quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — VI

 Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



VI — Fauchelevent


O senhor Madelaine, certa manhã, indo a passar por uma viela de Montreuil-sur-mer, ouviu barulho, olhou e, vendo um grupo de gente a alguma distância, dirigiu-se para ali. A causa daquele ajuntamento era um velho chamado Fauchelevent ter caído, ficando debaixo das rodas do carro que guiava, acidente devido ao cavalo que o puxava ter tropeçado e caído também.

Este Fauchelevent era um dos raros inimigos que o senhor Madelaine tinha ainda naquela época. Quando Madelaine veio estabelecer-se na terra, Fauchelevent, antigo tabelião e aldeão quase letrado, negociava, mas o seu negócio principiava a correr mal. Fauchelevent viu enriquecer aquele simples operário, enquanto que ele, sendo patrão, se arruinava, e isto acometeu-o de inveja, de maneira que daí em diante não perdeu uma só ocasião de prejudicar Madelaine no que podia. Viera, porém, a quebrar, e vendo-se velho, sem família e sem filhos, sem ter de seu mais que um carro e um cavalo, fez-se carroceiro para ganhar a vida.

O cavalo tinha as duas pernas quebradas, não podendo por isso levantar-se, e o velho estava entalado entre as duas rodas. A queda fora de tal modo desastrosa, que todo o peso da carroça, demasiado carregada, lhe oprimia o peito. O pobre velho soltava os mais dolorosos gemidos, devido às dores que sentia. Haviam tentado tirá-lo dali, mas em vão. Qualquer esforço mal aplicado, qualquer ajuda pouco jeitosa, podia matá-lo. Era impossível livrá-lo de tão terrível posição, senão levantando a carroça por baixo. Javert, que apareceu ali no momento do desastre, mandou imediatamente buscar um macaco para levantar o carro.

Foi nesta ocasião que chegou o senhor Madelaine e todos se afastaram respeitosamente.

— Quem me acode! — gritava Fauchelevent. — Não há aí uma alma caridosa que acuda ao pobre velho?

O senhor Madelaine voltou-se para os assistentes.

— Não há por aí um macaco?

— Foram já arranjá-lo — respondeu um aldeão.

— Quanto tempo levará a chegar?

— Mandou-se aonde era mais perto, ao lugar de Flachot, onde há um ferrador, mas mesmo assim não gastará menos dum quarto de hora para chegar aqui.

— Um quarto de hora! — exclamou Madelaine.

Como tinha chovido na véspera, o terreno estava encharcado, de maneira que o carro se enterrava cada vez mais, oprimindo cada vez mais o peito do desventurado velho. Era evidente que antes de cinco minutos estaria com as costelas quebradas.

— É impossível esperar um quarto de hora — disse Madelaine para os que o rodeavam.

— Pois não há outro remédio!

— Mas então já será tarde! Não veem como a carroça se vai enterrando?

— Valha-nos Deus!

— Escutem — tornou Madelaine — debaixo da carroça há ainda bastante espaço para que ali se meta um homem e a levante com as costas. Bastará erguê-la por meio minuto, para que se possa tirar o pobre homem. Se houver aqui alguém que tenha força e bom coração, ganhará por isso cinco luíses de oiro!

Nem um só se mexeu no meio do grupo.

— Dez luíses! — disse Madelaine.

Todos os presentes baixaram os olhos e um deles murmurou:

— Era preciso ser de ferro... E depois pode-se ficar esmagado.

— Vamos! — tornou Madelaine. — Vinte luíses!

O mesmo silêncio.

— Não é boa vontade o que lhes falta! — disse uma voz. Madelaine voltou-se e reconheceu Javert, em quem não tinha reparado quando ali chegara. Javert continuou:

— O que lhes falta é força. Seria preciso um homem muito possante para levantar com os ombros um carro destes.

Depois, olhando fixamente para Madelaine, prosseguiu, acentuando cada uma das palavras que pronunciava:

— Senhor Madelaine, ainda não conheci senão um homem que fosse capaz de fazer o que o senhor quer.

Madelaine estremeceu.

Javert acrescentou com ar de indiferença, mas sem despregar os olhos de Madelaine:

— Era um forçado.

— Ah! — exclamou Madelaine.

— Que estava nas galés de Toulon.

Madelaine empalideceu.

Entretanto, a carroça continuava a enterrar-se vagarosamente. Fauchelevent gemia e gritava:

— Acudam-me, senão morro aqui esmagado!

Madelaine tornou a olhar em volta de si.

— Então não há ninguém que queira ganhar vinte luíses, salvando a vida a este pobre homem?

Como da primeira vez, ninguém se mexeu. Javert repetiu:

— Ainda não conheci senão um homem que fosse capaz de o fazer, era o tal forçado.

— Ai que eu morro! — gritava o velho.

Madelaine ergueu a cabeça, encontrou o olhar de falcão de Javert, sempre fixo nele, olhou para os circunstantes imóveis e sorriu com tristeza. Depois, sem dizer uma palavra, deitou-se de joelhos e antes mesmo que a multidão tivesse tempo de soltar um grito, estava debaixo do carro.

Seguiu-se um terrível momento de silenciosa expectativa.

Todos viram Madelaine quase de bruços, sob aquele enorme peso, tentar em vão duas vezes aproximar os cotovelos dos joelhos e gritaram-lhe:

— Saia daí, senhor Madelaine!

O próprio Fauchelevent disse-lhe:

— Olhe que se arrisca a ser esmagado como eu, senhor Madelaine! Bem vê que não me pode salvar, tenho por força de morrer!

Madelaine não lhe respondeu.

Todos os presentes estavam arquejantes de ansiedade. As rodas tinham continuado a enterrar-se e era já quase impossível que Madelaine pudesse sair debaixo do carro.

De repente, todos viram mover-se a enorme massa, o carro erguia-se lentamente, as rodas apareciam já meio desenterradas, ao mesmo tempo que se ouvia uma voz, gritando:

— Ajudem-me, depressa!

Era Madelaine que acabara de fazer um derradeiro esforço.

Precipitaram-se todos. A dedicação de um só dera força e coragem aos outros. A carroça foi levantada por vinte braços e o velho Fauchelevent foi salvo.

Madelaine ergueu-se. Estava pálido, conquanto escorrendo suor, e tinha o fato todo rasgado e coberto de lama. Todos choravam de prazer, e o pobre velho abraçava-o pelos joelhos, chamando-lhe o seu redentor. Quanto a ele, tinha no rosto como que uma expressão de sofrimento feliz e celeste, e fixava o seu olhar sereno em Javert, que continuava a encará-lo do mesmo modo.


_
___________________



Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


_________________________

Leia também:

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine I — O abade Myriel
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bem-vindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine III — A bom bispo, mau bispado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IV — As palavras semelhantes às obras
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine V — Como Monsenhor Bem-vindo poupava as suas batinas
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VII — Gravatte, o salteador
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VIII — Filosofia de sobremesa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IX — O caráter do irmão descrito pela irmã
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 1
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XI — Restrição
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XII — Solidão de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIII — Quais eram as crenças do bispo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha (2)
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda II — A prudência aconselha a sabedoria
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda III — Heroísmo da obediência passiva
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IV — Pormenores sobre as queijeiras de Pontarlier
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, V — Tranquilidade
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VI — Jean Valjean
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VII — O interior do desespero
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VIII — A onda e a sombra
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IX — Novos agravos
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, X — O hóspede acordado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VI — Capítulo consagrado ao amor
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IX — Alegre fim de festa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — II
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida  — VI

_________________



Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


Nenhum comentário:

Postar um comentário