terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (3)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


4..


continuando...


Sempre existiu censura, mas por um longo tempo ela permaneceu incoerente, ao sabor do capricho dos generais e dos chefes de Estado. A primeira proibição organizada da fotografia jornalística no front ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial; os alto-comandos da Alemanha e da França só permitiam a presença de uns poucos fotógrafos militares escolhidos, perto da zona de combate. (A censura à imprensa feita pelo Estado-Maior inglês era menos inflexível.) E foram necessários outros cinquenta anos, e o relaxamento da censura durante a primeira guerra em que houve cobertura feita pela tevê, para compreender o impacto que fotos chocantes podiam produzir no público doméstico. Na era do Vietnã, a fotografia de guerra tornou-se, como norma, uma crítica à guerra. Isso estava fadado a ter consequências: os meios de comunicação dominantes não têm nenhum interesse em fazer as pessoas sentirem engulhos diante das lutas para as quais estão sendo mobilizadas, muito menos em disseminar propaganda contra a guerra.

Desde essa época, a censura — o tipo mais difundido, a autocensura, bem como a censura imposta pelos militares — encontrou defensores influentes e numerosos. No início da campanha britânica nas Ilhas Falkland, em abril 1982, o governo de Margareth Thatcher garantiu acesso apenas a dois fotojornalistas — entre os recusados estava um mestre da fotografia de guerra, Don McCullin —, e só três lotes de filmes chegaram a Londres antes de as ilhas serem retomadas, em maio. Nenhuma transmissão direta pela tevê foi permitida. Desde a Guerra da Criméia, não se haviam registrado tantas restrições na cobertura de uma operação militar britânica. Revelou-se mais difícil para as autoridades americanas repetir o controle de Thatcher sobre a cobertura de suas próprias aventuras no exterior. O que os oficiais americanos fomentaram durante a Guerra do Golfo, em 1991, foram imagens da tecnoguerra: o céu, acima das pessoas que morriam, repleto dos rastros luminosos dos mísseis e das bombas — imagens que ilustravam a absoluta superioridade militar americana sobre o inimigo. Os espectadores da tevê americana não tiveram autorização de ver um filme comprado pela NBC (e que a cadeia de emissoras, depois, se recusou a exibir), que mostrava o que essa superioridade podia desencadear: o destino de milhares de recrutas iraquianos que, depois de fugirem da capital do Kuwait no fim da guerra, no dia 27 de fevereiro, foram bombardeados exaustivamente com explosivos, napalm, bombas radioativas de urânio empobrecido e bombas de fragmentação, enquanto seguiam para o norte, em comboios de veículos e a pé, pela estrada para Basra, no Iraque — um massacre que recebeu, de um oficial americano, o nome tristemente famoso de “tiro ao alvo nos patinhos”. E a maioria das ações americanas no Afeganistão, no fim de 2001, se deu fora do alcance dos novos fotógrafos.

Os critérios para o uso de câmeras no front com fins não militares tornaram-se muito mais restritivos, ao passo que a guerra tornou-se uma atividade levada a efeito com a ajuda de equipamentos óticos de precisão crescente, para localizar o inimigo. Não existe guerra sem fotografia, observou o notável esteta da guerra Ernst Jünger em 1930, refinando dessa maneira a irreprimível identificação da câmera com a arma: “disparar” a máquina fotográfica apontada para um tema e disparar a arma apontada para um ser humano. Guerrear e fotografar são atividades congruentes: “É a mesma inteligência, cujas armas de aniquilação são capazes de localizar o inimigo com exatidão de metros e de segundos”, escreveu Jünger, “que se empenha a fim de preservar o importante acontecimento histórico em detalhes nítidos”.
[1]

[1] Desse modo, treze anos antes da destruição de Guernica, Arthur Harris, mais tarde chefe do Comando de Bombardeios da Real Força Aérea Britânica durante a Segunda Guerra Mundial, e na época um jovem líder de esquadrilha no Iraque, definiu a campanha aérea para esmagar os nativos rebeldes naquela colônia inglesa recém adquirida, coroada com provas fotográficas do sucesso da missão. “Os árabes e os curdos”, escreveu em 1924, “sabem agora o que significa um verdadeiro bombardeio em termos de baixas e de danos materiais; sabem agora que, em 45 minutos, uma povoação de bom tamanho (vide as fotos em anexo de Kushan-Al-Ajaza) pode ser praticamente varrida do mapa e um terço de seus habitantes pode ser morto por quatro ou cinco aparelhos que não lhes oferecem um verdadeiro alvo, nenhuma chance de glória como guerreiros e nenhum meio eficaz de fuga.”

A atual maneira americana predileta de guerrear desenvolveu-se à luz desse modelo. A televisão, cujo acesso ao local dos acontecimentos é limitado pelos controles do governo e pela autocensura, oferece a guerra como imagens. A guerra propriamente dita é travada, o máximo possível, à distância, mediante bombardeios, cujos alvos podem ser escolhidos, com base em informações transmitidas instantaneamente e com tecnologia de visualização, em lugares a continentes de distância: as operações diárias de bombardeio no Afeganistão, no fim de 2001 e no início de 2002, foram dirigidas do Comando Central americano em Tampa, na Flórida. O objetivo é causar ao inimigo um número de baixas suficientemente punitivo e, ao mesmo tempo, reduzir ao mínimo as oportunidades do inimigo para infligir baixas, quaisquer que sejam; os soldados americanos e aliados que morreram devido a acidentes com viaturas ou ao “fogo amigo” (este é o eufemismo) são baixas, mas ao mesmo tempo não são.

Na era da guerra tele monitorada contra os inumeráveis inimigos do poder americano, as normas reguladoras do que deve e do que não deve ser visto ainda estão sendo elaboradas. Os produtores de programas jornalísticos na tevê e os editores de fotografia das revistas e dos jornais tomam, todos os dias, decisões que consolidam o instável consenso acerca dos limites do conhecimento do público. Muitas vezes suas decisões são cunhadas como julgamentos a respeito do “bom gosto” — sempre um critério repressivo quando invocado por instituições. Permanecer dentro dos limites do bom gosto foi a razão primária apresentada para não exibir nenhuma das horripilantes imagens dos mortos colhidas no local do atentado contra o World Trade Center, logo após o ataque no dia 11 de setembro de 2001. (Os jornais sensacionalistas, em formato tabloide, são em geral mais atrevidos do que os jornais sérios, em formato grande, quando se trata de imprimir imagens sinistras; a foto da mão amputada de um homem sobre uma pilha de entulho do World Trade Center saiu em uma edição tardia do Daily News, de Nova York, pouco depois do atentado; aparentemente não foi publicada em nenhum outro jornal.) E os noticiários de tevê, com seu público muito mais amplo e, portanto, muito mais receptivos às pressões dos anunciantes, trabalham sob uma coerção ainda mais rigorosa e, em sua maior parte, autopoliciada quanto ao que é “adequado” para ir ao ar. Essa nova insistência no bom gosto em uma cultura saturada de estímulos comerciais em favor de padrões de gosto mais baixos pode ser algo intrigante. Mas faz sentido se entendida como um ocultamento de uma infinidade de preocupações e de anseios a respeito da ordem pública e da moral pública que não podem ser explicitados, e também como uma indicação da incapacidade de apresentar ou defender de outra maneira as convenções tradicionais relativas ao modo de prantear os mortos. O que se pode mostrar, o que não se deveria mostrar — poucas questões suscitam um clamor público mais forte.

O outro argumento muitas vezes empregado para suprimir imagens evoca o direito dos parentes. Quando um semanário de Boston difundiu na internet um vídeo de propaganda feito no Paquistão que mostrava a “confissão” (de que ele era judeu) e o subsequente ritual de execução do jornalista americano sequestrado Daniel Pearl, em Karachi, no início de 2002, ocorreu um veemente debate no qual o direito da viúva de Pearl de ser poupada de mais sofrimento foi brandido contra o direito do jornal de imprimir ou difundir pela internet aquilo que julgasse adequado, e contra o direito do público de ver as imagens. O vídeo foi rapidamente retirado do ar. O notável é que ambos os lados trataram os três minutos e meio de horror como se fosse apenas um tipo de filme pornô e sádico que mostra, no fim, a morte real de um dos atores. Ninguém poderia, com base apenas no debate, saber que o vídeo continha ainda outra sequência, uma montagem de acusações muito batidas (por exemplo, imagens de Ariel Sharom em companhia de George W. Bush na Casa Branca, crianças palestinas mortas em ataques israelenses), que o vídeo representava uma diatribe política e terminava com ameaças medonhas e uma lista de exigências específicas — coisas, talvez, capazes de sugerir que valia a pena sofrer e ver o vídeo até o fim (se a pessoa conseguisse suportar) para entender melhor a perversidade e a intransigência incomuns das forças que assassinaram Pearl. É mais fácil pensar no inimigo apenas como um selvagem que mata e depois levanta a cabeça de sua vítima para que todos vejam.


continua pág 189...


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Leia também:


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


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