Capítulo 4
continuando...
Foi então com grande temor que Orlando entrou no salão. Encontrou o grupo já reunido em semicírculo, ao redor do fogo. Lady R., uma velhota de compleição morena, com uma mantilha de renda preta na cabeça, estava sentada ao centro, numa grande poltrona. Desse modo, por ser um pouco surda, podia controlar a conversa de ambos os lados. De ambos os lados sentavam-se os homens e mulheres da mais alta distinção. Todos os homens, dizia-se, tinham sido primeiros-ministros, e todas as mulheres, murmurava-se, amantes de um rei. O certo é que todos eram brilhantes e todos eram famosos. Orlando tomou seu lugar com profunda reverência, em silêncio... Depois de três horas, fez outra profunda reverência e retirou-se.
Mas o que — o leitor pode perguntar com alguma exasperação — aconteceu durante esse tempo? Por três horas em tal companhia, devem ter sido ditas as mais espirituosas, as mais profundas e as mais interessantes coisas do mundo. Assim poderia realmente parecer. Mas o fato é que eles não disseram nada. É uma característica curiosa de que compartilham as mais brilhantes sociedades que o mundo tem visto. A velha Madame du Deffand e seus amigos conversaram por cinquenta anos sem parar. E disso tudo o que resta? Talvez três ditos brilhantes. Assim, temos a liberdade de supor que nada foi dito, ou que nada de espirituoso foi dito, ou que a porção de três ditos espirituosos durou 18.250 noites — o que não deixa para nenhum deles um quinhão generoso de sabedoria.
A verdade parece ser — se ousarmos usar a palavra nesta situação — que todos esses grupos de pessoas estão sob um encantamento. A anfitriã é a nossa Sibila moderna. É uma bruxa que mantém seus convidados sob feitiço. Nesta casa eles se consideram felizes; naquela, espirituosos; numa terceira, profundos. É tudo ilusão (o que não é nenhum mal, pois as ilusões são as mais necessárias e valiosas de todas as coisas, e aquele que pode criar uma está entre os grandes benfeitores do mundo), mas, como é notório que as ilusões são despedaçadas por conflitarem com a realidade, assim nenhuma felicidade real, nenhuma sabedoria real, nenhuma real profundidade são toleradas onde a ilusão prevalece. Isto serve para explicar por que Madame du Deffand não disse mais do que três ditos espirituosos no decorrer de cinquenta anos. Se ela tivesse dito mais, seu círculo teria sido destruído. O dito espirituoso, quando deixava seus lábios, rolaria sobre a conversação corrente como uma bala de canhão, arrasando violetas e margaridas. Quando pronunciou o seu famoso mot de Saint Denis, [1] a própria grama ficou chamuscada. Seguiram-se a desilusão e o desconsolo. Nenhuma outra palavra foi pronunciada. “Poupe-nos de outro destes, pelo amor de Deus, Madame!”, gritaram seus amigos em uníssono. E ela obedeceu. Por cerca de 17 anos ela não disse nada memorável, e tudo correu bem. A bela colcha de ilusão permaneceu intata sobre o seu círculo, como permaneceu intata sobre o círculo de Lady R. Os convidados pensavam que eram felizes, pensavam que eram espirituosos, pensavam que eram profundos, e, enquanto pensavam nisso, as outras pessoas pensavam ainda mais fortemente; por isso circulava que nada era mais delicioso do que uma das reuniões de Lady R.; todos invejavam aqueles que eram ali admitidos; aqueles que eram admitidos invejavam-se porque os outros os invejavam; assim, isso parecia não ter fim — exceto o que agora vamos relatar.
Por ocasião da terceira visita de Orlando ocorreu um incidente. Ela ainda estava sob a ilusão de estar ouvindo os mais brilhantes epigramas do mundo, embora na realidade o velho general C. estivesse apenas contando demoradamente como a gota deixara sua perna esquerda e passara para a direita, enquanto o sr. L. interrompia sempre que algum nome próprio era mencionado: “R.? Oh! conheço Billy R. tão bem quanto a mim mesmo. S.? meu melhor amigo. T.? Ficou comigo 15 dias em Yorkshire” — o que, (tal é a força da ilusão) soava como a mais espirituosa resposta, o mais penetrante comentário sobre a vida humana, e mantinha o grupo em alvoroço; quando a porta se abriu e um cavalheiro baixo — cujo nome Orlando não conseguiu entender — entrou. Logo uma sensação curiosamente desagradável apoderou-se dela. A julgar pelas caras, os outros começaram também a sentir o mesmo. Um cavalheiro disse que havia uma corrente de ar. A marquesa de C. temia que houvesse um gato debaixo do sofá. Era como se seus olhos estivessem sendo lentamente abertos depois de um sonho agradável e não encontrassem nada, salvo um lavatório barato e uma colcha suja. Era como se as emanações deliciosas do vinho estivessem lentamente abandonando-os. O general ainda conversava e o sr. L. ainda relembrava. Mas tornou-se mais e mais aparente como era vermelho o pescoço do general e como o sr. L. era calvo. Quanto ao que eles diziam — nada mais enfadonho e banal se pode imaginar. Todos se impacientavam, e aqueles que tinham leques bocejavam por detrás deles. Finalmente, Lady R. bateu com o seu braço no braço da poltrona. Ambos os cavalheiros pararam de falar.
Então o cavalheiro baixinho disse,
Disse depois,
Finalmente disse, [2]
Aqui, não se pode negar, havia verdadeiro talento, verdadeira sabedoria, verdadeira profundidade. O grupo mergulhou em completo desânimo. Um desses ditos já era insuportável; mas três, um depois do outro, na mesma noite! Nenhuma sociedade poderia sobreviver.
“Sr. Pope”, disse a velha Lady R., numa voz trêmula, com fúria sarcástica, “faça o favor de ser espirituoso.” O sr. Pope ficou vermelho. Ninguém disse palavra. Permaneceram num silêncio mortal por uns vinte minutos. Depois, um a um, todos se levantaram e desapareceram do salão. Era duvidoso que tornassem a voltar depois de semelhante experiência. Podiam ser ouvidos tocheiros, chamando pelos coches, por toda a South Audley Street. Portinholas batiam e carruagens partiam. Orlando encontrou-se perto do sr. Pope na escada. A figura magra e deformada estava agitada por uma variedade de emoções. Dardos de malícia, raiva, triunfo, argúcia e terror partiam de seus olhos (ele estava tremendo como uma folha). Parecia um réptil agachado, com um topázio ardente na testa. Ao mesmo tempo, a mais estranha tempestade de emoções se apoderou da desafortunada Orlando. Uma desilusão tão completa como a que sofrera havia menos de uma hora deixa a cabeça balançando de um lado para outro. Tudo parece dez vezes mais vazio e rígido que antes. É um momento repleto de maior perigo para o espírito humano. As mulheres se transformam em freiras e os homens em padres, em tais momentos. Em tais momentos, os ricos cedem suas riquezas; e os homens felizes cortam suas gargantas com trinchantes. Orlando teria feito tudo isso de bom grado, mas havia uma coisa mais imprudente ainda para fazer, e ela a fez: convidou o sr. Pope para acompanhá-la à sua casa.
Pois, se é temerário entrar desarmado numa toca de leão, se é temerário navegar pelo Atlântico num barco a remo, se é temerário ficar em um só pé no topo da catedral de São Paulo, é mais temerário ainda ir para casa sozinha com um poeta. Um poeta é o Atlântico e o leão em uma só pessoa. Enquanto um nos afoga, o outro nos devora. Se sobrevivemos aos dentes, sucumbimos nas ondas. Um homem que pode destruir ilusões é ao mesmo tempo fera e dilúvio. As ilusões são, para a alma, o que a atmosfera é para a terra. Se retirarmos aquele ar suave, a planta morre e a cor esmaece. A terra por onde caminhamos torna-se um carvão ressequido. É amarga o que pisamos, e seixos ardentes chamuscam nossos pés. Somos desfeitos pela verdade. A vida é um sonho. É o acordar que nos mata. Aquele que nos rouba os sonhos rouba nossa vida — (e assim por seis páginas seguidas, se quisermos, mas o estilo é cansativo e pode bem ser abandonado).
Pelo visto, entretanto, Orlando deveria ser um monte de cinzas quando a carruagem parou em sua casa em Blackfriars. Que ainda era de carne e osso, embora certamente exausta, deve-se a um fato para o qual chamamos atenção antes, na narrativa. Quanto menos vemos, mais acreditamos. Ora, as ruas entre Mayfair e Blackfriars eram, naquela época, muito mal iluminadas. Na verdade, a iluminação já era bem melhor do que nos tempos elisabetanos. Naquele então, o viajante surpreendido pela noite tinha que confiar nas estrelas ou na luz vermelha de algum guarda-noturno para evitar os buracos no cascalho em Park Lane ou os bosques de carvalho de Tottenham Court Road, onde os porcos fuçavam. Mas mesmo assim faltava ainda a nossa eficiência moderna. Postes com lampiões de azeite ocorriam a cada duzentas jardas, mas entre eles se estendia uma considerável distância escura como breu. Assim, durante dez minutos, Orlando e o sr. Pope ficariam na escuridão; depois, por meio minuto, novamente na luz. Um estado de espírito muito estranho se instalou em Orlando. Quando a luz desapareceu começou a sentir-se banhada por um bálsamo delicioso. “Era de fato uma grande honra para uma jovem estar viajando com o sr. Pope”, começou a pensar, olhando o perfil de seu nariz. “Sou a mais abençoada das mulheres. A meia polegada de distância — na verdade, sinto o nó das fitas de sua liga comprimindo minha coxa — está o maior talento dos domínios de Sua Majestade. Os tempos futuros pensarão em nós com curiosidade e me invejarão furiosamente.” Aqui surgiu um outro lampião. “Que pobre louca sou eu!”, pensou. “Não existe nem fama nem glória. Os tempos futuros não dedicarão um só pensamento nem a mim nem ao sr. Pope. O que é uma ‘época’? O que somos ‘nós’?” E a passagem pela Berkeley Square parecia o tatear de duas formigas cegas momentaneamente reunidas sem interesse nem relação em comum, através de um deserto enegrecido. Ela tremeu. Mas aqui novamente estava escuro. Sua ilusão reviveu. “Como é nobre a sua fronte!”, pensou (confundindo, na escuridão, uma corcova na almofada com a cabeça do sr. Pope). “Que quantidade de gênio vive nela! Quanto talento, sabedoria e verdade — que abundância de todas essas joias pelas quais as pessoas estão prontas a barganhar suas vidas! A tua é a única luz que arde para sempre. Mas para ti a peregrinação humana seria realizada em total escuridão”; (aqui a carruagem deu um grande solavanco, ao cair numa vala em Park Lane) “sem os gênios estaríamos transtornados e perdidos. O majestoso, o lúcido esplendor!” — assim ela apostrofava a corcova da almofada quando passaram sob um dos lampiões de Berkeley Square e ela percebeu o seu erro. “Miserável!”, pensou, “como me enganaste! Tomei aquela corcova pela tua cabeça. Examinando-te bem, tu és ignóbil e desprezível! Disforme e doentio, não há nada para venerar em ti, muito para lamentar e bastante para desprezar.”
Novamente estavam na escuridão, e sua raiva diminuiu quando não viu nada além dos joelhos do poeta.
“Mas eu é que sou miserável”, refletiu quando mergulharam novamente em completa obscuridade, “por vil que sejas, não sou eu ainda mais vil? És tu que me alimentas e me proteges, que assustas as feras, atemorizas os selvagens, me fazes roupas com fios de seda e tapetes com lã de carneiro. Se careço adorar, não me deste a tua própria imagem e não a puseste no céu? Não há evidências do teu cuidado por toda parte? Portanto, como não hei de ser humilde, agradecida e dócil? Deixa toda a minha alegria servir-te, honrar-te e obedecer-te.”
Aqui alcançaram o grande lampião na esquina que é hoje Piccadilly Circus. A luz iluminou seus olhos e ela viu, além de algumas abjetas criaturas de seu próprio sexo, dois pigmeus indigentes, num terreno totalmente deserto. Estavam ambos despidos, solitários e indefesos. Um estava sem força para ajudar o outro. Cada um já tinha bastante o que fazer tomando conta de si. Olhando o sr. Pope diretamente, pensou: “É igualmente inútil, para ti, pensar que podes me proteger e, para mim, pensar que posso te adorar. A luz da verdade bate em nós sem sombra, e a luz da verdade é terrivelmente imprópria para nós dois.”
Todo esse tempo, é claro, continuavam conversando agradavelmente — como costumam fazer as pessoas bem-nascidas e educadas — a respeito do temperamento da rainha, da gota do primeiro-ministro, enquanto a carruagem ia da luz para a sombra por Haymarket, ao longo do Strand, subia Fleet Street e finalmente chegou à sua casa em Blackfriars. Desde algum tempo, os espaços escuros entre os lampiões tinham se tornado mais claros e os lampiões menos brilhantes — o que quer dizer que o sol se levantava, e foi numa luz uniforme mas confusa de uma manhã de verão, quando tudo se vê mas nada é visto distintamente, que eles se apearam, o sr. Pope dando a mão a Orlando para descer da carruagem e Orlando fazendo uma reverência para o sr. Pope, e precedendo-o ao entrar em sua mansão, com a mais escrupulosa atenção aos rituais das Graças.
continua pag 83...
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Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.
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Leia também:
Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
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[1] Em francês no original: mot, palavra, dito de espírito. (N.E.)
[2] Estes ditos são conhecidos demais para requererem repetição, e, além disso, são todos
encontrados nas suas obras completas. (N.A.)
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