quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... Inácia tinha puxado a saia... (06)

 Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio




Luandino Vieira



continuando...


Inácia tinha puxado a saia bem em cima dos joelhos redondos e lisos e Garrido sentiu nos olhos a queimar-lhe, a tapar tudo o resto, aquela pele preta, engraxada, luzia no escuro lá dentro das coxas compridas e rijas e esse sentir queria lhe puxar a cabeça mais em cima para espreitar outra vez, mais, era bom aquele branco a chamar lá no fim do escuro todo do corpo dela, Garrido podia jurar não tinha cor mais bonita que aquela, um branco muito lavado lá no fundo da noite da saia, mais escura agora com a noite de verdade que chegava, quem sabe mesmo, com as corridas para tapar o encarnado da cara de Garrido Fernandes. 

— Ená, Gagá! Não treme então! Segura com a outra mão...

Agarrou-lhe no tornozelo bem feito, apertando com carinho. O calor parecia corria nos braços como água da chuva, saía do corpo dele com depressa, para entrar na perna da Inácia, ela até tinha-se abaixado mais fingido era para espiar o trabalho, mas, com a respiração, só as mamas macias faziam festas na cabeça de monandengue do Garrido. Talvez mesmo, quem sabe?, a bitacaia nessa hora estava gozar os falhanços∗ de Kam’tuta, ele, que era um mestre nos mauindos, não conseguia lhe furar. Verdade que o alfinete estava grosso, mas um como ele, devia trabalhar ainda com qualquer ferramenta à-toa.

Sentiu a bitacaia podia morar mesmo lá, pôr ovo, fazer mauindo, nada que lhe interessava já nessa hora; se ia continuar assim com os quissondes a lhe atacar no sangue cadavez mais e a malandra da Inácia a chegar, a encostar, mostrar os segredos do corpo dela, provocar dessa maneira, cadavez podia ainda pensar ela queria dele, ia lhe agarrar ali mesmo, atrás da capoeira, que a noite já prestava, escura que vinha.

Mas quem veio, num vôo torto, foi o Jacó. Pousou na dona, desatou bicar o Garrido, estragou-lhe o serviço que queria fazer, deu-lhe berrida até embaixo da mandioqueira.

Falei a raiz da estória era o Jacó e é verdade mesmo, porque se não era esse bicho ter todos os carinhos de Inácia, nada que ia suceder, nem o Kam’tuta aceitava o que a pequena pediu-lhe no fim e era uma vergonha, ele já não estava mais monandengue de andar fazer essas habilidades.

Mas como é Garrido podia, cheio de vontade pela Inácia, queria-lhe mesmo amigar para acabar a dor no coração e matar os quissondes que andavam-lhe passear no sangue, como é ele ia fazer, se um papagaio velho e sujo, mal-educado, adiantava pôr beijo na boca da pequena e esconder embaixo das pernas dela?

A noite estava chegar, mas já morava no coração de Garrido logo na hora a Inácia decidiu acabar mesmo zangar o rapaz com o Jacó. Disse baixinho, quase nem que se ouvia:

— Kam’tuta, sunga...

Nem precisou acabar. Logo o Jacó abriu a asa e pôs um barulho parecia era riso de pessoa, antes de falar. Cantou:

Kam’tuta... tuta... tuta... sung’ó pé... pé... pé... 

E depois Inácia continuou furar no coração dele. Disse:

Tunda!∗...

Jacó não esperou. Mais alto que tudo continuou cantar:

Sung’ó pé... tundé... tundé... tundé... 
sung’ó pé... pé... ∗ 

E lembrou mesmo mais, para acabar a brincadeira: pegou o bago de jinguba no bolso, pôs na boca dela, pediu:

— Jacó, Jacó... tira o baguinho!

Jacó veio e com o cantar de riso dele, bicou-lhe na boca, tirou-lhe a jinguba. Garrido, era um soco cadavez ele fazia isso. Nem que aguentou mais, pediu:

— Inácia! Você me faz pouco, se quiser. Mas não deixa esse rosqueiro te mexer na boca. Um bicho porco!

Com cara de menina que não sabe nada, pôs os olhos grandes na cara de Garrido:

— Ai? Tem mal?

— Tem, Naxa,

Nem que refilou lhe chamar como ela não gostava.

— Tenho ciúme do bicho, pronto! Já sabe!

Não tinha mesmo no mundo cara tão sonsa como de Inácia nessa hora:

— Não digas?! Você sente raiva por papagaio me pôr beijo assim?...

— Por acaso sim, Inácia, não faz mais!

— E se eu digo a ele: Jacó! Jacó! procura o bago...

Nessa hora foi só ver o papagaio meter o bico, a cabeça toda no decote largo, procurando a jinguba Inácia tinha deitado lá no meio das mamas gordas que tremiam com o sacudir das asas do pássaro. Garrido nem sabia já o que sentia: se era o quissonde no sangue, o jindungo a correr, pensando o peito dela assim bicado devagarinho como Jacó sabia; se era raiva de apertar pescoço nesse bicho ordinário, podia mexer onde ele até tinha vergonha de olhar só.

— Também tem ciúme do meu peito, Gagá?

— Juro! Por acaso tenho! E raiva no Jacó!

— E se eu deixo ele andar dentro do vestido, você zanga, Gagá?

— Por acaso! Por acaso sou capaz de lhe apertar o pescoço. Juro! Inácia, não faz isso, não faz isso, não me provoca só, Naxa!

Mas o Jacó já saía com a cabeça do peito para engolir o bago, tinha-lhe encontrado, a Inácia ria toda, mexia, torcida de cócegas que as penas lhe punham.

— Fica quieto, Jacó! Está me pôr comichões...

— É os piolhos do fidamãe!

— Não tem piolhos o Jacó! Piolho tem você... Jacó... Jacó... vai chover!

Nessas palavras então era o cúmulo, ninguém que podia mesmo continuar ali a ser gozado dessa maneira assim, sem respeito. O papagaio desceu devagar e espreitando com a cabeça nos joelhos apertados da Inácia, meteu-lhe embaixo da bainha, começou a andar lá para dentro, para o escuro, largando seus pios e assobios, cantarolando :

Vai vir chuva... vai vir chuva... 

Inácia ria, torcida com cócegas, a cara de raivado do Garrido Fernandes. E quando o rapaz levantou-se devagar para adiantar arrancar com a perna aleijada, feito pouco, triste e envergonhado, Inácia chamou-lhe manso, com todo o açúcar-preto da voz dela:

— Gagá! Não me deixa só no escuro...

É que o escuro tinha descido já. As luzes começavam piscar em todos os lados, na quitanda já tinha barulho de homens a gastar o dinheiro no vinho, voltando do serviço. Garrido parou, baralhado, não sabia se ficava, se ia embora; se calhar era só para adiantar fazer mais pouco que lhe chamava, a voz era de mentira, aquele Gagá não queria dizer. Mas, devagar, veio sentar-se mais perto dela, pediu:

— Primeiro, se você quer eu fico, enxota o fidamãe do Jacó!

Inácia aceitou, deu-lhe berrida; o bicho foi embora pelo chão, pesado e torto, parecia era pato marreco, falando os insultos sô Ruas tinha-lhe ensinado e ele nunca esquecia.

— Depois, se você quer eu fico para te tomar conta até na hora de vir a tua senhora, deixa ainda te dar um beijo!

— Elá! ‘tá saliente!...

Nem Kam’tuta mesmo que sabia como é tinha-lhe saído essas palavras na garganta, nada que tinha pensado disso naquela hora, se calhar era o quente do sangue que ensinava a coragem desses pedidos assim. Inácia riu muito, os seus dentes todos de coco ficaram a tremer no escuro, a pôr música nas orelhas de Kam’tuta.

— ‘tá bem! Aceito!

Atrapalhado, não esperava ela ia dizer sim, Garrido levantou os braços, a cabeça começou trabalhar mais depressa que as mãos e sentiu, mesmo sem lhe tocar, a pele quente das costas que ia abraçar, o macio de sumaúma dos lábios grossos, o molhado quente da boca dela, tudo assim como pensava de noite, os olhos abertos no escuro do seu canto onde dormia e fabricava aventuras que nunca se passavam mais.

— Espera ainda! Você pode me pôr um beijo, se você quer te deixo mesmo passar sua mão nas minhas pernas, mas quero troco também...

— Diz, diz! Eu faço já!

— Juras?

— Juro a alma da minha mãe!

— Olha então... Eu ouvi que você pode mesmo andar ao contrário... Põe mãos no chão, arruma tua perna aleijada na capanga e anda em volta do quintal para eu te ver ainda!

— Não!

Uma dor grande, de lhe pôr chapadas, estava nas mãos levantadas prontas para lhe abraçar.

— Não, Naxa! Não faz pouco de mim, assim!

— Ai?! Fazer pouco, como então? Pra você se mostrar...

— Não! Não sou Nuno. E mesmo se eu faço, não é habilidade nada. E só porque sou aleijado, e Deus Nosso Senhor assim é que mandou...

— Deixa, pronto!... Você é que sabe, Gagá. Se não queres me pôr um beijo, se não gostas as minhas pernas, é contigo. Mas depois não vem me chamar eu sou camuela consigo, só gosto os outros!

Uma vontade de chorar, de berrar, de rasgar aquela cara de miúda sem pecado da Inácia, a olhar-me quieta, com os grandes olhos de fogo, é que tinha. Mas as mãos não aceitavam chapadas, queriam era só abraçar-lhe, amarrar-lhe no corpo estreito dele, esfomeado, cheio de sede. Com as lágrimas quase a chover, baixou a cabeça, estendeu os braços magros e pôs as largas mãos no chão. Nem precisou dar balanço nem nada, o corpo ficou pendurado para baixo, uma perna no ar e a outra, fina e aleijada, enrolou logo no pescoço.

Assim quieto, endireitou a cabeça de monandengue. Mirou Inácia sentada, viu a tristeza mesmo, a pena, já estavam chegar, vendo-lhe nessa posição é que parecia ele era meio-homem só. Mas não quis olhar-lhe mais, começou andar. Cada passo das mãos era um espinho no coração, um peso que acrescentava, não deixava ir na zuna e ele queria acabar logo-logo, fugir dessa figura que ele mesmo via dar a volta no quintal com depressa, quase era corrida já, para matar a vergonha, ninguém lhe ver, adiantar receber o prêmio, fugir para longe.

— Pronto, já ‘cabei, Naxa...

Estava triste, triste, a voz. Azuis, os olhos quase cacimbados∗. Sem força nos braços para abraçar. Mas o quissonde veio morder outra vez no sangue vendo Inácia assim quieta, derrotada, nem que mexia, só os olhos a mirarem para lá da mandioqueira, já não a rapariga antiga, parecia era uma miúda mesmo. Uma grande ternura cobriu a vergonha toda do Kam’tuta, apagou a tristeza, desculpou as malandrices da Inácia, queria-lhe pôr festas, falar coisas bonitas, prometer, fazer, mas nessa hora só conseguiu abaixar-se sorrindo bom, para um abraço melhor ainda do que queria, sem jindungo no corpo, sem vontade de lhe apertar, de lhe encostar nele, só de pôr brincadeira no cabelo dela, passar a mão na pele redonda dos ombros, repetir mansinho nas orelhas dela as palavras ele sabia ela gostava.

E se não tivesse pensado assim, se não estivesse cheio dessa felicidade que vem sempre quando a gente pensa as coisas boas para outra pessoa, tinha pelejado, tinha arreado porrada na Inácia, não fazia mal ela era uma mulher, não havia direito fazer pouco assim um homem. Mas não, a felicidade não deixou. A chapada de Inácia, os gritos da pequena no meio das lágrimas, depois as gargalhadas de mentira, só lhe fizeram ficar mais banzado, de boca aberta, nem a chapada na cara que lhe doeu, os olhos azuis grandes e fundos ficaram mirar espantados, tudo parecia estava suceder no meio do fumo da diamba, a Inácia a gritar, xalada∗, a insultar-lhe correndo para dentro da quitanda:

— Sungaribengo de merda! Filho da mãe aleijado! Sem-pernas da tuji! Pensas podes-me comprar com brincadeira de macaco, pensas? Tunda! Tunda! Vai ‘mbora saguim mulato, seu palhaço!...

Com devagar, puxando atrás dele a perna aleijada, o coração rebentado, o sangue frio, mais frio que o cacimbo das lágrimas e da noite fechada em cima do musseque, Garrido sentiu ainda muito tempo os assobios, a voz de fazer-pouco do fidamãe do papagaio Jacó, xingando-lhe lá de dentro da mandioqueira:

Kam’tuta... sung’ó pé... o pé... pé... pé...




continua página 59...


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∗ falhanço — tentativa frustrada.
∗ tunda! — rua!; sai!
∗ Sung’ó pé tundé... tundé... tundé... sung’ó pé... — Puxa o pé... rua... rua... rua... puxa o pé...
∗ cacimbado — molhado, enevoado pelas lágrimas.
∗ xalada — maluca; doída.


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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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