Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio
continuando...
Então podemos falar a raiz do caso da prisão do Kam’tuta foi o Jacó, papagaio mal-educado, mesmo que para trás damos encontro com Inácia, pequena de corpo redondo que ele gostava, ainda que era camuela∗ de carinhos; e, na frente, com Dosreis e João Miguel, pessoas que não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo. O resto é o que me contou ele mesmo, Kam’tuta; o que falou o Zuzé, auxiliar, que leu na nota da polícia; mais o que eu posso saber ainda duma pequena como a Inácia e dum papagaio de musseque.
Na boca estreita de Garrido Fernandes tudo é por acaso. E as pessoas que lhe ouvem falar sentem mesmo o rapaz não acredita em sim, não acredita em não. Uma vez falou tudo o que ele queria não saía mais certo e tudo o que ele não queria também o caso era o mesmo; só passava-se tudo por acaso.
Então, por acaso, vamos lhe encontrar na hora das cinco e tal no dia de ontem desse dia em que agarraram o Lomelino carregando o saco com os patos proibidos, metido na sombra da mandioqueira do quintal da Viúva, esperando Inácia. Não que a pequena tivesse-lhe marcado encontro, nada disso, essa sorte ele não tinha ainda; mas era aí mesmo, com a dona da quitanda do falecido sô Ruas, que a rapariga trabalhava. Garrido Fernandes gostava ir lá de tarde, na hora dos poucos fregueses, para provocar as palavras, mirar bem o corpo redondo dela, toda a hora procurar ganhar coragem para falar o gostar que tinha, a vontade de dizer as coisas bonitas, ficava-lhes inventando de noite, no canto da cubata da madrinha onde estava morar de favor. Porque toda a gente sabia o Garrido gostava a pequena e isso era o riso para todos os outros que queriam apalpar a moça na cara dele, convidar Inácia para ir na cama deles, pôr indiretas que lhe feriam mais que os olhos dela, de onça, brilhantes, mais que a voz mesmo, Inácia queria lhe fazer má mas, até xingando, era bom sentir-lhe.
— Katul’o maku, sungadibengu...∗
Era só mentira dela. Garrido nunca que tentou nem tocar com um dedo na pequena, ela punha esses truques só para os amigos lhe gozarem, chamarem-lhe de saliente, conquistador, de suinguista, as miúdas não resistiam no atrevimento das mãos dele... Kam’tuta sofria, mas não eram as coisas que lhe diziam, não. Era ainda porque pensava isso estava doer, mas era na Inácia, fazerem-lhe pouco assim na frente dela, E por quê? Ora!... Ali, na quitanda, era assim sem lhe ligar; mas na hora do fim da tarde, quando o sol quente está para esconder e o escuro vem com os passos manhosos dele, Inácia gostava ir embaixo da mandioqueira e ficar pôr conversas, deixar ele dizer muitas coisas nunca que tinha-lhes ouvido falar noutros, palavras que lhe descobriam o que não podia ser mas ia ser bom se pudesse ser, viver uma vida como Garrido prometia com ela ele arranjava, nem que se matava num trabalho qualquer, não fazia mal. Mas, depois, já com a tristeza da mentira dessas palavras ela gostava ouvir, pareciam vinho abafado, doce e quente, Inácia começava gozar, xingava-lhe a perna coxa, o medo de ele deitar com as mulheres e, nessa hora, adiantava pôr todas as manias, todas as palavras e ideias a senhora estava lhe ensinar ou ela costumava ouvir, e jurava, parecia ela queria se convencer mesmo, ia se casar mas era com um branco, não ia assim atrasar a raça com mulato qualquer, não pensasse.
Garrido fugia embora, semana e semana ficava-lhe rondar, vigiar, sem outra coragem para falar, envergonhado. O corpo virava magro, nem a barba que fazia nem nada, os olhos dele, bonitos olhos azuis da parte do pai, cobriam de um cacimbo feio e, muitos bocados das noites sem dormir, pensava o melhor mesmo era se matar.
Mas Inácia não estava má de propósito, adivinhava o sofrimento, chamava-lhe outra vez. Só os monandengues, sabedores dos casos, não paravam: zuniam-lhe cada vez pedradas, cada vez insultos, fazendo pouco a perna aleijada:
— O Kam’tuta, sung’ó pé!∗
Também quem inventou essa maneira de lhe insultar foi a Inácia: num fim de raiva berrou-lhe assim e toda a gente ficou repetir todos os dias, até o papagaio Jacó, que só falava asneira de quimbundo, aprendeu. E isso é que doía mal no Garrido. Nas pessoas, ele desculpava; nos monas, esquivava as pedradas; nos mais velhos, falava eles tinham coração de jacaré ou calava a boca para não passar maca, não era medo, mas ninguém que aceitava lutar mesmo que lhes provocava; e, então, com a Inácia, ficava parecia era burro mesmo: escondia a cabeça no peito magro e punha cara de miúdo agarrado a fazer um malfeito.
Mas a nossa hora chega sempre.
Nesse dia, Kam’tuta tinha-se resolvido. Agarrara uma coragem nova, toda a noite, toda manhã nada que dormiu, só pensando essas conversas para falar na Inácia: ia-lhe convencer de vez para viver com ele, gostar dele, deitar na cama dele, tinha de matar essa cobra enrolada no coração, essa falta de ar que estava lhe tapar nos olhos, no peito, feitiçar-lhe a vida, nada que podia fazer mais. Até tinham-lhe corrido num emprego, serviço de guarda, só ficava pensar a Inácia, a pele dela engraxada, via-lhe brilhar no meio dos fogos da fogueira, os risos dela a estalar na lenha e os capianguistas tinham vindo, carregaram cinco sacos de cimento, nem deu conta do barulho nem nada e o patrão levou-lhe na esquadra, ele é que pagou os casos.
Assim, lá estava no fim da tarde e a maca só passava com o papagaio Jacó, bicho ordinário que sempre queria lhe morder e desatava insultar. Todos os dias tinha aquela luta: um lado, sentado nas massuícas, Garrido Fernandes, quileba∗, magro das razões da alcunha como falavam os monas e as pequenas por ali, arrumando a sua perna aleijada em qualquer lado, parecia era de borracha; do outro lado, nessa hora pendurado no pau de mandioqueira, o papagaio Jacó. De cor cinzenta, sujo de toda a poeira dos anos em cima dele, era mesmo um pássaro velho e mau, só três ou quatro penas encarnadas é que tinha no rabo. E nem merecia olhar-lhes, o bicho deixava aí secar o cocó dele, todo o dia andava passear, coçando os piolhos brancos, daqueles de galinhas, tinha muitos, gostava ir nas capoeiras. Mas isso Kam’tuta alegrava-se só de ver os galos porem-lhe uma surra de bicadas, o coitado tinha de voar embora, atrapalhado, com as asas cortadas.
Nessa posição estavam se mirando, raivosos: olho azul, bonito e novo, de Garrido, no fundo da cara magra, espiando; olho amarelo, pequeno, parecia era missanga, no meio dos óculos de penas brancas, do Jacó, colocados no mulato, vigiando as mãos armadas de pequenas pedras.
Kam’tuta pensava, conhecia papagaio da Baixa era diferente; tinha até um, numa senhora, assobiava hino nacional e fazia toque de corneta do batalhão e tudo. Quando lembrava esse, até tinha pena do Jacó, ranhoso e se coçando, cheio de bichos.
O pássaro cantava, rematava dois assobios seguidos, de cambular∗ as pequenas, mas sempre com os olhos amarelos bem no mulato, para esquivar as pedrinhas ele estava lhe arrumar. E até refilava com aquela voz de garganta que todos papagaios têm nesses casos. Só que acrescentava, punha mais insultos de quimbundo, até avó e avô ele sabia xingar.
Assim distraído, arrumando-lhe as pedrinhas, Garrido nem deu conta a Inácia já estava lá na porta, a espiar, a gozar a luta. De propósito, ela chamou-lhe:
— Kam’tuta!
Pronto! Jacó larou∗, sacudindo e abrindo as asas a bater nas folhas de mandioqueira, parecia era acompanhamento de conjunto de farra, esticou pescoço dele, quase pelado, tão velho, e desatou gritar, misturando assobios, insultos, cantigas:
A raiva do bicho, de lhe agarrar no pescoço, cresceu; nessa hora Garrido estava mesmo pensar morar no musseque nem para pássaro papagaio é bom, andava ali só à toa, catando os milhos e as jingubas lá dentro na quitanda, bebendo com as galinhas, passear só no chão, na casa, nem poleiro próprio com corrente nem nada, nem gaiola bonita de dormir... Mas o vento soprava de fora, de propósito para desenhar as grossas coxas novas debaixo do vestido de Inácia e Kam’tuta ficou a ver a pequena atravessar no quintal, no andar desenhava-se o corpo redondo, as mamas gordas e direitas nem que mexiam, só os dentes brancos riam nele.
— Ih! É você, Garrido? Já chegaste?
Nada, nem uma palavra para lhe responder sabia.
— Elá!... Não olha-me assim. Fico envergonhada...
— Não goza, Inácia...
continua página 48...
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∗ camuela — avarenta; egoísta; mesquinha.
∗ katul’o maku, sungadibengu — Tira as mãos, mulato.
∗ O Kam’tuta, sung’ó pé! — O Kam’tuta, puxa o pé!
∗ quileba — alto e magro.
∗ cambular — aliciar.
∗ larar — defecar.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Um tal Lomelino (01)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Mas tinha já alegria (02)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Pois é (03)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Sentou o largo... (05)
Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... A estória da galinha (01)
Luandino Vieira
continuando...
Então podemos falar a raiz do caso da prisão do Kam’tuta foi o Jacó, papagaio mal-educado, mesmo que para trás damos encontro com Inácia, pequena de corpo redondo que ele gostava, ainda que era camuela∗ de carinhos; e, na frente, com Dosreis e João Miguel, pessoas que não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo. O resto é o que me contou ele mesmo, Kam’tuta; o que falou o Zuzé, auxiliar, que leu na nota da polícia; mais o que eu posso saber ainda duma pequena como a Inácia e dum papagaio de musseque.
Na boca estreita de Garrido Fernandes tudo é por acaso. E as pessoas que lhe ouvem falar sentem mesmo o rapaz não acredita em sim, não acredita em não. Uma vez falou tudo o que ele queria não saía mais certo e tudo o que ele não queria também o caso era o mesmo; só passava-se tudo por acaso.
Então, por acaso, vamos lhe encontrar na hora das cinco e tal no dia de ontem desse dia em que agarraram o Lomelino carregando o saco com os patos proibidos, metido na sombra da mandioqueira do quintal da Viúva, esperando Inácia. Não que a pequena tivesse-lhe marcado encontro, nada disso, essa sorte ele não tinha ainda; mas era aí mesmo, com a dona da quitanda do falecido sô Ruas, que a rapariga trabalhava. Garrido Fernandes gostava ir lá de tarde, na hora dos poucos fregueses, para provocar as palavras, mirar bem o corpo redondo dela, toda a hora procurar ganhar coragem para falar o gostar que tinha, a vontade de dizer as coisas bonitas, ficava-lhes inventando de noite, no canto da cubata da madrinha onde estava morar de favor. Porque toda a gente sabia o Garrido gostava a pequena e isso era o riso para todos os outros que queriam apalpar a moça na cara dele, convidar Inácia para ir na cama deles, pôr indiretas que lhe feriam mais que os olhos dela, de onça, brilhantes, mais que a voz mesmo, Inácia queria lhe fazer má mas, até xingando, era bom sentir-lhe.
— Katul’o maku, sungadibengu...∗
Era só mentira dela. Garrido nunca que tentou nem tocar com um dedo na pequena, ela punha esses truques só para os amigos lhe gozarem, chamarem-lhe de saliente, conquistador, de suinguista, as miúdas não resistiam no atrevimento das mãos dele... Kam’tuta sofria, mas não eram as coisas que lhe diziam, não. Era ainda porque pensava isso estava doer, mas era na Inácia, fazerem-lhe pouco assim na frente dela, E por quê? Ora!... Ali, na quitanda, era assim sem lhe ligar; mas na hora do fim da tarde, quando o sol quente está para esconder e o escuro vem com os passos manhosos dele, Inácia gostava ir embaixo da mandioqueira e ficar pôr conversas, deixar ele dizer muitas coisas nunca que tinha-lhes ouvido falar noutros, palavras que lhe descobriam o que não podia ser mas ia ser bom se pudesse ser, viver uma vida como Garrido prometia com ela ele arranjava, nem que se matava num trabalho qualquer, não fazia mal. Mas, depois, já com a tristeza da mentira dessas palavras ela gostava ouvir, pareciam vinho abafado, doce e quente, Inácia começava gozar, xingava-lhe a perna coxa, o medo de ele deitar com as mulheres e, nessa hora, adiantava pôr todas as manias, todas as palavras e ideias a senhora estava lhe ensinar ou ela costumava ouvir, e jurava, parecia ela queria se convencer mesmo, ia se casar mas era com um branco, não ia assim atrasar a raça com mulato qualquer, não pensasse.
Garrido fugia embora, semana e semana ficava-lhe rondar, vigiar, sem outra coragem para falar, envergonhado. O corpo virava magro, nem a barba que fazia nem nada, os olhos dele, bonitos olhos azuis da parte do pai, cobriam de um cacimbo feio e, muitos bocados das noites sem dormir, pensava o melhor mesmo era se matar.
Mas Inácia não estava má de propósito, adivinhava o sofrimento, chamava-lhe outra vez. Só os monandengues, sabedores dos casos, não paravam: zuniam-lhe cada vez pedradas, cada vez insultos, fazendo pouco a perna aleijada:
— O Kam’tuta, sung’ó pé!∗
Também quem inventou essa maneira de lhe insultar foi a Inácia: num fim de raiva berrou-lhe assim e toda a gente ficou repetir todos os dias, até o papagaio Jacó, que só falava asneira de quimbundo, aprendeu. E isso é que doía mal no Garrido. Nas pessoas, ele desculpava; nos monas, esquivava as pedradas; nos mais velhos, falava eles tinham coração de jacaré ou calava a boca para não passar maca, não era medo, mas ninguém que aceitava lutar mesmo que lhes provocava; e, então, com a Inácia, ficava parecia era burro mesmo: escondia a cabeça no peito magro e punha cara de miúdo agarrado a fazer um malfeito.
Mas a nossa hora chega sempre.
Nesse dia, Kam’tuta tinha-se resolvido. Agarrara uma coragem nova, toda a noite, toda manhã nada que dormiu, só pensando essas conversas para falar na Inácia: ia-lhe convencer de vez para viver com ele, gostar dele, deitar na cama dele, tinha de matar essa cobra enrolada no coração, essa falta de ar que estava lhe tapar nos olhos, no peito, feitiçar-lhe a vida, nada que podia fazer mais. Até tinham-lhe corrido num emprego, serviço de guarda, só ficava pensar a Inácia, a pele dela engraxada, via-lhe brilhar no meio dos fogos da fogueira, os risos dela a estalar na lenha e os capianguistas tinham vindo, carregaram cinco sacos de cimento, nem deu conta do barulho nem nada e o patrão levou-lhe na esquadra, ele é que pagou os casos.
Assim, lá estava no fim da tarde e a maca só passava com o papagaio Jacó, bicho ordinário que sempre queria lhe morder e desatava insultar. Todos os dias tinha aquela luta: um lado, sentado nas massuícas, Garrido Fernandes, quileba∗, magro das razões da alcunha como falavam os monas e as pequenas por ali, arrumando a sua perna aleijada em qualquer lado, parecia era de borracha; do outro lado, nessa hora pendurado no pau de mandioqueira, o papagaio Jacó. De cor cinzenta, sujo de toda a poeira dos anos em cima dele, era mesmo um pássaro velho e mau, só três ou quatro penas encarnadas é que tinha no rabo. E nem merecia olhar-lhes, o bicho deixava aí secar o cocó dele, todo o dia andava passear, coçando os piolhos brancos, daqueles de galinhas, tinha muitos, gostava ir nas capoeiras. Mas isso Kam’tuta alegrava-se só de ver os galos porem-lhe uma surra de bicadas, o coitado tinha de voar embora, atrapalhado, com as asas cortadas.
Nessa posição estavam se mirando, raivosos: olho azul, bonito e novo, de Garrido, no fundo da cara magra, espiando; olho amarelo, pequeno, parecia era missanga, no meio dos óculos de penas brancas, do Jacó, colocados no mulato, vigiando as mãos armadas de pequenas pedras.
Kam’tuta pensava, conhecia papagaio da Baixa era diferente; tinha até um, numa senhora, assobiava hino nacional e fazia toque de corneta do batalhão e tudo. Quando lembrava esse, até tinha pena do Jacó, ranhoso e se coçando, cheio de bichos.
Papagaio louro
de bico encarnado
có... có... có... có...
O pássaro cantava, rematava dois assobios seguidos, de cambular∗ as pequenas, mas sempre com os olhos amarelos bem no mulato, para esquivar as pedrinhas ele estava lhe arrumar. E até refilava com aquela voz de garganta que todos papagaios têm nesses casos. Só que acrescentava, punha mais insultos de quimbundo, até avó e avô ele sabia xingar.
Assim distraído, arrumando-lhe as pedrinhas, Garrido nem deu conta a Inácia já estava lá na porta, a espiar, a gozar a luta. De propósito, ela chamou-lhe:
— Kam’tuta!
Pronto! Jacó larou∗, sacudindo e abrindo as asas a bater nas folhas de mandioqueira, parecia era acompanhamento de conjunto de farra, esticou pescoço dele, quase pelado, tão velho, e desatou gritar, misturando assobios, insultos, cantigas:
O Kam’tuta... tuta... tuta... tuuuu...
Sung’ó pé... pé... pé... pééééé...
A raiva do bicho, de lhe agarrar no pescoço, cresceu; nessa hora Garrido estava mesmo pensar morar no musseque nem para pássaro papagaio é bom, andava ali só à toa, catando os milhos e as jingubas lá dentro na quitanda, bebendo com as galinhas, passear só no chão, na casa, nem poleiro próprio com corrente nem nada, nem gaiola bonita de dormir... Mas o vento soprava de fora, de propósito para desenhar as grossas coxas novas debaixo do vestido de Inácia e Kam’tuta ficou a ver a pequena atravessar no quintal, no andar desenhava-se o corpo redondo, as mamas gordas e direitas nem que mexiam, só os dentes brancos riam nele.
— Ih! É você, Garrido? Já chegaste?
Nada, nem uma palavra para lhe responder sabia.
— Elá!... Não olha-me assim. Fico envergonhada...
— Não goza, Inácia...
continua página 48...
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∗ camuela — avarenta; egoísta; mesquinha.
∗ katul’o maku, sungadibengu — Tira as mãos, mulato.
∗ O Kam’tuta, sung’ó pé! — O Kam’tuta, puxa o pé!
∗ quileba — alto e magro.
∗ cambular — aliciar.
∗ larar — defecar.
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)
Luuanda
Estórias
Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963.
1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964.
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares).
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974.
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976.
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977.
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.
— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil,
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964.
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965.
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou, 1968.
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