quinta-feira, 2 de junho de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (2)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


5..

continuando...

As fotos objetificam: transformam um fato ou uma pessoa em algo que se pode possuir. E as fotos são uma espécie de alquimia, a despeito de serem tão elogiadas como registros transparentes da realidade.

Muitas vezes uma coisa parece, ou dá a sensação de que parece, “melhor” numa foto. Com efeito, uma das funções da fotografia consiste em aperfeiçoar a aparência normal das coisas. (Por isso as pessoas se decepcionam com uma foto de si mesmas que não lisonjeia sua vaidade.) Embelezar é uma das operações clássicas da câmera e tende a empalidecer qualquer reação moral àquilo que a foto mostra. Enfear, mostrar algo no que tem de pior, é uma função mais moderna: didática, ela solicita uma reação enérgica. Para apresentar uma denúncia, e talvez modificar um comportamento, os fotógrafos precisam chocar.

Um exemplo: alguns anos atrás, as autoridades de saúde pública do Canadá, onde se calculou que fumar mata 45 mil pessoas por ano, resolveram suplementar a advertência impressa em todos os maços de cigarro com uma fotografia de impacto — de pulmões cancerosos, ou de um cérebro lesionado por um coágulo, ou de um coração doente, ou de uma boca sanguinolenta em uma crise periodontal aguda. Uma pesquisa calculou, de alguma maneira, que um maço com uma foto dessas ao lado da advertência sobre os efeitos deletérios de fumar seria, provavelmente, sessenta vezes mais eficaz para estimular os fumantes a abandonar o fumo do que um maço apenas com a advertência verbal.

Vamos admitir que isso seja verdade. Mas podemos nos perguntar: por quanto tempo? Terá o choque um prazo de validade? Neste momento, os fumantes do Canadá estão virando o rosto, de nojo, quando veem essas fotos. Os que, daqui a cinco anos, continuarem a fumar ainda se sentirão abalados? O choque pode tornar-se familiar. O choque pode enfraquecer. Mesmo que isso não aconteça, a pessoa pode não olhar. As pessoas têm meios de se defender do que é perturbador — neste caso, as informações desagradáveis para quem deseja continuar a fumar. Isso parece normal, ou seja, adaptativo. Assim como a pessoa pode habituar-se ao horror na vida real, pode habituar-se ao horror de certas imagens.

Contudo, existem casos em que a repetida exposição àquilo que choca, entristece, consterna não esgota a capacidade de reação compassiva. Habituar-se não é algo automático, pois imagens (portáteis, manipuláveis) obedecem a regras distintas das regras da vida real. As representações da crucificação não se tornam banais para os crentes se eles forem de fato crentes. Isso é mais verdadeiro ainda em se tratando de encenações no palco. Montagens de Xuxingura, talvez a narrativa mais famosa de toda a cultura japonesa, são uma maneira segura de fazer chorar uma plateia de japoneses: no momento em que o sr. Asano admira a beleza das flores de cerejeira a caminho do local onde deverá cometer haraquiri, a plateia chora sempre, não importa quantas vezes tenha ouvido a mesma história (na forma de teatro kabuki ou bunraku, na forma de filme); o drama ta’ziyah, da traição e do assassinato do Imã Hussain, nunca deixa de levar a plateia iraniana às lágrimas, não importa quantas vezes já tenham visto esse mesmo martírio encenado. Ao contrário. Eles choram, em parte, porque o viram muitas vezes. As pessoas querem chorar. O páthos, em forma de narrativa, não se desgasta.

Mas as pessoas querem sentir-se horrorizadas? Provavelmente não. Todavia há fotos cujo poder não se enfraquece, em parte porque não se pode vê-las com frequência. Fotos de rostos destroçados, que sempre irão testemunhar uma grave iniquidade, sobreviveram a esse preço: o rosto horrivelmente desfigurado de veteranos da Primeira Guerra Mundial que sobreviveram ao inferno das trincheiras; o rosto empapado e inchado com o tecido das cicatrizes de sobreviventes das bombas atômicas americanas lançadas em Hiroshima e Nagasaki; o rosto fendido a golpes de facão dos tútsis que sobreviveram ao genocídio desencadeado pelos hútus em Ruanda — será correto dizer que as pessoas se habituam a essas imagens?

De fato, a própria noção de atrocidade, de crime de guerra, está associada à expectativa de alguma comprovação fotográfica. Essa comprovação, em geral, é de algo póstumo; os restos mortais, por assim dizer — os montes de crânios no Camboja de Pol Pot, as sepulturas coletivas na Guatemala e em El Salvador, na Bósnia e em Kosovo. E essa realidade póstuma representa, muitas vezes, o sumário de acusação mais incisivo que há. Como apontou Hannah Arendt pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, todas as fotos e noticiários cinematográficos sobre os campos de concentração são enganosos porque mostram os campos no momento em que as tropas aliadas ali entraram. O que torna insuportáveis as imagens — os montes de cadáveres, os sobreviventes esqueléticos — não é, em absoluto, algo típico dos campos, que, quando em funcionamento, exterminavam seus prisioneiros de forma sistemática (por meio de gás, e não de fome e doença) e logo depois cremavam seus corpos. E fotos ecoam fotos: era inevitável que as fotos de prisioneiros bósnios esquálidos em Omarska, o campo de extermínio criado pelos sérvios no Norte da Bósnia em 1992, trouxessem à memória fotos tiradas nos campos de extermínio nazistas em 1945.

As fotos de atrocidades tanto ilustram como corroboram. Contornando as discussões sobre o número exato de pessoas mortas (a princípio, os números são muitas vezes inflacionados), as fotos fornecem uma amostra indelével. A função ilustrativa das fotos deixa intactos opiniões, preconceitos, fantasias e informações erradas. A informação de que morreram muito menos palestinos no ataque a Jenin do que foi declarado pelas autoridades palestinas (conforme haviam dito os israelenses desde o início) produziu muito menos impacto do que as fotos do centro do campo de refugiados arrasado. E, é claro, atrocidades que não estejam garantidas em nossa mente por imagens fotográficas bem conhecidas, ou das quais simplesmente temos muito poucas imagens — o extermínio total do povo hereró na Namíbia, decretado pela administração colonial alemã, em 1904; o ataque japonês contra a China, em especial o massacre de quase 400 mil pessoas e o estupro de 80 mil chinesas em dezembro de 1937, o chamado Estupro de Nanquim; o estupro de cerca de 130 mil mulheres ou meninas (das quais 10 mil cometeram suicídio) pelos soldados soviéticos vitoriosos, deixados à solta por seus oficiais comandantes, em Berlim, em 1945 —, parecem mais remotas. Essas são lembranças que poucos se deram ao trabalho de reivindicar.

A familiaridade de certas fotos constrói nossa ideia do presente e do passado imediato. As fotos traçam rotas de referência e servem como totens de causas: um sentimento tem mais chance de se cristalizar em torno de uma foto do que de um lema verbal. E as fotos ajudam a construir — e a revisar — nossa noção de um passado mais distante, graças aos choques póstumos produzidos pela circulação daquelas até então desconhecidas. Fotos que todos reconhecem são, agora, parte constituinte dos temas sobre os quais a sociedade escolhe pensar, ou declara que escolheu pensar. Essas ideias são chamadas de “memórias” e isso, no fim das contas, é uma ficção. Em termos rigorosos, não existe o que se chama de memória coletiva — parte da mesma família de noções espúrias a que pertence a culpa coletiva. Mas existe uma instrução coletiva.

Toda memória é individual, irreproduzível — morre com a pessoa. O que se chama de memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado: isto é importante, e esta é a história de como aconteceu, com as fotos que aprisionam a história em nossa mente. As ideologias criam arquivos de imagens comprobatórias, imagens representativas, que englobam ideias comuns de relevância e desencadeiam pensamentos e sentimentos previsíveis. Fotos transformadas em pôster — a nuvem em forma de cogumelo de um teste de bomba atômica, Martin Luther King Jr. discursando no monumento a Lincoln em Washington, o astronauta na Lua — são um equivalente visual das frases de efeito ditas por políticos que costumam ser inseridas em noticiários do rádio e da tevê. Elas celebram, de um modo não menos embotado do que fazem os selos de correio, os Momentos Históricos Importantes; de fato, as imagens triunfalistas (com exceção da foto da bomba atômica) se tornam selos. Felizmente nenhuma foto dos campos de extermínio nazistas foi transformada em vinheta visual.

Uma vez que, durante um século de modernismo, a arte foi redefinida como tudo que é destinado a ser cultuado em algum tipo de museu, agora o destino de muitas coleções fotográficas é ser expostas e preservadas em instituições semelhantes a museus. Entre esses arquivos de horror, as fotos de genocídio alcançaram o maior desenvolvimento institucional. O motivo para criar repositórios públicos para essas e outras relíquias é assegurar que os crimes retratados pelas fotos continuem presentes na consciência das pessoas. Isto se chama lembrar, mas, na realidade, é bem mais do que isso.

O museu da memória, em sua proliferação atual, é produto de uma maneira de pensar, e de prantear, a destruição dos judeus europeus nas décadas de 1930 e 1940, que alcançou sua concretização institucional em Yad Vashem, em Jerusalém, no Museu em Memória do Holocausto, em Washington, e no Museu Judaico, em Berlim. Fotos e outras reminiscências da Shoah foram consignadas a uma recirculação permanente a fim de garantir que aquilo que mostram será lembrado. Fotos do sofrimento e do martírio de um povo são mais do que lembranças de morte, de derrota, de vitimização. Elas evocam o milagre da sobrevivência. Ter por objetivo a perpetuação das memórias significa, de forma inevitável, que se assumiu a tarefa de continuamente renovar e criar memórias — com a ajuda, sobretudo, da marca deixada por fotos exemplares. As pessoas querem ser capazes de visitar — e revigorar — suas memórias. Agora, muitos povos vitimados desejam um museu da memória, um templo para abrigar uma narrativa de seus sofrimentos que seja abrangente, organizada de forma cronológica e ilustrada. Os armênios, por exemplo, reivindicaram durante muito tempo um museu, em Washington, que institucionalizasse a memória do genocídio do povo armênio cometido pelos turcos otomanos. Mas por que não existe ainda na capital da nação, por acaso uma cidade cuja população é esmagadoramente afro-americana, um Museu da História da Escravidão? De fato, não existe em nenhum lugar dos Estados Unidos um Museu da História da Escravidão — a história completa, a partir do tráfico de escravos na própria África. Pelo visto, criar e pôr em vigor essa memória é considerado perigoso demais para a estabilidade social. O Museu em Memória do Holocausto e o futuro Museu e Monumento do Genocídio Armênio tratam daquilo que não ocorreu nos Estados Unidos, portanto o trabalho da memória não corre o risco de rebelar uma população doméstica insatisfeita contra a autoridade. Ter um museu para narrar o grande crime que foi a escravidão africana nos Estados Unidos da América seria reconhecer que o mal esteve aqui. Os americanos preferem retratar o mal que esteve , e do qual os Estados Unidos — uma nação especial, a única que ao longo de toda a sua história não teve nenhum líder comprovadamente cruel — estão isentos. A circunstância de que este país, como qualquer outro, tem seu passado trágico não condiz com a crença fundadora, e ainda poderosa, no caráter excepcional dos Estados Unidos. O consenso nacional em torno da história americana como uma história de progresso constitui um novo cenário para fotos deprimentes — um cenário que dirige nossa atenção para injustiças, aqui ou em qualquer parte, para as quais os Estados Unidos se veem como a solução ou a cura.




continua pág 239...


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
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mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."



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