Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
SEGUNDO ATO CENA 4
continuando...
Entra Geni com a chapeleira
GENI
Olá, todo mundo. Vitória, me vê um conhaque urgente que eu estou com
uma angina no peito! (Estende-se na poltrona enquanto Vitória vai buscar a
garrafa)
DURAN
Ué, Genival, você não vai ao desfile?
GENI
Pra quê? Por vinte pratas que você nem vai pagar?
DURAN
Que é isso? Duvidando da minha honestidade?
GENI
Nunca, Duran. Mas por que é que você vai pagar por uma passeata que
não vai acontecer?
DURAN
Não vai acontecer? Já viu a multidão aí fora?
GENI
Que tumulto, hein? Eles vão ficar bem chateados quando você suspender a
passeata.
DURAN
Eu não vou suspender nada, de jeito nenhum. A não ser, é claro, que o
meu amigo Chaves cumpra com o seu dever.
GENI
Justamente. Acho que o Tigrão só não cumpre o dever se não quiser.
CHAVES
Que é que tu tá insinuando, ô, veado? Pensa que eu tô protegendo aquele
patife?
GENI
Eu não disse isso. . .
CHAVES
Sai da minha frente, vai, cai fora!
VITÓRIA
Calma, inspetor. Algo me diz que o Genival tem novidades pra nós.
DURAN
Você sabe do Max, Genival?
GENI
Esse conhaque caiu redondinho, Vitória.
CHAVES
Sabe do Max, porra? Fala duma vez!
GENI
Serve mais um, Vitória?
CHAVES
Ah, eu esgano este puto! (Avança sobre Geni)
VITÓRIA
Não faça isso, inspetor, que você estraga tudo! Fala, Genival, fica à
vontade.
GENI
Oh, inspetor, que lindas mãos! Posso ler?
CHAVES
Tu vai ler é uma caceta!
DURAN
Deixa ele ler, Chaves, ouve o que eu tô falando! Lê a mão dele, Genival,
que ele tá morrendo de curiosidade.
CHAVES
Vai, vai logo, lê essa bosta!
GENI
Ah, que emocionante. Um futuro grandioso! Muito poder nas suas mãos!
Quantas viagens! Oh, oh, oh que lindo! Um aviãozinho no céu azul. . . Nossa, que
aviãozão enorme! Xiiiiii. . .
CHAVES
O que foi?
GENI
Caiu.
CHAVES
Agora chega. Se tu sabe alguma coisa do Max, desembucha duma vez.
GENI
Pois é, o Max. . . Sujeito alinhado, o Max. Mulhereeeeengo! Lembra ontem
à tarde, quando eu deixei escapar pra vocês que o Max tava no puteiro dos
Arcos?
CHAVES
Mas hoje ele não tá em puteiro nenhum, que eu já revistei todos.
GENI
É claro que não tá. O Max jamais vai a puteiro em feriado nacional. Eu tava
falando de ontem.
DURAN
E você veio aqui pra falar de ontem, Genival?
GENI
Também. Eu ontem dei uma informação, sem querer mas dei, e vocês nem
agradeceram.
CHAVES
Ah, é? Pois não tem agradecimento nenhum. O Max fugiu da cadeia no
mesmo dia.
GENI
Bom, eu não tenho culpa se a polícia é incompetente. ..
CHAVES
Ah, Duran, ah, dona Vitória, vocês vão me desculpar mas agora eu
arrebento esse veado puto!
VITÓRIA
Inspetor, eu tenho certeza que o Genival tem outras coisas pra falar. Tô
vendo nos olhos dele.
DURAN
Quanto é o agradecimento por ontem, Genival?
GENI
Olha, era só dois contos. Mas agora que o inspetor me chamou de veado
puto eu vou ter que exigir uma indenização. Fica tudo por quatro contos e eu me
dou por satisfeita.
CHAVES
Se não é vedo, o que é que é? É machão?
GENI
Nem veado nem machão. Eu sou plurissexual.
DURAN
É melhor pagar logo, Chaves, senão aumenta.
CHAVES
Toma, porra!
GENI
Não, assim tão cru eu nem tenho jeito de receber.
CHAVES
O que tu quer mais?
GENI
Aceito desculpas.
CHAVES
Nunca! Não peço desculpa a veado por nada deste mundo!
GENI
Veado, não.
VITÓRIA
Por favor, inspetor.
DURAN
Deixa de besteira, Chaves. Pede desculpas.
CHAVES
Desculpa, porra!
GENI (Pega o dinheiro)
Dá mais um conhaque, querida?
VITÓRIA
Toma, Genival. Mas agora é melhor vender teu peixe, que já passa das
duas.
continua pág 119 ...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
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Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4c)__________________
Chico Buarque - foi musicando o poema "
Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "
A Banda", "
Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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