bicho estava reclamar água, água, misturando cadavez essa palavra com muitas asneiras.
Devagar, maré a encher, Garrido adiantou. Com receio, primeiro coisas à-toa que não mostravam o que ele queria; depois, os casos da vida assim sem descobrir trabalho de trabalhar mesmo, só uns biscates nos amigos, arranjar sola rota, tomba∗, salto, e quando lhe deixavam, também ia nuns serviços de noite, aí já que adiantava ajuntar umas macutas∗. E enrolava as palavras para desviar, meter no caminho que queria; Inácia já sabia: o rapaz sempre começava assim, medroso, com receio do quissen-de, mas cinco minutos nem que passavam a conversa já era aquela ele gostava, tinha estudado noites e dias sem parar, pergunta e resposta de Inácia, podia-lhe intrujar até, fazer ela ir a reboque para onde as conversas eram melhores para ele.
— Sente, Garrido! — se lhe tratava de Garrido, já estava aceitar as conversas. — Você fala bem, és mesmo um vigarista, rapaz! Mas se eu ia-lhe aceitar, como é as pessoas iam falar?
— Não liga nas pessoas!
— Ih! Diziam já, um aleijado mesmo, nem que trabalha nem nada, só no capiango, como é ele vive e faz comer a mulher dele?
— Procuro trabalho de trabalhar!
— Você sempre fala isso, mês e mês, e até hoje, nada! Pra ser chulo∗ de sua mulher você não quer, não é?
— Por acaso não, Inácia, nem pensas nisso!
— Mas é assim que iam te falar! Sukua’! Que eu recebia dos outros para você comer, Garrido. Não esquece a sua perna!
— Oh! Nem fala a perna, merda!
— Já estás disparatar? Sempre que te falo as verdades, você disparata-me logo, não é?
— Não zanga, Naxinha, desculpa ainda! Não queria...
— Naxinha é a mãe!
A voz estava irritada, Kam’tuta sentia já no peito o medo ela ia se zangar.
Passavam sempre assim também as conversas. Muito bem que ele aguentava quando falava só as coisas imaginadas de noite; mas depois, quando as conversas vinham nos casos de verdade mesmo, da vida de todos os dias, ele refilava as idéias de Inácia, ela só estava pensar na comida, na casa, no amor não falava, e o fim era sempre o mesmo: ficava ainda com a dor de perder as palavras do Garrido, essas que lhe faziam sonhar e ela não queria aceitar. Então magoava-lhe, e se ele adiantava continuar mesmo que lhe xingava assim, punha-lhe quissende para ele ir embora.
Garrido tinha jurado, nessa hora quando veio, ia sair com resposta de sim ou não. Se sim, para dormir na cama dele; se não, nunca mais lhe falar e procurar matar o quissonde∗ que lhe ferrava no peito. Por isso não desistiu logo-logo, continuou a conversa dele, mas mais nada que podia voltar ao princípio. Inácia já estava má, com as falas de meio-riso na boca, provocadora.
— Olha até, Garrido! — ainda lhe falava assim, a zanga estava só principiar. — Já te falei uma vez eu vou ser como a minha senhora, ouviste?
Uns olhos de cão batido miravam-lhe lá no fundo da cara dele, lisa, da barba feita com cuidado, parecia era monandengue. E esses olhos assim ainda raivavam mais Inácia, faziam-lhe sentir o rapaz era mais melhor que ela, mesmo que estava com aquelas manias de menino que não dormiu com mulher, não sabe nada da vida, pensa pode-se viver é de palavras de amor. Por causa essa razão queria-lhe magoar, envergonhar-lhe como cadavez gostava de fazer.
— E olha mais, Kam’tuta...
A cabeça dele caiu e a pele lisa ficou cheia de riscos em todos os lados, a fome não enchia as peles e a tristeza punha-lhe velhice, mesmo que era um mais novo.
— ...aviso-te, enh?! Ficas avisado! Quando eu vou com a minha senhora, você nem que me cumprimenta, ouviste? ‘tás perceber? Nem que t’atreves a cumprimentar! Senão t’insulto mesmo aí no meio da rua!
— Pronto, está bem, Inácia.
— Cala-te a boca, eu é que falo! Ou você pensa eu vou vestir os vestidos minha senhora me dá embora, vestir sapato de salto, pôr mesmo batom — se eu quero, ponho, ouviu? Ponho! —, para ser ainda cumprimentada por um qualquer à toa como você? Pensas?
Os olhos azuis estavam outra vez colocados na cara dela e mostravam o princípio de um sorriso na boca es-treitinha. Não tinha mais vergonha esse sungaribengo, a gente insulta-lhe e ele fica sorrir com cara não sei de quê, parece é maluco. Também era bom, quente, ver uma amizade assim, nada que lhe acabava, mesmo que ela punha chapadas apostava ele um dia ia voltar. Sentiu, nessa hora, vergonha das palavras que tinha-lhe falado, mas não queria ainda desculpar senão o rapaz ia pensar tinha-lhe convencido. Mas não podia esconder todos os pensamentos, nos grandes olhos tinha muito brilho, cresciam no meio da cara bonita e larga, de pele bem esticada, parecia iam-lhe ocupar toda, tudo, com essa luz que davam.
— Pronto, Inácia, desculpa então...
Garrido atreveu isso com consentimento dos olhos dela. Inácia não respondeu, ficou olhar só, na cabeça dela estava passar confusão, não sabia mais como é ia lhe tratar nesse homem assim diferente, não se zangava, era fraco, a gente podia lhe insultar e tudo, mas nas palavras dele tinha um bocado de força, talvez se as pessoas fizessem o que ele queria, cadavez ia sair bem, quem sabe? Mas como é ela ia viver então com um aleijado, todo o musseque dali sabia, ele com a vergonha da perna, nunca que tinha-se deitado com mulher, as pessoas iam fazer pouco, uma pequena assim bonita e macia, rija como ela, Inácia Domingas, amigar com um homem à-toa e tantos que lhe queriam? E mais pior mesmo, sem serviço nem patrão.
A tarde descia depressa porque era cacimbo, o dia fugia cedo, do frio, do vento a xaxualhar nas folhas. No quintal, Jacó insultava, assobiava, cantava, sempre aos saltos para esquivar as bicadas dos galos. Inácia tinha-se calado, triste, estava só coçar o dedo grande do pé, deixar a cabeça fugir com as palavras do Garrido.
— Tem matacanha∗ aí, Inácia?
— Ih! Sukua’! Você pensa eu vivo na lixeira?
Mas ria, deitada em cima do pé, a raspar com a unha, sentia outra vez vontade de brincar. Esticou a perna na frente da cara dele, falou:
— É mesmo, Garrido. Imagina só, onde é que eu apanhei-lhe não sei...
— Aqui tem galinha, tem quintal...
— Você pode me tirar? Podes? Se você gosta de mim, não custa, mentira?
Essa ideia era mesmo daquela Inácia ele gostava olhar só, sem lhe mexer, da pequena que lhe apalpavam na quitanda e sempre esquivava e ria e punha partidas e brincadeiras para todos. Só Garrido é que não, nem ele sentia vontade, nem Inácia tinha coragem para deixar e depois, para desforrar, fazia-lhe pouco.
— Dá alfinete, então!
— Elá! Mas chega bem aqui! Não vai tirar assim de longe...
Chegou mais junto dela e parecia o vento frio do cacimbo tinha ficado quente nessa hora mesmo.
— Senta no chão, dá mais jeito, Gagá...
Tinha voz dela doce outra vez e os olhos macios. Empurrou-lhe o pé na barriga, com devagar de gato, o largo pé descalço de menina de musseque, mesmo em cima do meio das pernas, para pôr cócegas, e um fósforo aceso correu no sangue de Garrido, jindungo, quissondes a morder-lhe, era bom. Para passar a confusão que lhe atacava começou, com toda falta de jeito, a bicar com alfinete, mas a ponta não queria ficar quieta, não acertava na cabeça do bicho. Era uma bitacaia∗ nova, ainda só começava entrar, metade de fora parecia estava espreitar, cocaiar∗, gozando as pessoas, não era mauindo∗ ainda, não. Por isso mais, comichão estava muita. E a técnica de Kam’tuta, nesses casos, era encostar uma agulha fina na pele e avançar devagar, furar-lhe o corpo um bocado só, pouco, e, depois — tau! —, puxar-lhe. Mas como ia fazer nessa hora em que ele todo tremia, cheio de frio do calor no sangue e a mão quente de Inácia tinha-lhe agarrado na capanga∗ dele para não cair e todo o peito rijo e macio, a boa catinga do corpo maduro dela estavam em cima dele, sentia-lhe entrar em todos os buracos da roupa? Atrapalhado levantou um bocado a cabeça para respirar bem, ver se o quente ia embora, mas isso é que foi mesmo o pior, até a cabeça caiu com o peso do sangue a bater em todos os lados, ngoma∗ de farra dentro das orelhas.
continua página 53...
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∗ mataco — bunda, nádegas.
∗ tomba — remendo no sapato.
∗ macuta — moeda antiga da colônia.
* chulo — que explora a mulher, que vive ã custa da mulher.
∗ quissonde — formiga vermelha de picada dolorosa.
∗ matacanha — espécie de pulga que penetra na pele.
∗ bitacaia — espécie de pulga que penetra na pele.
∗ cocaiar — espreitar.
∗ mauindo — saco de ovos da bitacaia.
∗ capanga — parte posterior do pescoço, cangote; braço dobrado à volta do pescoço (golpe de
luta).
∗ ngoma — tambor.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)
Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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