Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1
1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
PRIMEIRA PARTE
XXXII – LUÍSA DE MACUMER A RENATA DE L’ESTORADE
Março de 1826 [1]
Como, querida, faz mais de três meses que não te escrevo e que não recebo carta tua... Sou a mais culpada das duas, pois não te respondi; mas, que eu saiba, não és suscetível. Teu silêncio foi interpretado por Macumer e por mim como uma adesão ao almoço ornado de crianças, e essas encantadoras joias vão seguir hoje de manhã para Marselha; os artistas levaram seis meses para executá-las. Por isso despertei sobressaltada quando Felipe me convidou a ver esta coberta de mesa antes que o ourives a encaixotasse. Lembrei-me subitamente de que nada nos havíamos dito depois da carta em que me senti mãe contigo.
Anjo meu, minha desculpa é a terrível Paris; espero a tua. Oh! A sociedade, que abismo! Já não te disse eu que só se podia ser parisiense em Paris? Aqui a sociedade afrouxa todos os sentimentos, apodera-se de todos os nossos instantes; se nos descuidássemos, nos devoraria o coração. Que admirável obra-prima aquela criação de Celimène no Misantropo [2] de Molière! É a dama da sociedade do tempo de Luís XIV, como a de nossos dias, enfim, a dama mundana de todas as épocas. Onde estaria eu sem a minha égide, sem o meu amor por Felipe? Por isso, esta manhã, ao pensar nessas coisas eu lhe disse que ele era o meu salvador. Se minhas noites estão tomadas pelas festas, pelos bailes, pelos concertos e espetáculos, torno a encontrar na volta as alegrias do amor e suas loucuras que me fazem expandir o coração, apagando nele as picadas da sociedade. Só tenho jantado em casa quando recebemos as pessoas que consideramos amigas e só fico nos meus dias de recepção. São nas quartas-feiras. Entrei em luta com as sras. d’Espard e de Maufrigneuse, com a velha duquesa de Lenoncourt. Dizem que minha casa é divertida. Deixei que me pusessem em moda por ver o meu Felipe feliz com os meus sucessos. Reservo-lhe as manhãs, porque depois das quatro da tarde às duas da madrugada pertenço a Paris. Macumer é um admirável dono de casa: é tão espirituoso e tão grave, tão verdadeiramente grande e de uma graça tão perfeita que se faria amar por uma mulher que o tivesse desposado a princípio por conveniência. Meu pai e minha mãe partiram para Madri: falecido Luís xviii, a duquesa obteve com facilidade que o nosso bom Carlos x nomeasse o seu sedutor poeta, que ela leva na qualidade de adido. Meu irmão, o duque de Rhétoré, digna-se considerar-me como uma superioridade. Quanto ao conde de Chaulieu, esse militar de fantasia, deve-me uma eterna gratidão: minha fortuna foi empregada, antes da partida de meu pai, em lhe constituir um morgadio em terras que rendem quarenta mil francos, e seu casamento com a srta. de Mortsauf, uma herdeira da Touraine, está completamente arranjado. O rei, para não deixar extinguir-se o nome e os títulos das casas de Lenoncourt e de Givry, vai autorizar, por uma ordenança, que meu irmão herde os nomes, títulos e armas dos Lenoncourt-Givry. Como, realmente, deixar perecer esses dois belos nomes e o sublime lema: Faciem semper monstramus? [3] A srta. de Mortsauf, neta e única herdeira do duque de Lenoncourt-Givry, receberá, dizem, mais de cem mil francos de renda. Meu pai pediu somente que as armas dos Chaulieu fossem gravadas por sobre as de Lenoncourt. Assim, pois, meu irmão será duque de Lenoncourt. O jovem de Mortsauf, a quem devia tocar toda essa fortuna, está no último grau de uma doença do peito, espera-se a sua morte a todo momento. No próximo inverno, depois do luto, realizar-se-á o casamento. Terei, segundo dizem, uma cunhada encantadora na pessoa de Madalena de Mortsauf. De modo que, como vês, meu pai tinha razão na sua argumentação. Esse resultado valeu-me a admiração de muitas pessoas, e meu casamento se explica. Por afeição à minha avó, o príncipe de Talleyrand enaltece Macumer, de modo que nosso triunfo é completo. Fará em breve dois anos que reino finalmente nessa Paris onde eu nada era. Macumer vê sua felicidade invejada por todos, porquanto sou a mulher mais espirituosa de Paris. Bem sabes que há vinte das mais espirituosas mulheres de Paris. Os homens arrulham-me frases de amor ou se contentam em expressá-lo com olhares cúpidos. Há, realmente, nesse concerto de desejos e de admiração tão constante satisfação da vaidade que agora compreendo os gastos excessivos que fazem as mulheres para gozar essas frágeis e passageiras vantagens. Esse triunfo inebria o orgulho, a vaidade, o amor-próprio, enfim todos os sentimento do eu. Essa perpétua divinização embriaga tão violentamente que não me admiro mais de ver as mulheres se tornarem egoístas, esquecidas e levianas em meio dessa festa. A sociedade sobe à cabeça. Prodigalizam-se as flores do espírito e da alma, o tempo mais precioso, os mais generosos esforços, as pessoas que pagam com invejas e sorrisos, que dão a moeda falsa de suas frases, de seus cumprimentos e adulações contra os lingotes de ouro de nossa coragem, de nossos sacrifícios e de nossas invenções para nos mostrarmos belas, bem-vestidas, espirituosas, afáveis e agradáveis para todos. Sabe-se quanto esse comércio é custoso, sabe-se que nele se é roubado, mas assim. mesmo nós o fazemos. Ah! Minha bela corça, que sede se tem de um coração amigo, como são preciosos o amor e a dedicação de Felipe! Como eu o amo! Com que alegria fazemos nossos preparativos de viagem para ir repousar em Chantepleurs das comédias da rue du Bac e de todos os salões de Paris! Enfim, eu, que acabo de reler a tua última carta, terei descrito esse infernal paraíso de Paris, dizendo-te que é impossível a uma dama da sociedade ser mãe.
Até breve, querida: deter-nos-emos uma semana, quando muito, em Chantepleurs e estaremos aí contigo mais ou menos a 10 de maio. Ver-nos-emos, pois, novamente após dois anos de separação. E que mudanças! Eis-nos mulheres as duas; eu, a mais feliz das amantes, tu, a mais feliz das mães. Se não te escrevi, querido amor, não te esqueci. E meu afilhado, esse macaquinho, sempre bonito? Faz-me honra? Já deve ter mais de nove meses. Eu bem quisera assistir aos seus primeiros passos no mundo; mas Macumer disse-me que as crianças precoces somente caminham aos dez meses. Teremos, pois, daquelas nossas conversas de Blois. Verei se é como dizem, que um filho deforma o corpo.
p.s. — Se me responderes, mãe sublime, dirige tua carta a Chantepleurs; eu parto.
continua pág 319...
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[1] Notam-se, nesta carta, várias distrações do autor. Ela não pode ser de março de 1826, pois a mensagem anterior de Luísa (de nº XXX) data de janeiro; ora, ela começa afirmando que não escreve à amiga há mais de três meses. Outro engano: no fim da carta ela calcula a idade do afilhado em mais de nove meses, mas, segundo fomos informados pela carta do conde de l’Estorade (de nº XXIX), o pequeno Armando nasceu em dezembro de 1825.
[2] Celimène no Misantropo de Molière: uma jovem viúva faceira e maldizente que vive no meio da alta sociedade. Alceste, apaixonado por ela, procura debalde uma ocasião para poder falar-lhe a sério e acaba por abandoná-la ao verificar que ela é incapaz de sacrificar a vida mundana ao amor.
[3] Faciem semper monstramus: frase latina que significa “mostramos sempre o rosto”.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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Leia também:
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