segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A Hora da Estrela - Olímpico de Jesus trabalhava de operário

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de “operário” e sim de “metalúrgico”. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. “Metalúrgico e datilógrafa” formavam um casal de classe. A tarefa de Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça. O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima da máquina para colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante. Nunca se perguntara por que colocava a barra embaixo. A vida não lhe era má e ele até economizava um pouco de dinheiro: dormia de graça numa guarita em obras de demolição por camaradagem do vigia.
Macabéa disse: 

– As boas maneiras são a melhor herança. 

– Pois para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um dia vou ser muito rico disse ele que tinha uma grandeza demoníaca: a sua força sangrava.

Uma coisa que tinha vontade de ser era toureiro. Uma vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés quando vira a capa vermelha. Não tinha pena do touro. Gostava era de ver sangue. 
No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava posição na vida. Aliás, matar tinha feito dele homem com letra maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de “cabra safado”. Mas não sabia que era um artista: nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia. Todos os detalhes ele punha e, sem faltar ao respeito, esculpia tudo do Menino Jesus. Ele achava que o que é, é mesmo, e Cristo tinha sido além de santo um homem como ele, embora sem dente de ouro. 
Os negócios públicos interessavam Olímpico. Ele adorava ouvir discursos. Que tinha seus pensamentos, isso lá tinha. Acocorava-se com o cigarro barato nas mãos e pensava. Como na Paraíba ele se acocorava no chão, o traseiro sentado no zero, a meditar. Ele dizia alto e sozinho:

– Sou muito inteligente, ainda vou ser deputado.

E não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para quem abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem. No futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado? E obrigando os outros a chamarem-no de doutor. 
Macabéa era na verdade uma figura medieval enquanto Olímpico de Jesus se julgava peça-chave, dessas que abrem qualquer porta. Macabéa simplesmente não era técnica, ela era só ela. Não, não quero ter sentimentalismo e portanto vou cortar o coitado implícito dessa moça. Mas tenho que anotar que Macabéa nunca recebera uma carta em sua vida e o telefone do escritório só chamava o chefe e Glória. Ela uma vez pediu a Olímpico que lhe telefonasse. Ele disse: 

– Telefonar para ouvir as tuas bobagens?

Quando Olímpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da Paraíba,. ela ficou boquiaberta e pensou: quando nos casarmos então serei uma deputada? Não queria, pois deputada parecia nome feio. (Como eu disse, essa não é uma história de pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações, até sensações de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro.) 
As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne-de-sol, carne-seca, rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam por demais irmãos, coisa que — só agora estou percebendo — não dá para casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso. Casariam ou não? Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão. 
Não, menti, agora vi tudo: ele não era inocente coisa alguma, apesar de ser uma vítima geral do mundo. Tinha, descobri agora, dentro de si a dura semente do mal, gostava de se vingar, este era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. Mais do que ela que não tinha anjo da guarda. 
Enfim o que fosse acontecer, aconteceria. E por enquanto nada acontecia, os dois não sabiam inventar acontecimentos. Sentavam-se no que é de graça: banco de praça pública. E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada. Para a grande glória de Deus. 

Ele: – Pois é. 

Ela: – Pois é o quê? 

Ele: – Eu só disse pois é! 

Ela: – Mas “pois é” o quê? 

Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende. 

Ela: – Entender o quê? 

Ele: – Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto e já! 

Ela: – Falar então de quê? 

Ele: – Por exemplo, de você. 

Ela: – Eu?! 

Ele: – Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente. 

Ela: – Desculpe mas não acho que sou muito gente. 

Ele: – Mas todo mundo é gente, meu Deus! 

Ela: – É que não me habituei. 

Ele: – Não se habituou com quê? 

Ela: – Ah, não sei explicar. 

Ele: – E então? 

Ela: – Então o quê? 

Ele: – Olhe, eu vou embora porque você é impossível! 

Ela: – É que só sei ser impossível, não sei mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível?

Ele: – Pare de falar porque você só diz besteira! Diga o que é do teu agrado. 

Ela: – Acho que não sei dizer. 

Ele: – Não sabe o quê? 

Ela: – Hein? 

Ele: – Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada, está bem? 

Ela: – Sim, está bem, como você quiser. 

Ele: – É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me 
        chamarem, eu virei eu. No sertão da Paraíba não há 
        quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo 
        todo vai saber de mim. 

– É? 

– Pois se eu estou dizendo! Você não acredita? 

– Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender.

continua pag 54...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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