quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 25 — O Gigante Branco

Edgar Allan Poe - Contos





Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





25 — O Gigante Branco



Encontrávamo-nos então no imenso e desolado Oceano Antártico, a uma latitude de mais de 84 graus, numa frágil canoa, tendo como únicas provisões as três tartarugas. Além disso não nos podíamos esquecer que o inverno polar estava perto e era indispensável refletir maduramente sobre a rota a seguir. Tínhamos seis ou sete ilhas à vista, pertencentes ao mesmo grupo, a uma distância de cinco ou seis léguas umas das outras, mas não estávamos tentados a desembarcar em nenhuma delas. Ao navegarmos para o Norte a bordo da Jane Guy, tínhamos gradualmente deixado para trás as regiões mais geladas e, embora isso possa parecer um absoluto desmentido das noções geralmente aceites sobre o Oceano Antártico, é um facto que a experiência não nos permite negar. Assim, tentar voltar para trás seria uma loucura, especialmente num período já tão avançado da estação. Decidimos navegar para Sul, onde tínhamos a hipótese de descobrir novas ilhas e onde era provável existir um clima mais ameno.

Até aqui o Oceano Antártico pareceu-nos semelhante ao Ártico, sem tempestades violentas nem vagas muito fortes, mas a nossa canoa era, para não dizer pior, de frágil construção, embora fosse grande, e tivemos muito trabalho para a tornar mais segura com os meios limitados de que dispúnhamos. O fundo da embarcação era muito simplesmente feito de um tronco de árvore para nós desconhecida. A armação era de verga forte, perfeitamente adaptada ao fim a que se destinava. Da proa à ré tínhamos um espaço de cinquenta pés, por quatro a seis de largura e quatro e meio de profundidade. Como se vê, estes barcos diferem pela sua forma das embarcações dos habitantes dos mares do Sul, com os quais as nações civilizadas já contataram. Nunca acreditámos que fossem obra daqueles ignorantes insulares que os possuíam e alguns dias mais tarde, soubemos, interrogando o nosso prisioneiro, que na verdade tinham sido construídas por habitantes de um grupo de ilhas a Sudoeste da sua região e que tinham caído acidentalmente nas mãos dos nossos horríveis bárbaros.


O que podíamos fazer pela segurança do nosso barco era realmente muito pouco. Descobrimos algumas fendas nas duas extremidades, que tapámos o melhor que pudemos com pedaços das nossas camisolas de lã. Utilizando os remos que não eram necessários e que existiam em grande quantidade, erguemos uma espécie de armação à volta da proa, com o objetivo de amortecer a força das ondas que nos pudessem ameaçar por aquele lado. Instalámos também dois remos a fazer de mastros, um de cada lado nos extremos da embarcação, em substituição de uma verga. A estes mastros atámos uma vela feita das nossas camisas, trabalho que nos foi muito difícil, já que nos foi impossível conseguir a ajuda do prisioneiro, que até então não se tinha recusado a colaborar nas outras operações. A visão da vela pareceu afetá-lo de maneira estranha e nunca conseguimos que lhe tocasse ou mesmo que se aproximasse e, quando o quisemos forçar, começou a tremer e a gritar com toda a força: Tekeli-li!

Quando terminamos todos os preparativos relativos à segurança da canoa, navegámos rumo a Sul-Sudeste, de forma a dobrarmos a ilha do arquipélago situado mais ao Sul. Não se podia considerar que o tempo estivesse desagradável: uma suave brisa soprava constantemente de Norte, o mar estava calmo e era sempre dia. Não se avistava nenhum gelo e já não víamos um único pedaço desde que tínhamos passado o paralelo da ilhota Bennet. A temperatura da água era demasiado elevada para permitir a existência de gelo. Matámos a tartaruga maior, que nos forneceu não só carne, mas também uma abundante provisão de água, e continuámos a nossa rota sem qualquer incidente importante durante sete ou oito dias; durante este período devemos ter avançado bastante para Sul, porque o vento foi sempre favorável e uma forte corrente impelia-nos na direção desejada.

1 de março. — Vários fenômenos insólitos anunciaram-nos que penetrávamos numa região de novidades e maravilhas. Uma alta barreira de vapor cinzento aparecia constantemente no horizonte Sul, cortada de vez em quando por longos raios luminosos tanto na direção Este-Oeste, como Oeste-Este, reunindo-se depois de forma a constituir uma única linha, ou seja, produzindo todas as maravilhosas tonalidades da aurora boreal. A altura média deste vapor, tal como se nos apresentava do ponto onde nos situávamos, era cerca de vinte e cinco graus. A temperatura do mar parecia estar sempre a aumentar e registrava-se uma sensível alteração na sua cor.

2 de março. — Hoje, interrogando o nosso prisioneiro, soubemos alguns pormenores relativos à ilha onde se registou o massacre, aos seus habitantes e respetivos usos e costumes. Será que essas coisas podem agora interessar o leitor? No entanto, posso dizer que soubemos que o arquipélago compreendia oito ilhas, que eram governadas por um só rei chamado Tsalemon ou Psalemoun, que residia na ilha mais pequena, que as peles negras usadas pelos guerreiros provinham de um animal enorme que se encontrava no vale perto da residência do rei, que os habitantes do arquipélago apenas sabiam construir jangadas e tudo o que possuíam de outro género eram as quatro canoas que tinham conseguido por acaso numa ilha grande situada a Sudoeste, que o prisioneiro se chamava Mu-Nu e que nunca tinha ouvido falar da ilhota Bennet e finalmente que a ilha onde tínhamos estado era Tsalal. O início das palavras Tsalemon e Tsalal, pronunciava-se com um silvo alongado que nos foi impossível imitar, mesmo depois de tentarmos várias vezes, e que lembrava precisamente o som emitido pelo alcaravão negro, que tínhamos comido no cimo da colina.

3 de março. — O calor da água era agora notável e a sua cor, sofrendo uma alteração rápida, em breve perdia a transparência, adquirindo um aspeto opaco e leitoso. À nossa volta, o mar estava geralmente calmo, e nunca era tão agitado que pusesse a canoa em perigo. Porém, admirávamo-nos várias vezes de observar, à nossa direita e à nossa esquerda, a distâncias diferentes, súbitas e vastas agitações à superfície, as quais, segundo descobrimos mais tarde, eram sempre precedidas por estranhas vacilações na barreira de vapor, situada a Sul.

4 de março. — Hoje, com o objetivo de aumentar a vela, pois a brisa do Norte diminuíra sensivelmente, tirei um lenço branco do bolso do meu casaco. Nu-Nu estava sentado a meu lado e, tendo-lhe por acaso tocado com o lenço na cara, foi tomado de violentas convulsões. Esta crise foi seguida de prostração e apatia e dos seus habituais: Tekeli-li! Tekeli-li, murmurados em surdina.

5 de março. — O vento desaparecera por completo, mas era evidente que continuávamos a prosseguir para Sul, sob a influência de uma forte corrente. Na verdade, seria natural que tivéssemos sentido um certo terror pelo aspecto estranho que aquela aventura estava a assumir, mas não sentimos medo algum! A fisionomia de Peters nada denunciava, embora de vez em quando assumisse uma expressão misteriosa, cujo significado não conseguia entender. Era evidente que o inverno polar se aproximava, mas sem o seu cortejo de horrores. Sentia um entorpecimento do corpo e do espírito, uma surpreendente tendência para o sonho, mas era tudo.

6 de março. — O vapor já se tinha elevado muitos graus acima do horizonte e perdia gradualmente a sua tonalidade cinzenta. O calor da água era excessivo e o seu aspecto leitoso mais visível do que nunca. Hoje ocorreu uma violenta agitação da água muito perto da canoa. Foi, como de costume, acompanhada de um estranho flamejar do vapor, em cima, e de uma separação momentânea da sua base. Uma poeira branca, muito fina, semelhante a cinza, mas que evidentemente não o era, caiu sobre a canoa e sobre uma vasta extensão de mar, enquanto se desvaneciam as alterações luminosas do vapor e o mar se acalmava. Nu-Nu atirou-se de bruços para o fundo da canoa e foi-nos impossível convencê-lo a levantar-se.

7 de março. — Interrogámos Nu-Nu sobre os motivos que tinham levado os seus compatriotas a matar os nossos companheiros, mas ele parecia dominado por um terror que o impedia de nos responder. Continuava deitado no fundo da canoa e, como não parávamos de o assediar com perguntas sobre o motivo do massacre, respondia-nos com gestos idiotas como por exemplo, levantar o lábio superior com o dedo indicador, mostrando os dentes, que eram negros. Ainda nunca tínhamos visto os dentes de um habitante de Tsalal.

8 de março. — Hoje passou ao nosso lado um desses animais brancos, cujo aparecimento na baía de Tsalal causara tanto terror entre os selvagens. Senti desejo de o agarrar, mas abateu-se sobre mim um súbito desinteresse e apatia e nunca mais pensei no caso. A temperatura do mar continuava a aumentar e já não se podia meter a mão na água. Peters falava pouco e não sabia o que pensar da sua apatia. Nu-Nu apenas suspirava.

9 de março. — A substância semelhante a cinza chovia agora incessantemente à nossa volta em enorme quantidade. A barreira de vapor ao Sul tinha-se elevado a uma altura prodigiosa acima do horizonte e começava a ter uma grande nitidez de formas. A única comparação possível é com uma catarata infinita, caindo silenciosamente sobre o mar do alto de uma imensa vertente perdida no céu. A gigantesca cortina ocupava todo o horizonte Sul e não emitia qualquer ruído.

21 de março. — Funestas trevas pairavam agora sobre nós, mas das profundezas leitosas do Oceano brotava um esplendor luminoso que deslizava pelos flancos da canoa. Estávamos quase esmagados por aquela poeira branca que caía sobre nós e a embarcação, mas que se fundia ao cair na água. O cimo da catarata perdia-se completamente na obscuridade e no espaço. No entanto, era evidente que nos aproximávamos dela com enorme velocidade. De vez em quando e momentaneamente, distinguíamos naquela imensa cortina medonhas fendas, através das quais se precipitavam poderosas correntes de ar, que silenciosamente agitavam o mar flamejante à sua passagem.

22 de março. — As trevas tinham-se adensado e só eram quebradas pela claridade das águas, que refletiam a cortina branca erguida à nossa frente. Uma multidão de gigantescas aves de uma brancura lívida voavam incessantemente por trás da estranha barreira, emitindo o eterno grito Tekeli-li! que soltavam ao passarem diante de nós. Perante isto, Nu-Nu agitou-se um pouco no fundo do barco, mas quando lhe tocámos verificámos que a sua alma já tinha partido. Então precipitámo-nos nas entranhas da catarata, onde, como que para nos receber, se abriu um abismo. Mas eis que à nossa frente se desenhou uma figura humana com um véu, de proporções muito maiores do que as de um habitante da terra, enquanto a sua pele era de uma brancura imaculada de neve.




continua na página 280...



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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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