sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O Brasil Nação - V2: § 88 – Sob a ignomínia política, a miséria do povo - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 88 – Sob a ignomínia política, a miséria do povo


Na luz ofuscante da terra pátria, como fundo vivo de tradições constantemente contrariadas, um povo apagado, deprimido sob um século de esperanças mortas, singela melancolia, que só o coração aviventa. É a própria substância da nação brasileira. Em reverso de miséria, o estado da massa popular explica-se pela degradação dos dirigentes: fúria de desejos materiais, sugestões de cobiça, embate de egoísmos grosseiros... depressão de apetites saciados, ou desfalecimentos de vontades, no despeito de ambições insatisfeitas... deposita-se em vasa, onde afundou toda a nobreza das consciências dominantes, e sobre a qual há de decantar-se um povo esgotado, pois que a vida lhe tem sido o perpétuo labor de pariá, a nutrir a renascente infecção. Nesse trama em que o mantêm dominado, o povo brasileiro dá ideia de qual humanidade larvar, que um destino mau retém, a não deixar elevar-se para as formas realmente humanas, socialmente evoluídas. No entanto, na sua espontânea cordialidade, esses humildes irradiam vida. Não têm formas para impô-la; não sabem, mesmo, que têm o supremo direito a uma existência superiormente definida; não lhes veio, ainda, a legítima ânsia de reivindicação; mas, na expansão afetiva lhe palpita a própria essência da vida social. Mantê-lo, ainda, na ignomínia; acreditar que é possível negar-lhe eternamente o caminho na insofismável ascensão; esse é o crime estúpido, por que os nossos dirigentes pagarão caro. Pobre povo! Tão naturalmente simples na grandeza destas paisagens! Pobres gentes, essencialmente boas, para aceitar a secular espoliação que as avilta! Na sua tranquila cordialidade de agora, esse pobre povo apenas insinua implícita súplica de viver: mas, será eternamente assim?... E não se sentem infamemente criminosos, tais dirigentes, que só podem governar sobre o absoluto amesquinhamento das populações?...

Feito nos transes do doloroso cativeiro de duas raças, aproveitadas pelo senhor até para dar-lhe prole, o povo, nesta pátria, ainda teve coração para ser o ambiente de meiguice em que fomos recebidos e ainda vivemos. No entanto, fusão de martírios, a esse povo veio a consciência como percepção do domínio mais hediondo, pelos mais odientos mandões de que a espécie humana tem sofrido; e as almas se definiram, então, na reação de afetos contra o cativeiro. E o coração brasileiro, ferido pelo mal, foi generoso e bom. Por isso mesmo, na contemplação desse povo inexoravelmente deixado à insuficiência, à ignorância e ao atraso; e, ainda assim, sugado sempre, cada vez mais tiranizado e desprezado pela bestialidade dominante; fremem todos os nervos, e esvai-se o coração, já condoído, já revoltado. De fato, por fora dos governantes, que são os brasileiros? Politicamente, serviço e prestígio de São Paulo e Minas; economicamente, insuficiência de meios, para um labor que mal permite viver, entre a fiscalidade escorchante, o mercantilismo de ultramar, e as multiplicadas grandes empresas a que o Brasil foi doado. Então, na sombria perspectiva traçada nos dirigentes, o povo nem aparece. No entanto, realidade de sempre, ele é uma grandeza, a única esperança para os que ainda admitem um futuro digno. Sim: trinta e seis milhões de criaturas, que, finalmente, são as que trabalham... Isto é alguma coisa. Mal se explica o amesquinhamento atual; mal se explicaria, se não soubéssemos como até agora, esse povo, que é a própria nação brasileira, tem sido, apenas, o manso e ignaro rebanho, desleitado e tosquiado, pelos três ou quatro milhares de politicantes, e as centenas de mil outros parasitas, senhores da produção, carrapatos sobre a distribuição da mesma produção.

O amesquinhamento do Brasil é essa mesma degradação dos dirigentes, dominando o aviltamento do povo. As sociedades modernas valem pelo pensamento, para o bem, para o mal. E nós valemos como um país cujos dirigentes só se definem pela incapacidade, e cuja massa se conserva, sistematicamente, no embrutecimento preciso para a supremacia da mesma incapacidade. De tal sorte, só subsiste a nação, em nominal soberania, porque a condição de ser americana a garante. Fosse outra a sua situação no mundo, em imediata competência com os povos válidos, e teríamos perdido até o nome. O Brasil é um mundo fechado à verdadeira atividade social e de pensamento, isolado, sequestrado num mentalismo arcaico, na inumana aridez de um coimbrismo regredido da própria Coimbra de 1800. Temos vivido em constância de governos garantidos pela placidez das populações, dirigidos numa política depravada na exploração da mesma placidez, e que, assim depravada, há um século intenta fazer uma nação sem povo, para perpetuidade do bragantismo que nos dirigentes se continua. Em verdade, a massa da nação brasileira é uma, e a gestão política é outra, nunca em relação de existência com a alma nacional. Nem o concreto da vida popular existe para os dirigentes, que ignoram o próprio povo, como tudo o mais, indispensável para fazer o conveniente governo do país. E por que sejam em tudo domínio torpe, eles ainda malsinam e infamam essa pobre população de quem são feitores, prontos a fuzilá-la, quando ela se mostra na única atividade social que lhe é deixada: a do cangaceirismo. Koster, que tão bem conheceu aqueles humildes valentes, periodicamente levantados em jagunços e fanáticos, logo o notou: “São as más instituições feitas às gentes, as más paixões, desencadeadas em correrias”. De fato: o cangaceirismo é a reação, mórbida, se quiserem, mas inevitável, numa população forte e a quem a ordem normal nenhuma possibilidade oferece de boa atividade social e política. Nas suas insulsas e insinceras parolagens, eles, dirigentes, insistentemente falam do povo, mas tudo não passa de expressão vazia, ou ensejo de menosprezo, pois que, de fato, eles só pensam em povilhéu-escória, apenas ubre que os nutra. Não lhe perdoariam qualquer pretensão a ter voz efetiva na gerência do Estado, e, menos ainda, o desejo de reivindicar direitos, em vista da justiça. Nem compreenderão como um simples filósofo da história pode definir: “Sob o nome amesquinhado de povo, expande-se, livre de qualquer tara, a coleção que um dia formará a humanidade superior” (Coste).

No entanto, este é bem o nosso caso. Então, já não se trata de conceder, como em generoso perdão, que o povo brasileiro aspire a viver em livre justiça, mas de reconhecer que a essência da nacionalidade está nele, representando, com isto, o supremo direito nesta pátria. Três séculos de bestial exploração, através de dores incompensáveis, sob a ignomínia da estupidez má: isto, sim, é que há para ser perdoado. E só a infinita compaixão de quem conhece todas as formas de sofrer, poderá lançar o perdão necessário. Uma pátria existe em consciências que a incorporam; uma nação vive numa massa, coletividade pensante, tradicionalmente solidária, e cujos sentimentos lhe definem o caráter. Ora, o Brasil só aparece nos seus dirigentes, mas, estes, patentes, sobretudo, de incapacidade, são vazios de significação humana, nulos como caracterização nacional. Destarte, se há um Brasil, humanamente definido, é na alma popular que o encontramos. Inconscientemente heroico, em face da mísera condição da existência a que o condenam, esse povo, inspirado do coração, será grandeza quando tiver a plena consciência da sua força, em luz de pensamento. Amesquinhado em pariá, desacompanhado de toda sistemática ação educativa, apenas tentado pelo exemplo de dirigentes túrgidos no gozo, ainda ele guarda a imperecível tendência de aperfeiçoamento, virtude que, em contraste com a política governante, o leva a elaborar sentimentalismo nacional, essencial energia da alma de um Brasil que deve perdurar.

E, paradoxo alucinante: quando de cima o afundam, com ele aviltando a nação, o anônimo brasileiro, em espontânea reação, eleva e apura os afetos em torno desta pátria, apesar de representada na torpeza dominante. Com isto, ele tem de realizar um esforço que já é sacrifício: sente intensamente a alma da nação, e deve alhear-se da sua vida política. É essa mesma indiferença a que o condenam, e que, sendo indiferença, tanto dói, como pesa a neutralidade em que o abandonam, como sagrado direito de ter uma opinião. E a vida pública, sombria escola de pessimismo para os sinceros, deixa como resíduo melhor essa névoa de melancolia em que nos arrastamos.

Há decênios, já, que a nação brasileira lateja nesse desalento, temperado ou compensado, apenas, pelos materialismos, caros aos dirigentes: pode, um tal viver perpetuar-se? Assim abandonado, o povo nada espera dos que governam, senão o mal; não admite virtude nos homens públicos, nem conhece neles outro valor, além do que os mantém na exploração do mando. Resultado: o povo, tanto quanto compreende a vida política, condena-a, e com toda a abundância da alma despreza o mundo dos dirigentes. É a justa e fatal reação contra o desdém em que o amesquinham. Ora, uma nação não pode fazer verdadeiro progresso quando são esses os seus constantes influxos sociais e políticos, tudo condensado num generalizado desprezo pela obra dos governantes, desprezo que já é asco, e que, amanhã, será absoluta incompatibilidade. No entanto, nesse povo, cuja fórmula psicológica ainda não foi bem definida, tal desprezo chega a ser dignificante, promissor... Não se prevêm, ainda, os processos, mas, a última esperança está, já o notamos, nessa mesma energia virgem da massa anônima. Há sessenta anos, gritou-lhe o poeta: Sansão! derroca as colunas!... Sansão continua cego, e como a sua força tem de ser luz, há que abrir-lhe os olhos; a sua frouxidão de desprezo será arrojo de realização e, como vida a refazer-se na própria essência, veremos subir o fluxo de energia popular, intacta e pura, bondade forjada no sofrimento, a fazer a legítima política da cordial solidariedade. Nem se compreende que, na terra americana, possa existir a plenitude de uma nação, sem tirar vida das camadas fecundas, em legítimas forças sociais. Resta apenas, para tanto, que se revelem essas mesmas energias: abrir os olhos a Sansão.

A República é uma mentira porque não há povo, todos o repetem. Sim. E a democracia não é possível porque a massa da nação não a compreende, para saber realizá-la. Nem teremos liberdade, enquanto não houver uma maioria com o preparo e a educação política precisas num regime efetivamente livre; nem se farão legítimas campanhas em prol da justiça, se ainda não é possível, ainda, concebê-las e defini-las. Justa apreciação e sincero aproveitamento da espontânea bondade do povo, uma instrução fecunda, que lhe atice a natural inteligência e a guarneça, e teremos o Brasil que afrontará, confiante, todas as vicissitudes. Para tanto, porém, é preciso uma direção política superior aos materialismos e outros critérios vis. Se faltam cidadãos para uma República, se faltam, ao país, homens em valor humano, procuremos formá-los. É a suprema virtude da educação: pode sempre, de uma criatura normal, fazer um indivíduo inteligentemente produtor e moralmente disciplinado para uma vida livre. Contemos, no entanto, que não é em resignação que se fará essa obra regeneradora; é, sim, extraindo dos caracteres toda força de que são dotados, e pedindo à inteligência a grande e miraculosa força do pensamento. Síntese de todas as energias que nos impressionam, o pensamento é o fiat no progresso humano. Cada ciência, um potencial à nossa disposição; e assim se justifica o aforismo de Ed. About: “Quanto mais sabemos, mais podemos...” De fato, só desse modo assistido, pode o homem enfrentar o destino, e lutar vantajosamente contra o próprio peso das materialidades. Então, os tempestuosos desejos, em ânsia de vida, sublimam-se para o inesgotável das esperanças, vivazes apesar das inevitáveis desilusões, como íntima harmonia de aspirações em que o homem se eleva da animalidade.




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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