quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (g)

    Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica



A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A
MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL


INVASÃO CULTURAL


Finalmente, surpreendemos na teoria da ação anti-dialógica, uma outra característica fundamental, – a invasão cultural que, como as duas anteriores, serve à conquista.

Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua expansão.

Neste sentido, a invasão cultural, indiscutivelmente alienante, realizada maciamente ou não, é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê ameaçado de perdê-la.

Por isto é que, na invasão cultural, como de resto em todas as modalidades da ação antidialógica, os invasores são os autores e os atores do processo, seu sujeito; os invadidos, seus objetos. Os invasores modelam; os invadidos são modelados. Os invasores optam; os invadidos seguem sua opção. Pelo menos é esta a expectativa daqueles. Os invasores atuam; os invadidos têm a ilusão de que atuam, na atuação dos invasores.

A invasão cultural tem uma dupla face. De um lado, é já dominação; de outro, é tática de dominação.

Na verdade, toda dominação implica numa invasão, não apenas física, visível, mas às vezes camuflada, em que o invasor se apresenta como se fosse o amigo que ajuda. No fundo, a invasão é uma forma de dominar econômica e culturalmente ao invadido.

Invasão realizada por uma sociedade matriz, metropolitana, numa sociedade dependente, ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra, numa mesma sociedade.

Como manifestação da conquista, a invasão cultural conduz à inautenticidade do ser dos invadidos. O seu programa responde ao quadro valorativo de seus atores. A seus padrões, a suas finalidades.

Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica e ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da realidade e dos próprios conteúdos programáticos dos invadidos.

Aos invasores, na sua ânsia de dominar, de amoldar os invadidos a seus padrões, a seus modos de vida, só interessa saber como pensam os invadidos seu próprio mundo para dominá-los mais.
[1]

[1] Para este fim, os invasores se servem, cada vez mais, das ciências sociais e da tecnologia, como já agora das naturais.
É que a invasão, na medida em que é aço cultural, cujo caráter induzido permanece como sua conotação essencial, não pode prescindir do auxilio das ciências e da tecnologia com que os invasores melhor atuam. Para eles se faz indispensável o conhecimento do passado e do presente dos invadidos, através do qual possam determinar as alternativas de seu futuro e, assim, tentar a sua condução no sentido de seus interesses.

É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam a sua realidade com a ótica dos invasores e não com a sua. Quanto mais mimetizados fiquem os invadidos, melhor para a estabilidade dos invasores.

Uma condição básica ao êxito da invasão cultural é o conhecimento por parte dos invadidos de sua inferioridade intrínseca. Como não há nada que não tenha seu contrário, na medida em que os invadidos vão reconhecendo- se “inferiores”, necessariamente irão reconhecendo a “superioridade” dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo.

O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da cultura invadida.

É esta dualidade, já várias vezes referida, a que explica os invadidos e dominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um eu quase “aderido" ao tu opressor.

É preciso que o eu oprimido rompa esta quase “aderência” ao tu opressor, dele “afastando-se”, para objetivá-lo, somente quando se reconhece criticamente em contradição com aquele.

Esta mudança qualitativa da percepção do mundo, que não se realiza fora da práxis, não pode jamais ser estimulada pelos opressores, como um objetivo de sua teoria da ação.

Pelo contrário, a manutenção do states quo é o que lhes interessa, na medida em que a mudança na percepção do mundo, que implica, neste caso, na inserção critica na realidade, os ameaça. Daí, a invasão cultural como característica da aço antidialógica.

Há, contudo, um aspecto que nos parece importante salientar na análise que estamos fazendo da ação anti-dialógica. É que esta, enquanto modalidade de aço cultural de caráter dominador, nem sempre é exercida deliberadamente. Em verdade, muitas vezes os seus agentes são igualmente homens dominados; “sobredeterminados” pela própria cultura da opressão .
[2]

[2] A propósito de dialética da sobredeterminação, ver Louis Althusser, Pour Marx, Paris, Maspero, 1967

Com efeito, na medida em que uma estrutura social se denota como estrutura rígida, de feição dominadora, as instituições formadoras que nela se constituem estarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos e orientando sua aço no estilo próprio da estrutura.

Os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições objetivas estruturais.

As relações pais -filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo- culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram nos lares que incrementam o clima da opressão.
[3]

[3] O autoritarismo dos pais e dos mestres se desvela cada vez mais aos jovens como antagonismo à sua liberdade. Cada vez mais, por isto mesmo, a juventude vem se opondo às formas de ação que minimizam sua expressividade e obstaculizam sua afirmação. Esta, que, é uma das manifestações positivas que observamos hoje, não existe por acaso. No fundo, é um sintoma daquele clima histórico ao qual fizemos referência no primeiro capítulo deste ensaio, como caracterizador de nossa época, como uma época antropológica. Por isto é que a reação da juventude não pode ser vista a não ser interessadamente, como simples indício das divergências geracionais que em todas as épocas houve e há. Na verdade, há algo mais profundo. Na sua rebelião, o que a juventude denuncia e condena é o modelo injusto da sociedade dominadora. Esta rebelião, contudo, com o caráter que tem, é muito recente. O caráter autoritário perdura.

Quanto mais se desenvolvem estas relações de feição autoritária entre pais e filhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridade paterna.

Discutindo, com a clareza que o caracteriza, o problema da necrofilia e da biofilia, Fromm analisa as condições objetivas que geram uma e outra, quer nos lares, nas relações pais-filhos, no clima desamoroso e opressor, como amoroso e livre, quer no contexto sociocultural.

Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, frustradas na sua potência, como diria Fromm, se não conseguem, na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seu querer, alienados à autoridade e aos mitos de que lança mão esta autoridade para formá-las, ou poderão vir a assumir formas de ação destrutiva.

Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela, os educandos cedo descobrem que, como ao lar, para conquistar alguma satisfação, têm de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não pensar.

Introjetando a autoridade paterna através de um tipo rígido de relações, que a escola enfatiza, sua tendência, quando se fazem profissionais, pelo próprio medo da liberdade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos em que se deformaram.

Isto, associado à sua posição classista, talvez explique a adesão de grande número de profissionais a uma ação antidialógica.
[4]

[4] Talvez explique também a antidialogicidade daqueles que, embora convencidos de sua opção revolucionária, continuam, contudo, descrentes do povo, temendo a comunhão com ele. É que, sem o perceber, mantêm dentro de si ainda, o opressor. Na verdade, temem a liberdade, na medida em que hospedam o “senhor”.

Qualquer que seja a especialidade que tenham e que os ponha em relação com o povo, sua convicção quase inabalável é a de que lhes cabe “transferir” ou “levar”, ou “entregar” ao povo os seus conhecimentos, as suas técnicas.

Veem-se, a si mesmos, como os promotores do povo. Os programas da sua ação, como qualquer bom teórico da ação opressora indicaria, involucram as suas finalidades, as suas convicções, os seus anseios.

Não há que ouvir o povo para nada, pois que, “incapaz e inculto, precisa ser educado por eles para sair da indolência que provoca o subdesenvolvimento”.

Para eles, a “incultura do povo é tal ‘que lhes’ parece um absurdo falar da necessidade de respeitar a “visão do mundo” que ele esteja tendo. Visão do mundo têm apenas os profissionais”...

Da mesma forma, absurda lhes parece a afirmação de que é indispensável ouvir o povo para a organização do conteúdo programático da ação educativa. É que, para eles, “a ignorância absoluta” do povo não lhe permite outra coisa senão receber os seus ensinamentos.




continua página 089...

_______________




PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


___________________


Leia também:

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (1)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (2)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (3)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (4)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (5)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (6)
Pedagogia do Oprimido - Primeiras Palavras
Pedagogia do Oprimido - 1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (1)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (2)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (3)
Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Opressores (4)
Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Oprimidos (5)
Pedagogia do Oprimido - Ninguém Liberta Ninguém, Ninguém se Liberta Sozinho (6)
Pedagogia do Oprimido - 2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão.
Pedagogia do Oprimido -  A Contradição Problematizadora e Libertadora da Educação. Seus Pressupostos (1)
Pedagogia do Oprimido -  A Contradição Problematizadora e Libertadora da Educação. Seus Pressupostos (2)
Pedagogia do Oprimido -  Ninguém Educa Ninguém (3)
Pedagogia do Oprimido -  Ninguém Educa Ninguém (4)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade...
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... Educação dialógica e diálogo
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... O diálogo começa na busca do conteúdo programático
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... As relações homem-mundo, os temas geradores
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A investigação dos temas geradores e sua metodologia
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (a)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (b)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (c)
Pedagogia do Oprimido -  3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (d)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (a)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (b)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (c)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (d)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (e)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (f)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (g)
Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (h)
___________________


© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
-371.332
77-0064 CDD-371.3:376.76

___________________

Direitos adquiridos pela
EDITORA PAZ E TERRA S/A
Rua do Triunfo, 177
01212 – São Paulo, SP
Tel. (011) 223- 6522
Rua São José, 90 – 11º andar
20010 – Rio de Janeiro, RJ
Tel. (021) 221- 4066

Conselho Editorial
Antonio Candido
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso
(licenciado)
1994

___________________


Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


Nenhum comentário:

Postar um comentário