segunda-feira, 14 de agosto de 2023

O Cortiço - VIII No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


VIII 
..

No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dis-sesse que ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia.

- Que tens tu, Jeromo?... 

- Morrinhento, filha... Vai, anda! 

- Mas sentes-te mal? 

- Ó mulher! vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua! 

- Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!

E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida. “Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!”
A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.

- Foi da friage da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do trabalhador para receitar.

O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita se aproximava também.

- Ah!

E desfranziu-se-lhe o rosto.

- Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha chegada? Se tal soubera não vinha!

Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a vésper.
A mulata aproximou-se da cama.
Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela.
Jerônimo apertou-lhe a mão.

- Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado. 

- Já tomou algum remédio?... 

- A mulher falou ai em chá preto... 

- Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra! Espera ai!

E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela.
Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco. 

- Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim m’assustas... Que tens, diz’-lo! 

- Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa... 

- Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus! 

- Já te disse que tomo outra mezinha. Oh!

Piedade não insistiu.

- Queres tu um escalda-pés?... 

- Toma-lo tu!

Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas receou importuná-lo. “Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.”
Jerônimo fechara os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado por dentro, para a não sentir. Ela, porém, coitada! fora assentar-se à beira da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo naquele instante, para e exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.

- ‘Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?... 

- Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à Leocádia que me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e... 

- Andaste mal... 

- Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela... E demais, não foi que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal! 

- Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia! Melhor seria que estivesses à tua tina em vez de ficar ai a murmurar do próximo... Anda! vai tomar conta das tuas obrigações. 

- Mas estou-te a dizer que não há transtorno!... 

- Transtorno já é estar eu parado; e o pior será pararem os dois! 

- Eu queria ficar a teu lado, Jeromo! 

- E eu acho que isso é tolice! Vai! anda!

Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.

- Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.

E deixou-se ficar. 
Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.

- Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E ai, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!
Ele riu-se assentando-se na cama.

- Pois não é assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr’aquela cara e diga-me se não está a pedir que o enterrem!

A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, ressentida contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.

- Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu descontentamento. 

- Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente. Beba, ande! beba tudo e abafe- se! Quero, quando voltar logo, encontrá-lo pronto, ouviu? - E acrescentou, falando à Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe a mão no ombro carnudo: - Ele daqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo que peça água. Cuidado com o vento!

E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam eflúvios de manjerona.
Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à boca, resmungou:

- Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas café, nem gostas!... 

- Isto não é por gosto, filha, é remédio!

Ele com efeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas engoliu de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor até às ventas.
A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um xale para lhe cobrir a cabeça.

- Trata de sossegar! Não te mexas!

E dispôs-se a ficar junto da cama, a vigiá-lo, só andando na ponta dos pés, abafando a respiração, correndo a cada instante à porta de casa para pedir que não fizessem tanta bulha lá fora; toda ela desassossegada, numa aflição quase supersticiosa por aquele incômodo de seu homem. Mas Jerônimo não levou muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.

- Ainda bem! exclamou ela, radiante.

E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e meter um punhado de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe fora a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo às nádegas, ao ventre e às pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era antes uma massagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou.
E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:

- Tem juízo! Acomoda-te! Não vês que estás doente?...

Ele não insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu água. Piedade foi buscar o parati.

- Bebe isto, não bebas a água agora. 

- Isto é cachaça! 

- Foi a Rita que disse para te dar...

Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restilo que havia no copo.
Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe logo de pronto o efeito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pele, Jerônimo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol cáustico; ouvindo, de olhos fechados, o ronrom monótono da máquina de massas, arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante, um interminável cantar de galos à porfia, enquanto um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, anunciando um defunto da paróquia.
Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do remédio, a Rita correu de novo ao quarto do doente.

- Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?

Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por única resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita segurar a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o entendeu, tanto que consentiu: mal, porém, a sua carne lhe tocou na carne, um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num só hausto de luxúria, trincá-la como um caju.
Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo.

- Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora vamos lá!


Continua página 43...
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Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.

Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.

Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.

A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.

Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.

Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

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