Victor Hugo - Os Miseráveis
XI — Christus nos Liberavit
Que vem a ser esta história de Fantine? É a sociedade comprando uma escrava.
A quem? À miséria.
À fome, ao frio, ao isolamento, ao abandono e à nudez. Doloroso contrato. Uma alma por um pedaço de pão. A miséria oferece, a sociedade aceita!
A sagrada lei de Cristo governa a nossa civilização, mas ainda a não penetrou; dizem que a escravidão desapareceu da civilização europeia; é um erro. Existe como dantes, mas não oprime senão a mulher e chama-se prostituição.
A escravidão pesa sobre a mulher, isto é, pesa sobre a sua graça, Sobre a sua fragilidade e beleza, sobre a sua maternidade. Este facto não é decerto uma das menores vergonhas do homem.
No ponto a que chegamos deste drama doloroso, nada resta a Fantine do que outrora foi. Tornou-se mármore, convertendo-se em lama. Quem a toca sente frio. Segue o seu caminho, suporta-vos e ignora quem sois; é a figura severa da desonra, a criatura conspurcada, a quem a sociedade disse a derradeira palavra.
Aconteceu-lhe já tudo o que lhe há-de acontecer ainda.
Sentiu tudo, suportou tudo, experimentou tudo, tudo sofreu, perdeu e chorou. Resignou-se, com aquela resignação que se assemelha à indiferença, como o sono se assemelha à morte. Já não teme nada, não evita coisa alguma, cai sobre ela todo o aguaceiro, passa sobre ela todo o oceano. Que lhe importa? É uma esponja embebida.
Assim o julgou pelo menos. Mas é um erro imaginar que se chega ao termo da carreira marcada pelo destino e que se toca o fundo de qualquer coisa.
O que são, porém, estes destinos impelidos em tal confusão? Aonde vão? Porque são eles assim?
Aquele que o sabe, penetra todas as trevas.
É um só. Chama-se Deus.
___________________
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar — II
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)
Nenhum comentário:
Postar um comentário