Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio
continuando...
Pois é. Mas mesmo com primo na polícia podiam lhe agarrar para adiantar pagar a multa, e nada disso que sucedia nunca, E depois o azar conta no negócio das pessoas, e o azar com Kabulu não pelejava. Até no dia da última prisão — dezembro de 61, passei Natal na cadeia, Deus Nosso Senhor me perdoe — aquele caso dos barris de quimbombo∗ e mais alguns de candingolo∗, o feiticeiro tinha-se escapado; ele, Lomelino dos Reis, é que sofreu na cadeia e o sacrista nem cigarros nem nada estava lhe mandar.
— Como é você percebe, sô Zuzé, os casos assim? Sempre todos os dias, naquela hora, ele ia lá p’ra vigiar o serviço no quintal do quimbombo, a hora era a mesma que eles chegaram, seis horas sem falta, e nada! Nesse dia não apareceu, só quem adiantou vir foi a polícia?! Como é?...
Sô Zuzé também não percebia; disfarçou metendo dedo nas panelas, pondo cara de importância, revistando os cantos do refeitório à procura dum lixo para xingar, fazer vaidade do cargo. Lomelino lamentava:
— Esse homem não me larga mesmo, mano Xico. Como é eu vou fazer? Cada vez sinto com remorsos, quando vou na igreja com os meninos, nos domingos... Eles sabem!
— Deixa! Vida de pessoa está escrita, não adianta!...
— Naquele mês, depois desse caso do quimbombo, até procurei trabalho de vender gasolina e arranjei. Mas o gajo foi-me intrigar, arreganhou ia falar no patrão eu era um gatuno, falar os meus casos...
— Pois é, Dosreis! Você, com essa pele de branco, não vão saber você é cap’verde...
— E depois, isso tem nada?
— Tem, mano Dosreis, tem! Assim podem dizer você mesmo fabrica, você é que é o dono. Se é preto e tem muitos barris, não podem lhe aceitar, mas assim até é bom...
Xico Futa falava, procurava um caminho para desamarrar a língua do amigo. Sentia faltavam ainda palavras, casos que Lomelino não queria contar. Porque lhe conhecia bem, não gostava as maneiras dele agora, sempre sacudido, raivoso, parecia estava zangado, gato encostado na parede com cão a atacar. E já nem olhava mais as pessoas na cara, os olhos sempre no chão, parecia tinha um peso em cima da cabeça, e isso não era que Xico Futa conhecia, de homem direito nas conversas e no serviço dele, mesmo que era do capiango ou outro. Mas Dosreis não queria, não aceitava fazer sair o que tinha guardado, mesmo que no peito agora estava-lhe roer uma dúvida, começou inchar muito tempo, desde a hora da manhã, quando voltou da justiça. Gostava falar tudo, mas não era com o Zuzé ali, sentia vergonha de pôr esses casos na frente do auxiliar. Com Xico Futa, seu amigo, era diferente, podia falar de igual, profissão era a mesma, cubata era vizinha, fome de um era a fome do outro, e só ele mesmo é que podia lhe tirar essa vergonha que estava crescer.
— Ouve então, Xico...
Parecia o vento sacudia-lhe na voz e batia as folhas na garganta, tão tremida estava sair embora. Os olhos agora eram os velhos olhos de Lomelino, mas cheios de água de vergonha no meio do escuro do refeitório. Só que não lhes aguentou assim, baixou outra vez para começar sorrir. Porque era essa a verdade: também era para rir o caso, estava mesmo a pensar a cara de banzado do rapaz quando lhe agarrassem e lhe trouxessem na esquadra para falar, aqueles casos dos sete patos, ele nem que sabia nada, não tinham-lhe deixado ir por causa era aleijado. O Garrido ia adivinhar a queixa era dele, Lomelino dos Reis, o homem ele chamava de seu mais amigo, o único que podia ler e lhe percebia ainda as confissões do coração feito pouco pelas pequenas, as maneiras delicadas de falar, gozo de todos; apostava ele ia chorar talvez, porque tinha coração bom de monandengue.
— Estás rir de quê então, compadre Dosreis?
— De vergonha, mano, de vergonha!
E falou.
As palavras saíam devagar, cheias de tristeza, também custava confessar mesmo quando é amigo que está ouvir e da profissão ainda, percebe todos os casos, doía dizer tinha falado o Garrido Kam’tuta lá na justiça, que sim, o rapaz ajudara-lhe no serviço, ficou de polícia para avisar as patrulhas se viessem e tudo era uma grande mentira porque até nem tinha aceitado o mulato nesses casos por causa era aleijado e não podia nem saltar quintal nem fugir se ia passar berrida. Mas mais pior era que os polícias nem tinham perguntado nada, não sabiam nada, sentiu bem naquela hora estava ser bufo, ninguém que lhe queixara, só o azar que dera-lhe encontro nessa noite e a patrulha desconfiou um saco tão grande. Até falou o resto, pôs o nome e tudo, Garrido Fernandes, cubata dele ali para cima, perto do Rangel, sozinho que morava num canto de favor até, na casa duma madrinha.
— Oh! Deixa lá, mano! Agora se você volta lá na justiça, fala tudo é mentira, não adianta agarrar o rapaz, ele nem é do grupo nem nada...
— Pois é! Mas o meu medo é se lhe dão encontro com qualquer coisa, lá em casa... E depois?
Mas a conversa teve que acabar nessa hora. No corredor, o carcereiro, zangado, estava berrar o nome dele; guardou depressa as sandes de carne no meio dos farrapos do casaco e saiu nas corridas, despedindo à toa.
— Lomelino dos Reis?
Vinha a voz lá de longe, da porta. Duas e meia já eram, o sol espreitava a rir nas grades, o amarelo comia o escuro feio do corredor. Dosreis correu, atrapalhavam-lhe os trapos da roupa.
— Esse sacana dos patos nunca mais vem? És tu? Depressa!
Com depressa, depressa, batucava também o coração de Lomelino e a vontade de falar na justiça, as queixas que tinha posto no Kam’tuta eram um falso.
Dizia Xico Futa:
Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece... E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdades e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo.
Garrido Kam’tuta veio na esquadra porque roubou um papagaio. É verdade mesmo. Mas saber ainda o princípio, o meio, o fim dessa verdade, como é então? Num papagaio nada que se come; um papagaio fala um dono, não pode-se vender; um papagaio come muita jinguba∗ e muito milho, um pobre coitado capianguista não gasta o dinheiro que arranja com bicho assim, não dá lucro. Pra quê então roubar ainda um pássaro desses?
O fio da vida que mostra o quê, o como das conversas, mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro princípio. Os pensamentos, na cabeça das pessoas, têm ainda de começar em qualquer parte, qualquer dia, qualquer caso. Só o que precisa é procurar saber.
O papagaio Jacó, velho e doente, foi roubado num mulato coxo, Garrido Fernandes, medroso de mulheres por causa a sua perna aleijada, alcunhado de Kam’tuta. Mas onde começa a estória? Naquilo ele mesmo falou na esquadra quando deu entrada e fez as pazes com Lomelino dos Reis que lhe pôs queixa? Nas partes do auxiliar Zuzé, contando só o que adianta ler na nota de entrega do preso? Em Jacó?
É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas, parece são moscas mexendo-se, presas, o vento é que faz. E os frutos vermelhos e amarelos são bocados de sol pendurados. As pessoas passam lá, não lhe ligam, vêem-lhe ali anos e anos, bebem o fresco da sombra, comem o maduro das frutas, os monandengues roubam as folhas a nascer para ferrar suas linhas de pescar e ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas.
Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus-de-fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Fiquem malucos, chamem o trator ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, saco-dem-lhes, destroem, secam, queimam-lhes mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito muitos fumos, preto, cinzento-escuro, cinzento-rola, cinzentosujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.
Assim disse Xico Futa.
∗ candingolo — bebida fermentada de milho.
∗ jinguba — amendoim.
______________________
José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Mas tinha já alegria (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Então podemos falar... (04)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)
Luandino Vieira
continuando...
Pois é. Mas mesmo com primo na polícia podiam lhe agarrar para adiantar pagar a multa, e nada disso que sucedia nunca, E depois o azar conta no negócio das pessoas, e o azar com Kabulu não pelejava. Até no dia da última prisão — dezembro de 61, passei Natal na cadeia, Deus Nosso Senhor me perdoe — aquele caso dos barris de quimbombo∗ e mais alguns de candingolo∗, o feiticeiro tinha-se escapado; ele, Lomelino dos Reis, é que sofreu na cadeia e o sacrista nem cigarros nem nada estava lhe mandar.
— Como é você percebe, sô Zuzé, os casos assim? Sempre todos os dias, naquela hora, ele ia lá p’ra vigiar o serviço no quintal do quimbombo, a hora era a mesma que eles chegaram, seis horas sem falta, e nada! Nesse dia não apareceu, só quem adiantou vir foi a polícia?! Como é?...
Sô Zuzé também não percebia; disfarçou metendo dedo nas panelas, pondo cara de importância, revistando os cantos do refeitório à procura dum lixo para xingar, fazer vaidade do cargo. Lomelino lamentava:
— Esse homem não me larga mesmo, mano Xico. Como é eu vou fazer? Cada vez sinto com remorsos, quando vou na igreja com os meninos, nos domingos... Eles sabem!
— Deixa! Vida de pessoa está escrita, não adianta!...
— Naquele mês, depois desse caso do quimbombo, até procurei trabalho de vender gasolina e arranjei. Mas o gajo foi-me intrigar, arreganhou ia falar no patrão eu era um gatuno, falar os meus casos...
— Pois é, Dosreis! Você, com essa pele de branco, não vão saber você é cap’verde...
— E depois, isso tem nada?
— Tem, mano Dosreis, tem! Assim podem dizer você mesmo fabrica, você é que é o dono. Se é preto e tem muitos barris, não podem lhe aceitar, mas assim até é bom...
Xico Futa falava, procurava um caminho para desamarrar a língua do amigo. Sentia faltavam ainda palavras, casos que Lomelino não queria contar. Porque lhe conhecia bem, não gostava as maneiras dele agora, sempre sacudido, raivoso, parecia estava zangado, gato encostado na parede com cão a atacar. E já nem olhava mais as pessoas na cara, os olhos sempre no chão, parecia tinha um peso em cima da cabeça, e isso não era que Xico Futa conhecia, de homem direito nas conversas e no serviço dele, mesmo que era do capiango ou outro. Mas Dosreis não queria, não aceitava fazer sair o que tinha guardado, mesmo que no peito agora estava-lhe roer uma dúvida, começou inchar muito tempo, desde a hora da manhã, quando voltou da justiça. Gostava falar tudo, mas não era com o Zuzé ali, sentia vergonha de pôr esses casos na frente do auxiliar. Com Xico Futa, seu amigo, era diferente, podia falar de igual, profissão era a mesma, cubata era vizinha, fome de um era a fome do outro, e só ele mesmo é que podia lhe tirar essa vergonha que estava crescer.
— Ouve então, Xico...
Parecia o vento sacudia-lhe na voz e batia as folhas na garganta, tão tremida estava sair embora. Os olhos agora eram os velhos olhos de Lomelino, mas cheios de água de vergonha no meio do escuro do refeitório. Só que não lhes aguentou assim, baixou outra vez para começar sorrir. Porque era essa a verdade: também era para rir o caso, estava mesmo a pensar a cara de banzado do rapaz quando lhe agarrassem e lhe trouxessem na esquadra para falar, aqueles casos dos sete patos, ele nem que sabia nada, não tinham-lhe deixado ir por causa era aleijado. O Garrido ia adivinhar a queixa era dele, Lomelino dos Reis, o homem ele chamava de seu mais amigo, o único que podia ler e lhe percebia ainda as confissões do coração feito pouco pelas pequenas, as maneiras delicadas de falar, gozo de todos; apostava ele ia chorar talvez, porque tinha coração bom de monandengue.
— Estás rir de quê então, compadre Dosreis?
— De vergonha, mano, de vergonha!
E falou.
As palavras saíam devagar, cheias de tristeza, também custava confessar mesmo quando é amigo que está ouvir e da profissão ainda, percebe todos os casos, doía dizer tinha falado o Garrido Kam’tuta lá na justiça, que sim, o rapaz ajudara-lhe no serviço, ficou de polícia para avisar as patrulhas se viessem e tudo era uma grande mentira porque até nem tinha aceitado o mulato nesses casos por causa era aleijado e não podia nem saltar quintal nem fugir se ia passar berrida. Mas mais pior era que os polícias nem tinham perguntado nada, não sabiam nada, sentiu bem naquela hora estava ser bufo, ninguém que lhe queixara, só o azar que dera-lhe encontro nessa noite e a patrulha desconfiou um saco tão grande. Até falou o resto, pôs o nome e tudo, Garrido Fernandes, cubata dele ali para cima, perto do Rangel, sozinho que morava num canto de favor até, na casa duma madrinha.
— Oh! Deixa lá, mano! Agora se você volta lá na justiça, fala tudo é mentira, não adianta agarrar o rapaz, ele nem é do grupo nem nada...
— Pois é! Mas o meu medo é se lhe dão encontro com qualquer coisa, lá em casa... E depois?
Mas a conversa teve que acabar nessa hora. No corredor, o carcereiro, zangado, estava berrar o nome dele; guardou depressa as sandes de carne no meio dos farrapos do casaco e saiu nas corridas, despedindo à toa.
— Lomelino dos Reis?
Vinha a voz lá de longe, da porta. Duas e meia já eram, o sol espreitava a rir nas grades, o amarelo comia o escuro feio do corredor. Dosreis correu, atrapalhavam-lhe os trapos da roupa.
— Esse sacana dos patos nunca mais vem? És tu? Depressa!
Com depressa, depressa, batucava também o coração de Lomelino e a vontade de falar na justiça, as queixas que tinha posto no Kam’tuta eram um falso.
Dizia Xico Futa:
Pode mesmo a gente saber, com a certeza, como é um caso começou, aonde começou, por quê, pra quê, quem? Saber mesmo o que estava se passar no coração da pessoa que faz, que procura, desfaz ou estraga as conversas, as macas? Ou tudo que passa na vida não pode-se-lhe agarrar no princípio, quando chega nesse princípio vê afinal esse mesmo princípio era também o fim doutro princípio e então, se a gente segue assim, para trás ou para a frente, vê que não pode se partir o fio da vida, mesmo que está podre nalgum lado, ele sempre se emenda noutro sítio, cresce, desvia, foge, avança, curva, pára, esconde, aparece... E digo isto, tenho minha razão. As pessoas falam, as gentes que estão nas conversas, que sofrem os casos e as macas contam, e logo ali, ali mesmo, nessa hora em que passa qualquer confusão, cada qual fala a sua verdade e se continuam falar e discutir, a verdade começa a dar fruta, no fim é mesmo uma quinda de verdades e uma quinda de mentiras, que a mentira é já uma hora da verdade ou o contrário mesmo.
Garrido Kam’tuta veio na esquadra porque roubou um papagaio. É verdade mesmo. Mas saber ainda o princípio, o meio, o fim dessa verdade, como é então? Num papagaio nada que se come; um papagaio fala um dono, não pode-se vender; um papagaio come muita jinguba∗ e muito milho, um pobre coitado capianguista não gasta o dinheiro que arranja com bicho assim, não dá lucro. Pra quê então roubar ainda um pássaro desses?
O fio da vida que mostra o quê, o como das conversas, mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro princípio. Os pensamentos, na cabeça das pessoas, têm ainda de começar em qualquer parte, qualquer dia, qualquer caso. Só o que precisa é procurar saber.
O papagaio Jacó, velho e doente, foi roubado num mulato coxo, Garrido Fernandes, medroso de mulheres por causa a sua perna aleijada, alcunhado de Kam’tuta. Mas onde começa a estória? Naquilo ele mesmo falou na esquadra quando deu entrada e fez as pazes com Lomelino dos Reis que lhe pôs queixa? Nas partes do auxiliar Zuzé, contando só o que adianta ler na nota de entrega do preso? Em Jacó?
É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas, parece são moscas mexendo-se, presas, o vento é que faz. E os frutos vermelhos e amarelos são bocados de sol pendurados. As pessoas passam lá, não lhe ligam, vêem-lhe ali anos e anos, bebem o fresco da sombra, comem o maduro das frutas, os monandengues roubam as folhas a nascer para ferrar suas linhas de pescar e ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas.
Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus-de-fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. Fiquem malucos, chamem o trator ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, saco-dem-lhes, destroem, secam, queimam-lhes mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito muitos fumos, preto, cinzento-escuro, cinzento-rola, cinzentosujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.
Assim disse Xico Futa.
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∗ quimbombo — bebida fermentada de milho._____________________
∗ candingolo — bebida fermentada de milho.
∗ jinguba — amendoim.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)
Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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