Elias Canetti
O ESTANCAMENTO
A massa estanque encontra-se densamente compactada; o movimento realmente livre ser-lhe-ia impossível. Seu estado tem algo de passivo: a massa estanque espera. Espera por uma cabeça que lhe deverá ser exibida, espera por palavras ou assiste a uma luta. Importante aí é particularmente a densidade: a pressão, sentida de todos os lados, serve aos envolvidos também como medida da força da formação da qual eles agora tomam parte. Quanto maior a confluência de homens, tanto maior será essa pressão. Os pés não podem mover-se; os braços estão comprimidos; livres permanecem somente as cabeças, para ver e ouvir; os corpos transmitem estímulos diretamente uns aos outros. Através do próprio corpo, toma-se parte, ao mesmo tempo, de diversas pessoas ao redor. Sabe-se que se trata de diversas pessoas, mas como estas apresentam-se tão densamente relacionadas umas às outras, são sentidas como uma única. Esse tipo de densidade não tem pressa; ao longo de um certo tempo, seu efeito é constante; ela é amorfa, não sujeita a nenhum ritmo conhecido e treinado. Por um bom tempo, nada acontece, mas o desejo de ação se acumula e intensifica, eclodindo afinal com tanto maior violência.
A paciência das massas estanques talvez não seja tão espantosa, se se tem presente a importância que para elas possui esse sentimento de densidade. Quanto mais densa for a massa estanque, tanto mais pessoas novas atrairá. Seu tamanho, ela o mede por sua densidade, a qual, por sua vez, constitui também o estímulo a um maior crescimento. A massa mais densa é a que cresce com maior velocidade. O estancamento que precede a descarga é uma exibição dessa densidade. Quanto mais tempo permanecer estanque, tanto mais longamente essa massa sentirá e exibirá sua densidade.
Do ponto de vista dos indivíduos que compõem a massa, o momento do estancamento é um momento do espanto; as armas e os aguilhões dos quais eles normalmente se armam tão bem uns contra os outros são depostos; as pessoas se tocam e não se sentem constrangidas; o toque já não é mais toque: as pessoas não têm medo umas das outras. Antes de partir, qualquer que seja a direção a tomar, querem ter certeza de que todos permanecerão juntos. Tem-se aí um crescimento conjunto para o qual se necessita de tranquilidade. A massa estanque ainda não está totalmente segura de sua unidade, razão pela qual se mantém quieta o maior tempo possível.
Essa paciência, porém, tem seus limites. Uma descarga é, por fim, indispensável: sem ela, não se pode dizer se anteriormente havia ali, de fato, uma massa. O grito que, no passado, costumeiramente se ouvia nas execuções públicas, quando o carrasco erguia a cabeça do malfeitor, ou o grito como o que hoje se conhece das competições esportivas, é a voz da massa. De grande importância é a sua espontaneidade. Gritos ensaiados e repetidos a espaços regulares de tempo não constituem ainda um sinal de que a massa adquiriu vida própria. Eles deverão, por certo, conduzir a isso, mas podem ser exteriores, como os movimentos treinados de um destacamento militar. Já o grito espontâneo, impossível de ser previsto com exatidão pela massa, este é inequívoco, e seu efeito, gigantesco. Um tal grito pode dar expressão a afetos de toda sorte; que afetos são esses é algo que frequentemente importa menos do que sua força, diversidade e a liberdade de sua sucessão. São eles que conferem à massa o seu espaço psíquico.
Podem, entretanto, apresentar-se tão fortes e concentrados que despedaçam a massa de imediato. As execuções públicas produzem esse efeito; uma mesma vítima só pode ser morta uma única vez. E, em se tratando de alguém que sempre foi considerado invulnerável, duvida-se até o último instante da possibilidade de que venha de fato a ser morto. A dúvida, oriunda da ocasião, aumenta o caráter estanque natural da massa. Tanto mais aguda e penetrante afigura-se, então, a visão da cabeça cortada. O grito que se segue é terrível, mas trata-se do derradeiro grito dessa massa específica. Pode-se, portanto, dizer que, nesse caso, a massa paga com sua própria morte imediata o excesso de expectativa estanque de que desfrutou com a máxima intensidade.
Nossas modernas competições esportivas são mais funcionais. Os espectadores podem sentar-se; a paciência de todos exibe-se a si própria. As pessoas têm os pés livres para batê-los, mas permanecem no mesmo lugar. E têm as mãos livres para bater palmas. Uma certa duração está prevista para o espetáculo; em geral, não se supõe que ela seja abreviada; ao menos por esse período de tempo é certo que todos permanecerão reunidos. Mas nesse espaço de tempo tudo pode acontecer. Não há como saber antecipadamente se, quando, e de que lado será marcado um gol; e, mesmo paralelamente a esses ansiados acontecimentos principais, há diversas outras coisas que podem conduzir a ruidosas erupções. A voz faz-se ouvir com frequência e em ocasiões variadas. A predeterminação temporal, porém, retira algo do caráter doloroso da desagregação final, da separação. Ademais, dá-se aos perdedores a oportunidade de uma revanche, e nem tudo terminou para sempre. Nesses espetáculos, a massa pode pôr-se realmente à vontade: ela pode aglomerar-se nas entradas e, posteriormente, estancar nos assentos; pode gritar de todas as maneiras, quando o momento certo se apresenta; e, mesmo estando já tudo acabado, pode nutrir a esperança de, no futuro, voltar a ter oportunidades semelhantes.
Massas estanques de natureza bastante mais passiva formam-se nos teatros. O caso ideal é aquele em que os atores representam para uma casa cheia. O número desejado de espectadores é dado de antemão. Eles se reúnem por si sós e, à exceção da pequena aglomeração diante da bilheteria, encontram cada um por si o seu caminho rumo à plateia. São conduzidos a seus lugares. Tudo se encontra já definido: a peça a ser encenada, os atores que nela trabalharão, o horário do início do espetáculo e os próprios lugares dos espectadores. Os que chegam atrasados são recebidos com ligeira hostilidade. As pessoas encontram-se sentadas qual um rebanho ensinado, quietas e munidas de paciência infinda. Ainda assim, cada um tem plena consciência de sua existência individual; cada espectador pagou por seu ingresso e observa bem quem está sentado a seu lado. Antes do início do espetáculo, contempla calmamente a fileira de cabeças reunidas: estas despertam nele um sentimento agradável, mas não demasiado intenso, de densidade. Na verdade, a igualdade entre os espectadores consiste unicamente no fato de todos compartilharem da mesma experiência, proveniente do palco. Mas suas reações espontâneas ao que estão assistindo são limitadas. Mesmo o aplauso ocorre em momentos prescritos, e, na maioria das vezes, as pessoas realmente só batem palmas quando devem fazê-lo. É tão somente da força do aplauso que se pode depreender em que medida tornaram-se massa; ele é a única medida para tanto, e é assim que os próprios atores o avaliam.
O estancamento no teatro tornou-se já em tão grande medida um rito que os espectadores o sentem exteriormente, como uma suave pressão que não os toca mais profundamente e, de todo modo, mal chega a dar-lhes a sensação de uma comunhão e unidade interior. Contudo, não se pode esquecer quão grande e comum é a expectativa que, sentados ali, abrigam, e como essa expectativa se mantém ao longo de toda a encenação. Só muito raramente as pessoas deixam o teatro antes do final do espetáculo; mesmo decepcionadas, elas se mantêm coesas.
O contraste entre o silêncio dos espectadores e a ação ruidosa do aparato que sobre eles atua é ainda mais notável nos concertos. Nestes, tudo depende de uma completa imperturbabilidade. Todo movimento é indesejado; todo ruído, proibido. Enquanto a música que está sendo executada vive em grande medida de seu ritmo, nenhum efeito rítmico pode fazer-se perceptível nos ouvintes. Os diferentes afetos que a música desperta em incessante sucessão são de natureza a mais variada e intensa. Não há possibilidade de eles não serem sentidos pela maioria dos presentes, nem de estes não os sentirem ao mesmo tempo. Contudo, as reações exteriores não têm lugar. As pessoas encontram-se sentadas imóveis em seus lugares, como se conseguissem nada ouvir. É claro que, nesse caso, uma educação prolongada, artificial, para o estancamento foi necessária, educação esta a cujos resultados já nos acostumamos. Afinal, contemplando-se imparcialmente a questão, poucos são os fenômenos de nossa vida cultural tão impressionantes quanto um público de concerto. As pessoas que se expõem naturalmente aos efeitos da música comportam-se de maneira totalmente diversa; e aqueles que, em sua vida, ainda não ouviram música alguma podem mergulhar na mais desenfreada excitação ao vivenciá-la pela primeira vez. Quando, ao desembarcar na Tasmânia, os marinheiros tocaram a Marselhesa para os nativos, estes expressaram sua satisfação por meio de estranhas contorções do corpo e dos mais espantosos gestos, fazendo com que os marinheiros morressem de rir. Um jovem entusiasmado pôs-se a arrancar os cabelos, coçar a cabeça com as duas mãos e emitir repetidos gritos.
Um minúsculo resquício de descarga corporal conservou-se também em nossos concertos. Batem-se palmas como um agradecimento aos músicos — um barulho breve e caótico em homenagem a outro, longo e bem organizado. Se o aplauso não acontece, se as pessoas se separam no mesmo silêncio de quando estavam sentadas, é porque sentem-se já inteiramente na esfera do fervor religioso.
É dessa esfera que originalmente deriva o silêncio no concerto. O reunir-se de pé diante de deus constitui prática disseminada em diversas religiões. Caracterizam-no os mesmos traços do estancamento que hoje conhecemos das massas mundanas, e ele é capaz de conduzir a descargas igualmente súbitas e violentas.
Talvez o exemplo mais impressionante seja o da famosa estação de Arafat, o ponto culminante da peregrinação a Meca. Na planície de Arafat, algumas horas distante de Meca, de 600 mil a 700 mil peregrinos se reúnem num determinado dia, estabelecido de acordo com o ritual. Agrupam-se todos num grande círculo ao redor do “monte da Misericórdia”, uma colina escalvada que se ergue no meio da planície. Por volta das duas horas da tarde, quando o calor é maior, os peregrinos tomam posição e permanecem de pé ali até o pôr do sol. Não cobrem a cabeça e vestem todos a mesma túnica branca dos peregrinos. Com apaixonado interesse, ouvem atentamente as palavras do pregador que lhes fala do alto da colina. Seu sermão compõe-se de uma ininterrupta louvação a deus. Os peregrinos respondem com uma fórmula repetida milhares de vezes: “Esperamos por tuas ordens, senhor. Esperamos por tuas ordens!”. Muitos soluçam de emoção; outros batem no peito. Alguns desmaiam em razão do terrível calor. É essencial, porém, que permaneçam na planície sagrada durante essas longas e escaldantes horas. Somente ao pôr do sol dá-se o sinal para a partida.
Os acontecimentos subsequentes, que estão entre o que se conhece de mais enigmático em termos de costumes religiosos, serão tratados e interpretados mais adiante, em outro contexto. O que nos interessa aqui é tão somente esse momento do estancamento, que se estende por horas. Em um estado crescente de excitação, centenas de milhares de pessoas são mantidas na planície de Arafat, não lhes sendo permitido — aconteça-lhes o que acontecer — abandonar essa estação perante Alá. Juntas elas se apresentam e juntas recebem o sinal para a partida. O pregador as inflama e elas próprias inflamam-se umas às outras com seus gritos. Na fórmula que utilizam está contida a “espera”, que, enquanto tal, retorna constantemente. O sol, movendo-se com lentidão imperceptível, mergulha tudo na mesma luz radiante, no mesmo calor: poder-se-ia chamá-lo a encarnação do estancamento.
Todos os graus tanto de enrijecimento quanto de silêncio podem ser encontrados nas massas religiosas, mas o grau mais elevado de passividade que elas são capazes de atingir é violentamente imposto de fora à massa. Numa batalha, duas massas lançam-se uma sobre a outra, cada uma delas pretendendo ser a mais forte. Por intermédio de seu grito de guerra, elas procuram provar para si e para o inimigo que são realmente a mais forte. O objetivo da batalha é fazer calar o outro lado. Tombados os inimigos todos, cala-se para sempre a sua voz, que era a reunião de todas as vozes numa só — uma ameaça que se tinha razão em temer. A mais silenciosa das massas é a dos inimigos mortos. Quanto mais perigosa ela tenha sido, tanto mais se aprecia vê-la reunida inerte num amontoado. Vê-la tão indefesa, na condição de um amontoado de mortos, constitui um vício em si. Afinal, foi na qualidade de um amontoado que ela, anteriormente, se lançou sobre o inimigo, que gritou para ele. Essa massa silenciada dos mortos não era vista outrora como inanimada. Supunha-se que, em alguma outra parte, os mortos seguiriam vivendo à sua maneira, todos novamente reunidos; e, no fundo, tratar-se-ia de uma vida semelhante àquela conhecida que levavam. Assim, jazendo no chão como cadáveres, os inimigos representavam para aquele que os contemplava o exemplo extremo de uma massa estanque.
Também essa noção, porém, experimentou uma intensificação maior. Em vez apenas dos inimigos tombados, podem transformar-se nessa massa todos os mortos jazendo juntos na terra, esperando por sua ressurreição. Cada um que morre e é enterrado aumenta-lhe o número; todos quantos já passaram por esta vida pertencem a essa massa, e destes tem-se uma quantidade já infinda. A terra que os une é sua densidade, de modo que, ainda que jazam isoladamente, tem-se a sensação de que estão bem juntos um do outro. E jazem ali por um tempo infinitamente longo, até o dia do juízo final. Sua vida paralisa-se até o momento da ressurreição, e esse momento coincide com o de sua reunião perante deus, que os julgará. Nada há entre um momento e outro: jazem como massa e, também como massa, ressuscitam. Não há prova mais grandiosa da realidade e do significado da massa estanque do que o desenvolvimento dessa concepção da ressurreição e do juízo final.
continua página 56...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
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Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (O Estancamento)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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