sábado, 4 de junho de 2022

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXXIV

Júlio Verne



A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXXIV

QUE PROPORCIONA A PASSEPARTOUT A OPORTUNIDADE DE
FAZER UM TROCADILHO INFAME, MAS TALVEZ INÉDITO



Phileas Fogg estava na prisão. Tinham-no trancafiado no posto policial da Custom House, a alfândega de Liverpool, e aí deveria passar a noite esperando ser transferido para Londres.
No momento da detenção, Passepartout tinha tentado se precipitar sobre o detetive. Os policemen impediram. Mrs. Aouda, aterrada pela brutalidade do fato, nada sabendo, nada compreendia. Passepartout lhe explicou a situação. Mr. Fogg, este honesto e corajoso gentleman, ao qual ela devia a vida, estava preso como ladrão. A jovem protestou contra tal alegação, seu coração se indignou, e as lágrimas correram de seus olhos, quando viu que nada podia fazer, nada tentar, para salvar seu salvador.
Quanto a Fix, tinha prendido o gentleman porque seu dever lhe comandava prendê-lo, fosse culpado ou não. A justiça decidiria.
Mas então um pensamento veio a Passepartout, o pensamento terrível de que ele era decididamente a causa do toda aquela desgraça! Com efeito, por quê tinha ocultado o que se passava de Mr. Fogg? Quando Fix tinha se revelado, revelado sua qualidade de inspetor de polícia e a missão de que tinha sido encarregado, por quê tinha decidido não avisar o patrão? Este, prevenido, teria sem dúvida dado a Fix provas de sua inocência; teria demostrado seu erro; em todo o caso, não teria levado às suas custas e nas suas costas este mal agradecido agente, cujo primeiro cuidado tinha sido prendê-lo, no momento em que punha o pé no solo do Reino Unido. Ao pensar em suas faltas, em suas imprudências, o pobre rapaz era tomado de irresistíveis remorsos. Chorava, dava pena vê-lo. Queria dar com a cabeça na parede!
Mrs.Apesar e ele tinham ficado, apesar do frio, no peristilo da alfândega. Não queriam nem um nem a outra deixar o lugar. Desejavam rever ainda uma vez Mr. Fogg.
Quanto a este gentleman, estava bem e em regra arruinado, e justo no momento em que ia alcançar seu objetivo. Esta detenção o perdia irrevogavelmente.
Tendo chegado ao meio dia menos vinte em Liverpool, dia 21 de dezembro, tinha até as oito horas e quarenta e cinco minutos para se apresentar no Reform Club, ou seja nove horas e quinze minutos — e não precisaria mais de seis para chegar a Londres.
Neste momento, quem tivesse penetrado no posto policial da alfândega, teria encontrado Mr. Fogg, imóvel, sentado num banco dê madeira, sem cólera, imperturbável. Resignado, não sabemos, mas este último golpe não o tinha podido emocionar, pelo menos aparentemente. Teria se formado nele uma dessas tempestades secretas, terríveis porque são reprimidas, e que não eclodem senão no último momento com uma força irresistível? Não sabemos. Mas Phileas Fogg estava ali, calmo, aguardando... o quê? Conservaria alguma esperança? Confiaria ainda no sucesso, quando a porta desta prisão estava trancada sobre ele?
Fosse como fosse, Mr. Fogg tinha cuidadosamente posto seu relógio sobre uma mesa e olhava os ponteiros avançarem. Nem uma palavra escapava de seus lábios, mas seu olhar tinha uma fixidez ímpar.
Em todo caso, a situação era terrível, e, para quem não pudesse ler naquela consciência, ela se resumia assim:
Homem honesto, Phileas Fogg estava arruinado.
Homem desonesto, estava preso.
Teria então o pensamento de se salvar? Pensava em procurar se este posto apresentaria uma saída praticável? Pensava em fugir? Seríamos tentados a acreditar que sim, porque, em certo momento, inspecionou o quarto. Mas a porta estava solidamente fechada e as janelas guarnecidas de barras de ferro. Voltou a se sentar, e tirou da carteira o roteiro da viagem. Na linha que trazia estas palavras:
“21 do dezembro, sábado, Liverpool”, acrescentou:
“80.° dia, 11 h 40 da manhã”, e esperou.
Uma hora soou no relógio da Custom-house. Mr. Fogg constatou que o seu relógio estava dois minutos adiantado em relação a ele.
Duas horas! Admitindo que tomasse neste momento um expresso, poderia ainda chegar a Londres e ao Reform Club antes das oito e quarenta e cinco da noite.
Sua testa enrugou-se ligeiramente...
Às duas e trinta e três, um barulho ressoou do lado de fora, um barulho tumultuoso de portas que se abriam. Ouviu-se a voz de Passepartout, ouviu-se a voz de Fix.
O olhar de Phileas Fogg brilhou um instante.
A porta do posto policial se abriu, e viu Mrs. Aouda, Passepartout, Fix, que se precipitaram para ele.
Fix estava sem fôlego, cabelos em desalinho... Não podia falar!
— Senhor, balbuciou, senhor... perdão... uma semelhança deplorável... Ladrão está preso há três dias... está... livre!...
Phileas Fogg estava livre! Foi até o detetive. Olhou diretamente para seu rosto, e, fazendo o único movimento rápido que jamais tinha feito em sua vida, recuou seus dois braços para trás, depois, com a precisão de um autômato, bateu com seus dois punhos no infeliz inspetor.
— Bem dado! exclamou Passepartout, que, se permitindo um infame trocadilho, bem digno de um francês, acrescentou:
— Cáspite! eis o que se pode chamar de um soco inglês bem aplicado! Fix, derrubado, não pronunciou palavra. Levara o que tinha merecido. Mas de imediato Mr. Fogg, Mrs. Aouda, Passepartout deixaram a alfândega. Lançaramse em um veículo, e, em alguns minutos, chegaram à estação de Liverpool.
Phileas Fogg perguntou se havia um expresso prestes a partir para Londres...
Eram duas e quarenta... O expresso tinha partido havia trinta e cinco minutos.
Phileas Fogg solicitou então um trem especial.
Havia diversas locomotivas a vapor de grande velocidade; mas, atendendo às exigências do serviço, o trem especial só poderia deixar a estação às três horas.
Às três horas, Phileas Fogg, depois de ter dito algumas palavras ao maquinista sobre uma certa gratificação, corria em direção a Londres, em companhia da jovem e do seu fiel servidor.
Era preciso percorrer em cinco horas e meia a distância que separa Liverpool de Londres — coisa muito fácil quando a via está livre em todo o percurso. Mas houve atrasos forçados, e, quando o gentleman chegou à estação, nove horas menos dez soavam em todos os relógios de Londres.
Phileas Fogg, depois de ter dado a volta ao mundo, chegava com um atraso de cinco minutos!...
Tinha perdido.




continua pag 217...

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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.
Promessa que manteve em mais de oitenta livros.
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXXV
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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster


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