segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4b)

Ópera do malandro


Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 4

continuando...

Entra Geni com a chapeleira 


GENI 
Olá, todo mundo. Vitória, me vê um conhaque urgente que eu estou com uma angina no peito! (Estende-se na poltrona enquanto Vitória vai buscar a garrafa

DURAN 
Ué, Genival, você não vai ao desfile?

GENI 
Pra quê? Por vinte pratas que você nem vai pagar? 

DURAN 
Que é isso? Duvidando da minha honestidade? 

GENI
Nunca, Duran. Mas por que é que você vai pagar por uma passeata que não vai acontecer? 

DURAN 
Não vai acontecer? Já viu a multidão aí fora? 

GENI 
Que tumulto, hein? Eles vão ficar bem chateados quando você suspender a passeata. 

DURAN 
Eu não vou suspender nada, de jeito nenhum. A não ser, é claro, que o meu amigo Chaves cumpra com o seu dever. 

GENI 
Justamente. Acho que o Tigrão só não cumpre o dever se não quiser. 

CHAVES 
Que é que tu tá insinuando, ô, veado? Pensa que eu tô protegendo aquele patife? 

GENI 
Eu não disse isso. . . 

CHAVES 
Sai da minha frente, vai, cai fora! 

VITÓRIA 
Calma, inspetor. Algo me diz que o Genival tem novidades pra nós. 

DURAN 
Você sabe do Max, Genival? 

GENI 
Esse conhaque caiu redondinho, Vitória. 

CHAVES 
Sabe do Max, porra? Fala duma vez! 

GENI 
Serve mais um, Vitória? 

CHAVES 
Ah, eu esgano este puto! (Avança sobre Geni

VITÓRIA 
Não faça isso, inspetor, que você estraga tudo! Fala, Genival, fica à vontade. 

GENI 
Oh, inspetor, que lindas mãos! Posso ler? 

CHAVES 
Tu vai ler é uma caceta! 

DURAN 
Deixa ele ler, Chaves, ouve o que eu tô falando! Lê a mão dele, Genival, que ele tá morrendo de curiosidade. 

CHAVES 
Vai, vai logo, lê essa bosta! 

GENI 
Ah, que emocionante. Um futuro grandioso! Muito poder nas suas mãos! Quantas viagens! Oh, oh, oh que lindo! Um aviãozinho no céu azul. . . Nossa, que aviãozão enorme! Xiiiiii. . . 

CHAVES 
O que foi? 

GENI 
Caiu. 

CHAVES 
Agora chega. Se tu sabe alguma coisa do Max, desembucha duma vez. 

GENI 
Pois é, o Max. . . Sujeito alinhado, o Max. Mulhereeeeengo! Lembra ontem à tarde, quando eu deixei escapar pra vocês que o Max tava no puteiro dos Arcos? 

CHAVES
Mas hoje ele não tá em puteiro nenhum, que eu já revistei todos. 

GENI 
É claro que não tá. O Max jamais vai a puteiro em feriado nacional. Eu tava falando de ontem. 

DURAN 
E você veio aqui pra falar de ontem, Genival? 

GENI 
Também. Eu ontem dei uma informação, sem querer mas dei, e vocês nem agradeceram. 

CHAVES 
Ah, é? Pois não tem agradecimento nenhum. O Max fugiu da cadeia no mesmo dia. 

GENI 
Bom, eu não tenho culpa se a polícia é incompetente. .. 

 CHAVES 
Ah, Duran, ah, dona Vitória, vocês vão me desculpar mas agora eu arrebento esse veado puto! 

VITÓRIA 
Inspetor, eu tenho certeza que o Genival tem outras coisas pra falar. Tô vendo nos olhos dele. 

DURAN Quanto é o agradecimento por ontem, Genival? 

GENI 
Olha, era só dois contos. Mas agora que o inspetor me chamou de veado puto eu vou ter que exigir uma indenização. Fica tudo por quatro contos e eu me dou por satisfeita. 

CHAVES 
Se não é vedo, o que é que é? É machão? 

GENI 
Nem veado nem machão. Eu sou plurissexual. 

DURAN 
É melhor pagar logo, Chaves, senão aumenta. 

CHAVES 
Toma, porra! 

GENI 
Não, assim tão cru eu nem tenho jeito de receber. 

CHAVES 
O que tu quer mais? 

GENI 
Aceito desculpas. 

CHAVES 
Nunca! Não peço desculpa a veado por nada deste mundo! 

GENI 
Veado, não. 

VITÓRIA 
Por favor, inspetor. 

DURAN 
Deixa de besteira, Chaves. Pede desculpas. 

CHAVES 
Desculpa, porra! 

GENI (Pega o dinheiro
Dá mais um conhaque, querida? 

VITÓRIA 
Toma, Genival. Mas agora é melhor vender teu peixe, que já passa das duas.


continua pág 119 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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