sexta-feira, 8 de julho de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 5. (3)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


5..

continuando...


Mesmo na era dos cibermodelos, a mente ainda se sente, conforme imaginaram os antigos, como um espaço interno — semelhante a um teatro — em que nós representamos imagens, e são essas imagens que nos permitem recordar. O problema não é que as pessoas lembrem por meio de fotos, mas que só se lembrem das fotos. Essa lembrança por meio de fotos ofusca outras formas de compreensão e de recordação. Os campos de concentração — ou seja, as fotos tiradas quando os campos foram libertados em 1945 — constituem a maior parte daquilo que as pessoas associam ao nazismo e aos tormentos da Segunda Guerra Mundial. Mortes horrendas (por genocídio, inanição e epidemia) representam a maior parte daquilo que as pessoas retêm de toda a profusão de iniquidades e fracassos ocorridos na África pós-colonial.

Lembrar, cada vez mais, não é recordar uma história, e sim ser capaz de evocar uma imagem. Mesmo um escritor tão impregnado pelos rituais da literatura do século XIX e do início do modernismo como W. G. Sebald sentiu-se motivado a semear com fotos suas narrativas de lamento sobre vidas perdidas, sobre a natureza perdida e sobre paisagens urbanas perdidas. Sebald não foi apenas um elegíaco, mas um elegíaco militante. Ao recordar, ele queria que o leitor também recordasse.

Fotos aflitivas não perdem necessariamente seu poder de chocar. Mas não ajudam grande coisa, se o propósito é compreender. Narrativas podem nos levar a compreender. Fotos fazem outra coisa: nos perseguem. Observemos uma das imagens inesquecíveis da guerra na Bósnia, uma foto sobre a qual John Kifner, o correspondente estrangeiro do New York Times, escreveu: “A imagem é incisiva, uma das mais duradouras imagens das guerras nos Bálcãs: um miliciano sérvio dá um chute displicente na cabeça de uma mulher muçulmana moribunda. A imagem conta tudo o que é preciso saber”. Mas é claro que ela não nos conta tudo o que nós precisamos saber.

Graças à identificação fornecida pelo fotógrafo, Ron Haviv, sabemos que a foto foi tirada na cidade de Bijeljina, em abril de 1992, o primeiro mês da investida sérvia contra a Bósnia. Atrás, vemos um miliciano sérvio uniformizado, um jovem com óculos escuros no alto da cabeça, um cigarro entre os dedos médio e anelar da mão esquerda levantada, um rifle que pende da mão direita, a perna direita em posição de chutar o rosto de uma mulher deitada, de cara para baixo, sobre a calçada, entre dois corpos. A foto não nos diz que ela é muçulmana, embora dificilmente pudesse ser classificada de qualquer outro modo, pois por que estariam ela e mais duas pessoas estiradas ali, como mortas (por que “moribunda”?), sob o olhar de alguns soldados sérvios? Na verdade, a foto nos revela muito pouco — exceto que a guerra é um inferno e que rapazes bonitos armados são capazes de chutar a cabeça de mulheres velhas e gordas que jazem indefesas, ou já mortas.

As fotos das atrocidades bósnias foram vistas pouco depois de terem ocorrido. Assim como as fotos da Guerra do Vietnã, a exemplo das provas fornecidas por Ron Haberle do massacre ocorrido em março de 1968, cometido por um pelotão de soldados americanos contra cerca de quinhentos civis desarmados na aldeia de My Lai, elas se tornam importantes para reforçar a oposição a uma guerra que estava longe de ser inevitável, longe de ser incontrolável, e poderia ter sido interrompida muito mais cedo. Portanto as pessoas poderiam sentir-se obrigadas a olhar essas fotos, por mais horripilantes que fossem, porque havia algo a ser feito, naquele momento, a respeito daquilo que elas retratavam. São outras as questões levantadas quando se convida o público a sensibilizar-se ante um dossiê de fotos de horrores ocorridos muito tempo atrás, fotos até então desconhecidas.

Um exemplo: uma coleção de fotos de negros vítimas de linchamento em cidades pequenas dos Estados Unidos, entre 1890 e 1930, que proporcionaram uma experiência dilacerante e reveladora para milhares de pessoas que as viram numa galeria em Nova York, em 2000. As fotos de linchamento nos falam sobre a crueldade humana. Sobre a desumanidade. Obrigam-nos a pensar na extensão do mal desencadeado especificamente pelo racismo. Inerente à perpetração desse mal é o desaforo de fotografá-lo. As fotos foram tiradas como suvenires e, algumas delas, transformadas em cartões-postais; não poucas mostram espectadores sorridentes, bons cidadãos frequentadores da igreja, como a maioria tinha de ser, posam para uma câmera tendo como pano de fundo um corpo nu, carbonizado e mutilado, que pende de uma árvore. A exibição dessas fotos também nos transforma em espectadores.

Qual o sentido de exibir essas fotos? Para despertar indignação? Para nos sentirmos “mal”, ou seja, para consternar e entristecer? Para nos ajudar a cumprir o luto? Será mesmo necessário olhar para essas fotos, uma vez que tais horrores se encontram num passado remoto o bastante para que estejam fora do alcance de qualquer punição? Tornamo-nos melhores por ver essas imagens? Será que elas de fato nos ensinam alguma coisa? Acaso não vêm apenas confirmar aquilo que já sabemos (ou queremos saber)?

Todas essas questões foram levantadas por ocasião da exposição e depois, quando foi publicado um livro de fotos, Without Sanctuary (Sem refúgio). Alguns, segundo se comentou, poderiam questionar a necessidade dessa tétrica exposição fotográfica, temendo que ela alimentasse apetites voyeurísticos e perpetuasse imagens da vitimização de negros — ou simplesmente embotasse a mente. Todavia, assim se argumentou, existe uma obrigação de “examinar” — o termo “examinar”, mais clínico, substitui “olhar” — as fotos. Argumentou-se também que nos submetermos a uma provação nos ajudaria a compreender tais atrocidades não como um ato de “bárbaros”, mas como o reflexo de um sistema de crença, o racismo, que, ao classificar um povo como menos humano do que outro, legitima a tortura e o assassinato. Mas talvez eles fossem bárbaros. Talvez seja essa a aparência da maioria dos bárbaros. (Eles são semelhantes a qualquer pessoa.)

Dito isso, o “bárbaro”, para uma pessoa, é uma outra pessoa “que apenas faz aquilo que todos fazem”. (De quantas pessoas se pode esperar algo melhor do que isso?) A questão é: a quem queremos culpar? Mais precisamente: a quem acreditamos ter o direito de culpar? As crianças de Hiroshima e Nagasaki não eram menos inocentes do que os rapazes (e algumas mulheres) afro americanos massacrados e pendurados em árvores em cidades pequenas dos Estados Unidos. Mais de 100 mil civis, três quartos deles mulheres, foram trucidados no bombardeio aéreo da raf contra a cidade de Dresden, na noite de 13 de fevereiro de 1945; 72 mil civis foram incinerados em poucos segundos pela bomba americana lançada contra Hiroshima. A lista poderia ser muito mais longa. De novo, a quem queremos culpar? Que atrocidades do passado incurável julgamos ser nosso dever revisitar?

Provavelmente, se formos americanos, julgaremos mórbido fazer um esforço especial para ver fotos de vítimas queimadas por um bombardeio atômico ou fotos da carne de vítimas civis atingidas por napalm lançado pelos americanos na Guerra do Vietnã, mas julgaremos nosso dever olhar fotos de linchamentos — se pertencermos ao grupo das pessoas de consciência, que agora, nesta questão, são bastante numerosas. Um reconhecimento mais generalizado da monstruosidade do sistema escravista outrora vigente nos Estados Unidos, e não questionado pela maioria, é um projeto nacional de décadas recentes ao qual muitos euroamericanos se sentem obrigados a aderir. Esse projeto em curso é uma conquista importante, um marco de virtude cívica. O reconhecimento de que os Estados Unidos usaram, na guerra, um poder de fogo desproporcional (numa violação de uma das leis fundamentais da guerra) está longe de constituir um projeto nacional. Um museu dedicado à história das guerras dos Estados Unidos que incluísse a guerra ignominiosa que os Estados Unidos travaram contra as guerrilhas nas Filipinas entre 1899 e 1902 (habilmente denunciadas por Mark Twain), e que apresentasse com imparcialidade os argumentos pró e contra o emprego da bomba atômica em 1945 sobre cidades japonesas, com provas fotográficas que mostrassem o que as armas fizeram, seria visto — agora mais do que nunca — como um esforço impatriótico.



continua pág 257...


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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."


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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."


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