segunda-feira, 6 de julho de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Mas tinha já alegria (02)

Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio



Luandino Vieira



Mas tinha já alegria nessas palavras. Xico Futa espreitava o trabalho do “Francês-1”∗, o arder quente na boca desprotegida do velho, esse pequeno e vagaroso aquecer do cigarro que traz a calma e a vontade de rir. 

Era assim o auxiliar Zuzé, como foi lhe contando mano Futa, explicando todas as fraquezas, ensinando, para Dosreis saber, como é podia lhe cassumbular um pão mais, na hora do matabicho, só precisava falar bem mesmo, conversa de pessoa igual, quando Zuzé entrava, de manhã, para cumprimentar com a voz grossa dele:

— Bom-dia meus senhores!

Nem uazekele kié-uazeka kiambote, nem nada, era só assim a outra maneira civilizada como ele dizia, mas também depois ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já podia se assentar no meio de todas as palavras, ele até queria, porque para falar bem-bem português não podia, o exame da terceira é que estava lhe tirar agora e por isso não aceitava falar um português de toda a gente, só queria falar o mais superior. E na hora de adiantar escolher as duas pessoas, ou quatro, tanto faz, para saírem com os baldes de creolina e pano lavar as prisões dos brancos, essa simpatia era muito precisa, para escapar...

— Cabeçada não, mano Dosreis! Cabeça só! Usa cabeça, o rapaz é bom... Chicote ele não põe, só quando lhe mandam para obedecer. E aí mesmo, cada vez arranja maneira de esquivar... Lhe conheço...

O cacimbo chovia misturado com a luz, na janela estreita. O barulho dos sonos, o cheiro pesado de muita gente num sítio pouco, o correr da água na retrete, de não deixar dormir mais a pessoa que fica só pensar os casos da vida, tudo passeava junto na sala escura. O cigarro de Lomelino já tinha-se gastado, mas as palavras de amizade de Xico Futa também aqueciam, ajudavam a tapar os buracos do casaco roto.

O amigo ensinou-lhe ainda nada que devia recusar fazer se era no refeitório, esse trabalho não estava igual de limpar o chão, era melhor. Aí, Zuzé deixava-lhes ficar todo tempo para lavar a louça e a mesa de cimento com devagar, podiam até assobiar e cantar com pouca força, e só depois, quando o serviço estava acabado, ele vinha todo de farda esticada...

— Deixa só, mano Lóló! O gajo aí parece é chefe! A investigar, passa dedo, mira nas canecas, cheira nas panelas... Deixa-lhe só, mano! Não dá-lhe corrida. Aguentas aí em sentido, direito se você pode e sempre que ele diz uma coisa, fala “sim, sô Zuzé” ou “sim, sôr auxiliar”...

E o resto, Dosreis viu ele mesmo com os olhos dele, no outro dia. Zuzé mandou-lhes entrar e todo pão e a carne e a comida que estava sobrar falava eles podiam comer ou mesmo levar na cela, se queriam. Cambuta e grosso, puxava a cigarreira, “Francês” numa parte, com-filtro na outra, e facilitava escolhendo com o dedo:

— Tirem daqui!

Um cigarro assim sabia bem, mais melhor que muitos em liberdade mesmo, fumado com os amigos e companheiros de trabalho, bebendo e conversando. Verdade podia-se continuar chamar cipaio no Zuzé se ele não estava ali, mas no coração essa palavra já não queria dizer o mesmo.

Com essas conversas a noite descia na manhã, a luz da madrugada começava despir as sombras dentro da sala, os barulhos do dia a nascer calavam todos os silêncios da prisão.

— Tens sono, compadre?

— Nada! A chapada acordou-me no coração e mesmo que você gaba assim esse teu amigo, a raiva ainda não dormiu...

— E os casos que lhe trouxeram... como é então?

A cara dele, larga e achatada, estava séria, queria aguentar, segurar a vontade, mas derrotou-se rindo:

— O Zuzé falou lhe agarraram com um saco de patos... Verdade mesmo?

Falar uns casos desses, de roubo de patos e azar de ser caçado na polícia, sem ficar parecer era pouco jeito de capianguista∗ ou falta de conhecimento do serviço, só mesmo Lomelino dos Reis. Por isso começou logo-logo sem desculpa, falando quase sem mostrar vontade, a conversa desse sacrista do Kam’tuta que tinha-lhe posto queixa senão ninguém que ia lhe agarrar mais, a criação era um negócio ele sabia bem...

— Você lembra esse gajo, não é?

Que não, não lhe conhecia, não lembrava mais esse tal Kam’tuta, devolveu o Xico, pensando talvez aí mesmo estavam nascer mas era as mentiras do Lomelino.

— Sukua’! Um rapaz coxo, estreitinho, puxa sempre a perna aleijada. Mulato.

— Não lembro, mano!... Aleijado... espera...

Só se fosse esse o tal que tinha um caixote de engraxar ali mesmo na frente do “Majestic”, espera só, um mulato-claro, o nome dele é Garrido, olhos azuis, quase um monandengue ainda, não é? Que sim, ele mesmo, confirmou Dosreis; e explicou a alcunha que estavam lhe chamar nos miúdos era o Kam’tuta, você percebe, mano, o rapaz tem vergonha de dormir com as mulheres por causa a perna assim, e depois...

Vejam a vida: quem podia mais adivinhar um sonso como aquele era ainda um bufo∗ para pôr queixa nos companheiros? Mas, no mesmo tempo, a dúvida também nasceu na cabeça de Futa, essas estórias de fanguistas∗ de criação são sempre assim: quando lhes agarram é só de queixa porque eles sabem, nunca que deixam rasto para a polícia, são mestres, etc.

— Olha ainda, Dosreis! Pensa bem, não lhe acusa assim à toa, no rapaz...

— Acusar à toa? Eu? Você me conhece, mano Xico, você sabe eu sou um homem duma palavra, não falo se não tenho a certeza... O gajo queixou. Senão, como iam me dar encontro? Como?...

Mas uma coisa é o que as pessoas pensam, aquilo que o coração lá dentro fala na cabeça, já modificado pelas razões dele, a vaidade, a preguiça de pensar mais, a raiva nas pessoas, o pouco saber; outra, os casos verdadeiros de uma maca. E isso mesmo disse-lhe Xico Futa. Depois, os casos ficaram mesmo bem sabidos: no fim da tarde desse dia, o Garrido Kam’tuta adiantou entrar também na esquadra∗, na mesma prisão que eles dois.

Mas, antes, na Judiciária, passou assim;

O Lomelino disse: sim, senhor, era o Lomelino dos Reis; pai, não sabia; mãe, Anica; o mesmo que já tinha falado na patrulha antes de lhe mandarem na esquadra. A casa dele explicou, mas também desviou e a polícia, com a preguiça, o caso não era de muita importância, roubo de sete patos, não ligou muito. Só que lhe agarraram no casaco roto e velho, o chefe queria lhe pôr até chapadas, para ele falar quem eram os outros que ajudavam-lhe no capiango∗. Mas nada. Dosreis não gostava falar os amigos e só foi explicando melhor, baralhando as palavras de português, de crioulo, de quimbundo, ele sozinho é que tinha entrado lá, agarrado os bichos para o saco e tudo. Por quê? Ora essa, mulher e dois filhos, sô chefe, mesmo que os meninos já trabalham e a mulher lava, não chega, precisa arredondar o orçamento.

— Arredondar o orçamento, seu sacana!? Com a criação dos outros...

— Oh, sô chefe, criação minha eu não tenho!...

Riu-se, mais contente. Xico Futa tinha-lhe falado os polícias andavam raivosos, qualquer palavra punham logo chapada, mas até nesse caso os homens estavam gozar o assunto, nem que ligaram muito, não queriam perguntar saber quem ia-lhe comprar os patos, ninguém que rouba assim à toa sete bicos para guardar no quintal... E isso, se eles queriam, ele falava mesmo, sabia o Kabulu tinha um primo era da polícia e não iam lhe fazer mal, mas assim ficava amarrado, Lomelino conhecia os truques todos e quando andava com a mangonha e não gostava mais fazer nada, o comerciante tinha de lhe adiantar uns fiados por conta...

Mas o que é bom para o preso, polícia não pergunta. Escreveram nome do que deixou-se ser roubado, era Ramalho da Silva, para devolver os patos, mas aquele que ia lhe receber, nada. Tanto que aí, Dosreis pensou o melhor era ainda sair na dianteira dos casos, falar mesmo que não lhe perguntaram.

— Ená, sô Zuzé! Meu azar, mano Futa! Pra quê eu pensei assim? Nem que disse o nome, nem nada. Puseram-me logo uma chapada, arreganharam para calar a boca, a polícia já sabia, se estava a armar em esperto ia sair chicote cavalmarinho. Pronto! Nessa hora calei, pópilas! Com a força, conversa não adianta, meus amigos...

Zuzé aproveitou para meter a parte dele, ainda doía-lhe no coração a cabeçada antiga:

— Ih! Então você não aproveitou para lhe arrear a cabeçada?

— Não goza-me, senhor! Tem pena um velho como eu, sô Zuzé... Cabeçada no polícia branco? Você pensa eu só fui preso agora? Elá! Já conheço muito...

Na última vez — contou —, tinham-lhe posto socos e chicotes mesmo, mas o caso era outro, mais complicado, ele ficou sofrer também seis meses por causa o Kabulu. Esse branco tinha feitiço dele, ninguém que lhe agarrava, mesmo que lhe queixavam o nome.

— Ih!? Feitiço, tuji! É mas é o primo dele...



continua página 40...


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∗ “Francês-1” — tipo de cigarro.
∗ capianguista — larápio; ladrão de coisas pequenas.
∗ bufo — informante, alcagüete.
∗ fanguista — larápio. gatuno.
∗ esquadra — delegacia de polícia.
∗ capiango — roubo; furto.

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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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