sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Complô (XIII)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XIII

UM COMPLÔ




Palavras soltas, encontros fortuitos transformam-se em prova de última evidência aos olhos do homem de imaginação, se ele tem algum fogo no coração.

SCHILLER


NO DIA SEGUINTE, ele voltou a surpreender Norbert e a irmã, que falavam dele. À sua chegada, fez-se um silêncio de morte, como na véspera. Suas suspeitas não tiveram mais limites. Teriam esses jovens amáveis resolvido zombar de mim? Cumpre reconhecer que isso é muito mais provável, muito mais natural do que uma suposta paixão da srta. de La Mole por um pobre coitado de secretário. Antes de mais nada, terão eles paixões? O forte dessa gente é mistificar. Têm ciúmes de minha pobre superioridade verbal. Ter ciúmes é ainda um de seus pontos fracos. Tudo se explica nessa hipótese. A srta. de La Mole quer convencer-me de que me distingue, simplesmente para oferecer-me como espetáculo a seu pretendente.
Essa cruel suspeita mudou toda a posição moral de Julien. Ela não teve dificuldade de destruir um começo de amor em seu coração, amor que se fundava apenas sobre a rara beleza de Mathilde, ou melhor, sobre suas maneiras de rainha e seu vestuário admirável. Nisto, Julien portava-se ainda como alguém que subiu na vida. Uma mulher bonita da alta sociedade é, ao que dizem, o que um plebeu inteligente mais admira, quando chega à primeira classe. Não era de modo nenhum o caráter de Mathilde que fazia Julien sonhar nos dias precedentes. Ele tinha juízo suficiente para compreender que não conhecia em absoluto esse caráter. Tudo o que dele percebia podia ser só uma aparência.
Por exemplo, por nada no mundo Mathilde teria faltado à missa num domingo; quase todos os dias acompanhava a mãe até lá. Se, no salão da mansão de La Mole, algum imprudente esquecesse o lugar onde estava e se permitisse a alusão mais distante a um gracejo contra os interesses verdadeiros ou supostos do trono ou do altar, Mathilde assumia no mesmo instante uma seriedade glacial. Seu olhar, geralmente tão provocador, readquiria o orgulho impassível de um velho retrato de família.
Mas Julien sabia com certeza que ela tinha sempre em seu quarto um ou dois dos volumes mais filosóficos de Voltaire. Ele próprio furtava com frequência alguns tomos da bela edição magnificamente encadernada. Afastando um pouco cada volume de seu vizinho, ocultava a ausência daquele retirado, mas ele logo percebeu que outra pessoa andava lendo Voltaire. Recorreu a um truque de seminário, pôs alguns fios de cabelo nos volumes que supunha poderem interessar a srta. de La Mole. Eles desapareciam durante semanas.
O sr. de La Mole, aborrecido com seu livreiro que lhe enviava todas as Memórias apócrifas, encarregou Julien de comprar as novidades mais picantes. Mas, para que o veneno não se espalhasse pela casa, o secretário tinha a ordem de guardar os livros numa pequena biblioteca situada no próprio quarto do marquês. Ele logo descobriu que, por menor que fosse a hostilidade desses livros novos aos interesses do trono e do altar, eles não tardavam a desaparecer. Certamente, não era Norbert que os lia.
Exagerando esse fato, Julien atribuía à srta. de La Mole a duplicidade de Maquiavel. Essa suposta perfídia era um encanto aos olhos dele, quase o único encanto moral que ela teria. A aversão à hipocrisia e às declarações de virtude lançava-o nesse excesso. Ele era mais excitado pela imaginação do que arrastado por seu amor.
Era quando perdia-se em devaneios sobre a elegância do porte da srta. de La Mole, sobre o gosto excelente de seu vestuário, sobre a brancura de sua mão, sobre a beleza de seu braço, sobre a desenvoltura de todos os seus movimentos, que ele sentia-se apaixonado. Então, para completar o encanto, imaginava-a uma Catarina de Médicis. Nada era bastante profundo ou bastante pérfido para o caráter que lhe atribuía. Era o ideal dos Maslon, dos Frilair e dos Castanède, por ele admirados em sua juventude. Em uma palavra, era para ele o ideal de Paris.
Houve alguma vez algo de mais divertido do que supor profundidade ou perfídia ao caráter parisiense?
É possível que esse trio esteja zombando de mim, pensava Julien. Conhecemos muito pouco seu caráter se já não vemos a expressão sombria e distante que seus olhares adquiriram ao responderem aos de Mathilde. Uma ironia amarga repeliu as demonstrações de amizade que a srta. de La Mole, surpresa, ousou arriscar duas ou três vezes.
Ferido por essa extravagância súbita, o coração dessa jovem naturalmente frio, entediado, sensível à sutileza tornou-se tão apaixonado quanto sua natureza lhe permitia ser. Mas havia também muito orgulho no caráter de Mathilde, e o nascimento de um sentimento que fazia depender de um outro toda a sua felicidade foi acompanhado de uma sombria tristeza.
Julien já havia progredido bastante desde sua chegada em Paris para perceber que essa tristeza não era aquela, seca, do tédio. Em vez de ser ávida, como outrora, por festas, espetáculos e distrações de todo tipo, ela os evitava.
A música cantada por franceses aborrecia mortalmente Mathilde; no entanto, Julien, que se impusera o dever de assistir à saída do Teatro da Ópera, observou que ela se deixava levar até lá com mais frequência. Acreditou perceber que ela perdera um pouco da medida perfeita que brilhava em todos os seus atos, respondendo às vezes aos amigos com gracejos ultrajantes, à força de energia mordaz. Pareceu-lhe que ela visava especialmente o marquês de Croisenois. Esse rapaz deve amar furiosamente o dinheiro para não abandonar essa moça, pensava Julien. Quanto a ele, indignado com os ultrajes feitos à dignidade masculina, redobrava de frieza para com ela. Várias vezes chegou a dar-lhe respostas pouco polidas.
Contudo, por mais decidido que estivesse a não deixar-se enganar pelos sinais de interesse de Mathilde, estes eram muito evidentes alguns dias, e Julien, cujos olhos começavam a abrir-se, achava-a tão encantadora que às vezes ficava embaraçado.
A habilidade e a firmeza de ânimo dessa gente da alta sociedade acabariam por triunfar de minha pouca experiência, pensou; é preciso partir e pôr um termo a tudo isso. O marquês acabava de confiar-lhe a administração de uma série de propriedades e casas que possuía no baixo Languedoc. Uma viagem era necessária: o sr. de La Mole consentiu, pesaroso. Exceto para os assuntos de alta ambição, Julien tornara-se um alterego para ele.
No final das contas, eles não me pegaram, dizia-se Julien ao preparar sua partida. Quer os gracejos feitos pela srta. de La Mole a esses senhores sejam reais ou apenas destinados a inspirar-me confiança, diverti-me com eles.
Se não há conspiração contra o filho do carpinteiro, a srta. de La Mole é inexplicável, mas ela o é tanto para o marquês de Croisenois quanto para mim. Ontem, por exemplo, seu mau humor era muito real, e tive o prazer de ver constrangido, em meu favor, um jovem tão nobre e rico quanto sou pobre e plebeu. Eis o mais belo de meus triunfos, que me alegrará na viagem, percorrendo as planícies do Languedoc.
Ele fizera de sua partida um segredo, mas Mathilde sabia muito bem que ele ia deixar Paris no dia seguinte, e por muito tempo. Sob pretexto de uma forte dor de cabeça, que o ar abafado do salão aumentava, ela saiu para o jardim, e fez gracejos tão mordazes contra Norbert, o marquês de Croisenois, Caylus, de Luz e alguns outros jovens que haviam jantado na mansão de La Mole, que os forçou a retirarem-se. Ela olhava para Julien de um jeito estranho.
Talvez esse olhar seja um fingimento, pensou Julien; mas essa respiração apressada, toda essa agitação! Ah!, disse a si mesmo, quem sou eu para julgar essas coisas? Eis aqui o que há de mais sublime e de mais fino entre as mulheres de Paris. Essa respiração apressada, que esteve a ponto de tocar-me, ela a terá estudado em Léon tine Fay, que tanto aprecia.
Os dois ficaram a sós; a conversa esmorecia evidentemente. Não! Julien nada sente por mim, dizia-se Mathilde, realmente infeliz. No momento em que ele se despedia, ela apertou-lhe o braço com força:

– Você receberá esta noite uma carta minha, disse-lhe com uma voz tão alterada que era quase irreconhecível.

Essa circunstância sensibilizou imediatamente Julien.

– Meu pai, ela continuou, tem uma justa estima pelos serviços que lhe presta. Você não deve partir amanhã; encontre um pretexto. E afastou-se, correndo.

Seu corpo era encantador. Era impossível ter um pé mais bonito, ela corria com uma graça que arrebatou Julien. Mas podemos adivinhar qual foi seu segundo pensamento depois que ela desapareceu completamente: ele ficou ofendido com o tom imperativo com que ela dissera a palavra deve. Também Luís XV, no momento de morrer, ficou vivamente ofendido com a palavra deve, inabilmente empregada por seu primeiro médico, e Luís XV não era alguém que subiu na vida.
Uma hora depois, um lacaio entregava uma carta a Julien; era simplesmente uma declaração de amor.
Não há muita afetação no estilo, pensou Julien, buscando por suas observações literárias conter a alegria que lhe contraía as faces e o forçava a rir contra a vontade.
Enfim, eu, exclamou de repente, a paixão sendo demasiado forte para ser contida, eu, um pobre camponês, tenho uma declaração de amor de uma grande dama!
Quanto a mim, comportei-me bem, acrescentou, comprimindo sua alegria o máximo possível. Soube conservar a dignidade de meu caráter, nunca disse que a amava. Pôs-se a examinar a forma das letras; a srta. de La Mole tinha uma bela escrita à inglesa. Ele tinha necessidade de uma ocupação física para distrair-se de uma alegria que chegava quase ao delírio.
“Sua partida me obriga a falar... Estaria acima de minhas forças não tornar a vê-lo.”
Um pensamento assaltou Julien como uma descoberta, interrompendo o exame que fazia da carta de Mathilde e redobrando sua alegria. Levo a melhor sobre o marquês de Croisenois, exclamou, eu, que só digo coisas sérias! E ele é tão bonito! Tem bigode, um lindo uniforme; sempre encontra para dizer, no momento certo, uma frase inteligente e fina.
Julien teve um instante delicioso; vagava ao acaso pelo jardim, louco de felicidade.
Mais tarde, subiu a seu escritório e fez-se anunciar nos aposentos do sr. de La Mole, que felizmente não havia saído. Provou-lhe facilmente, mostrando-lhe alguns papéis selados chegados da Normandia, que o cuidado dos processos normandos o obrigava a adiar sua partida para o Languedoc.

– Fico muito contente que não parta, disse-lhe o marquês, quando terminaram de falar de negócios, gosto de vê-lo. Julien saiu; essa frase o constrangeu.

E vou seduzir a filha dele! Tornar impossível esse casamento com o marquês de Croisenois que é o encanto de seu futuro! Se ele não vier a ser duque, ao menos a filha terá um assento junto ao rei. Julien chegou a pensar em partir para o Languedoc apesar da carta de Mathilde, apesar da explicação dada ao marquês. Esse lampejo de virtude não tardou a desaparecer.
omo sou bom, pensou; eu, plebeu, ter piedade de uma família dessa condição! Eu, que o duque de Chaulnes chama um criado! De que maneira o marquês aumenta sua imensa fortuna? Vendendo títulos de renda, quando toma conhecimento no palácio de que, no dia seguinte, pode haver um golpe de Estado. E eu, lançado à última posição por uma Providência madrasta, eu, a quem ela deu um coração nobre e privou de renda, isto é, de pão, exatamente falando, de pão; eu, recusar um prazer que se oferece! Uma fonte límpida que vem estancar minha sede no deserto ardente da mediocridade que atravesso com tanta dificuldade! Por Deus, não serei tão tolo; cada um por si nesse deserto de egoísmo que se chama a vida.
E lembrou-se de alguns olhares cheios de desdém a ele dirigidos pela sra. de La Mole e sobretudo por suas amigas damas.
O prazer de triunfar do marquês de Croisenois veio completar a derrota daquele lampejo de virtude.
Como gostaria que ele se zangasse!, disse Julien; com que segurança eu lhe daria agora um golpe de espada. E fez com a mão o gesto do golpe. Antes disso, eu era um fâmulo que abusava de um pouco de coragem. Depois dessa carta, sou seu igual.
Sim, dizia a si mesmo com uma volúpia infinita e falando lentamente, nossos méritos, do marquês e meus, foram pesados, e o pobre carpinteiro do Jura venceu.
Bem!, exclamou, aqui está a assinatura de minha resposta. Não vá pensar, srta. de La Mole, que esqueço minha condição. Farei que compreenda e sinta claramente que é pelo filho de um carpinteiro que trai um descendente do famoso Guy de Croisenois, que acompanhou são Luís na Cruzada.
Julien não conseguia conter sua alegria. Sentiu necessidade de descer até o jardim. Seu quarto, onde se encerrara à chave, parecia-lhe demasiado estreito para respirar.
Eu, um pobre camponês do Jura, ele não cansava de repetir, eu, condenado a vestir sempre este triste hábito preto! Ai! Vinte anos mais cedo, teria usado o uniforme como eles! Naquele tempo, um homem como eu era morto ou virava general aos trinta e seis anos de idade. Aquela carta, que ele mantinha apertada na mão, dava-lhe o porte e a atitude de um herói. Agora, é verdade, com este hábito preto, aos quarenta anos de idade tem-se um ordenado de mil francos e a condecoração da fita azul, como o bispo de Beauvais.
Pois bem!, disse, rindo como Mefistófeles, tenho mais inteligência que eles; sei escolher o uniforme do meu século. E sentiu crescer sua ambição e seu apego ao hábito eclesiástico. Quantos cardeais de origem mais humilde que a minha e que governaram! Meu compatriota Granvelle, por exemplo.
Aos poucos, a agitação de Julien acalmou-se, a prudência voltou à tona. Disse a si mesmo, como seu mestre Tartufo, cujo papel sabia de cor:

Pode haver nessas palavras um artifício honesto.
(...)
Não confiarei em declarações tão doces
Até que algum de seus favores, pelos quais suspiro,
Venha assegurar-me do que elas me disseram.

Tartufo, ato IV, cena V.

Tartufo também foi iludido por uma mulher, e ele valia tanto quanto outro qualquer... Minha resposta poderá ser mostrada... para isso tenho um remédio, acrescentou, pronunciando lentamente e com o acento da ferocidade contida; começaremos pelas frases mais vivas da carta da sublime Mathilde.
Sim, mas quatro lacaios do sr. de Croisenois lançam-se sobre mim e arrancam-me o original.
Não, pois estou bem armado, e sabem que costumo disparar contra os lacaios.
Pois bem: um deles tem coragem, precipita-se sobre mim. Prometeram-lhe um bom dinheiro. Mato-o ou firo-o, é o que eles querem. Jogam-me na prisão muito legalmente; sou entregue à polícia correcional e enviado, com toda a justiça e a equidade dos juízes, a fazer companhia, em Poissy, aos srs. Fontan e Magalon. Lá, deito-me ao lado de quatrocentos miseráveis... E terei piedade dessa gente?!, exclamou, levantando-se impetuosamente. Essa frase foi o último suspiro de seu reconhecimento pelo sr. de La Mole que, contra sua vontade, o atormentava até então.
lto lá, senhores fidalgos, conheço esse traço de maquiavelismo; o padre Maslon e o sr. Castanède do seminário não teriam feito melhor. Os senhores me furtarão a carta provocadora e serei uma nova versão do coronel Caron em Colmar.
Um instante, senhores, vou enviar a carta fatal num envelope bem lacrado ao abade Pirard. É um homem honesto, jansenista e, nessa qualidade, imune às seduções do dinheiro. Sim, mas ele abre as cartas... é a Fouquet que devo enviá-la.
É preciso admitir: o olhar de Julien era atroz, em sua fisionomia medonha transparecia o crime em estado puro. Era o homem infeliz em guerra contra toda a sociedade.

– Às armas!, exclamou Julien. E, num salto, desceu os degraus da escadaria da mansão. Entrou na quitanda do escrivão da esquina. Copie, disse-lhe, entregando a carta da srta. de La Mole.

Enquanto o escrivão trabalhava, ele próprio escreveu a Fouqué; pedia-lhe para conservar-lhe um depósito precioso. Mas, pensou, interrompendo-se, a censura do correio abrirá minha carta e vos entregará, senhores, aquela que procuram... Não. Ele foi comprar uma enorme Bíblia num livreiro protestante, escondeu com muito cuidado a carta de Mathilde na capa, mandou embalar tudo e seu pacote partiu com a diligência, endereçado a um dos operários de Fouqué, cujo nome ningém conhecia em Paris.
Feito isso, retornou alegre e lépido à mansão de La Mole. Agora nós! exclamou, trancando-se à chave no quarto e despindo-se de seu hábito.
“Como! senhorita”, escreveu a Mathilde, “é a srta. de La Mole que, pelas mãos de Arsène, lacaio de seu pai, manda entregar uma carta muito sedutora a um pobre carpinteiro do Jura, certamente para divertir-se com sua simplicidade?...” E transcreveu as frases mais claras da carta que acabava de receber.
A dele seria digna da prudência diplomática do cavaleiro de Beauvoisis. Não eram ainda dez da noite; Julien, ébrio de felicidade e do sentimento de seu poder, tão novo para um pobre-diabo, foi assistir a uma ópera italiana. Ouviu seu amigo Geronimo cantar. Nunca a música o exaltara tanto. Ele era um deus.



continua página 227...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Complô (XIII)


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