sábado, 19 de agosto de 2023

O ano que não começou

 O ano que não começou 

Valdomiro Martins 



O homem de terno cinza desviou-se por entre as pessoas que caminhavam animadas. entrou em casa. Tirou o casaco, o chapéu, pendurou-os no cabide. A mulher que o olhava pela janela, veio ao seu encontro.

– É verdade – ela perguntou. – Vais dizer a eles?

O homem se afastou. Aproximou-se da janela, mirou as pessoas a caminharem apressadas, virou-se e disse:

– Ficarei apenas com as duas.

– E a lei? – ela segurou as mãos do homem. – Vais contrariar o Império?

O homem riu. Cruzou os braços.

– Eu e todo o Brasil – e serviu um copo de vinho. – Chame o José.

Tomou três longos goles de vinho. José aproximava-se. Seu pé direito arrastava-se a cada passo no piso de madeira. Perante o homem, ele parou com os olhos arregalados e ouvidos prontos às ordens iminentes.

– Pegue suas coisas e o Camilo também – disse o homem. – Vão embora festejar suas liberdades!

José não discutiu, era hábito de uma vida seca, ignorante às decisões. Foi até a cozinha e, sob os olhares das cozinheiras, tomou o menino Camilo, de uns dez anos, pelo braço. Levou-o até o pequeno quarto, nos fundos da casa. José mandou que arrumasse sua trouxa.

– Vamos aonde? – perguntou Camilo.

José não respondeu. Continuou arrumando a trouxa. Às vezes, parava como se esquecesse o que deveria levar. Havia uma calça e duas camisas. Olhou alguns minutos para as roupas e envolveu-as com o tecido marrom. Deu um grande nó e disse:

– Está pronto?

– Pra quê?

– O patrão mandou nós festejar a nossa liberdade.



Conversas alegres e passos rápidos tornavam-se comuns entre homens de casacas e mulheres de vestidos naquele início de noite. Era maio e os vidros das janelas embaçavam antes que as estrelas surgissem.

Os olhos de Camilo acompanhavam as pessoas que cruzavam seu caminho. José deslocava-se em passos lentos e angustiantes à medida que arrastava o pé descalço. Viram o velho de barba suja e calça rasgada que extraía di violão uma triste milonga. Ao lado, uma mulher negra de vestido branco, sujo de lama, suspendia um caixote de madeira. Aproximaram-se. José viu no interior duas moedas com a face do imperador. Perguntou à mulher para onde iam todas aquelas pessoas.

– É o baile da abolição – respondeu a mulher. – Vão lá! Dizem que a festa é pra nós. – E riu de maneira intensa e desdenhosa como uma feiticeira. José se irritou, ofendeu-se com a risada. Uma graça que nunca entenderia. Chamou Camilo, foram embora.

Os dois caminhavam. Camilo admirava-se cada vez mais, a cada vestido que via, até que um bêbado deu de ombro com José.

– Desculpe cavalheiro! – disse o homem numa voz alcoólica. – A partir de hoje, graças à princesa Isabel, sois um.

Camilo ria com as palavras balbuciadas e distorcidas do divertido homem, que o álcool parecia ter aguçado a vontade da fala:

– Tome, beba! – disse o bêbado, e pôs o gargalo de uísque na boca de José, que a agarrou e pôs na boca numa necessidade voraz. tomou três goles seguidos e devolveu ao homem, que gritou:

– Salve a princesa Isabel! Salve a Lei Áurea!

Depois o homem caiu sentado e deitou no chão. Camilo pegou a garrafa que escorria o líquido no solo e depressa levou à boca. Antes que tomasse, José arrancou das mãos do menino e acabou com o restante.

Camilo se lembrava das palavras da mulher da caixa de madeira e as repetiu para José.

– A festa é pra nós – repetia em meio ao grande sorriso.

O uísque despertara uma grande fome em José, que logo ouviu também de Camilo que desejava comer alguma coisa. O menino então lhe sugeriu que fossem à festa. Quem sabe comeriam de graça? Não havia outra escolha. Talvez a ideia tivesse algum sentido e aquela mulher dissera a verdade, pensou José.

Da esquina eles avistavam o grande clube onde ainda muitas pessoas entravam. Aproximavam-se e José achava estranha a ausência de negros. Pararam próximo à porta, dois homens de casaco preto recebiam os casais e famílias que entravam.

– Vá lá Camilo – disse José. – Pergunte se é aqui a festa da liberdade.

Camilo aproximou-se dos homens que logo o interceptaram. Um deles perguntou:

– O que foi pretinho?

– É aqui a festa da aboli... Aboli... – e não conseguia completar a palavra.

– Abolição – o homem ajudou Camilo a soletrá-la corretamente.

Depois disse:

– É assim que se diz: festa da abolição.

Camilo sorriu e chamou José que se aproximou no seu ritmo penoso.

– Para aí mesmo – disse o outro homem. – Deem meia-volta e vão embora!

José retraiu três passos enquanto Camilo permaneceu no mesmo lugar. O homem que havia o empurrado disse ao seu companheiro:

– Viu só! Mal saiu a lei, já pensam que são como nós.

– Senhor! Podemos entrar? – perguntou Camilo.

O homem agarrou-o pela gola do colete. Levou até onde o menino podia ver o interior do iluminado salão.

– Vê algum negro aí dentro? – disse a Camilo que olhava para todos os cantos do salão.

– Lá! –  disse Camilo ao ver um negro de roupa branca que servia os convidados. – Veja, Senhor, tem mais dois ali!

– Tens razão. Mas eles vestem a roupa certa e fazem o que lhes cabe.

Enquanto o silêncio dominava José, que sentava no chão à espera de Camilo, junto aos dois homens, Camilo disse:

– Posso vestir o que eles vestem e fazer o que eles fazem.

Os homens riram numa vontade espontânea. Depois, o mesmo homem que havia levado Camilo até perto do salão, levou-o através de um corredor de paredes altas.

Havia um silêncio. Escutavam-se alguns passos solitários na rua repleta de jornais e panfletos, José dormia no chão onde sua cabeça apoiava-se num monte de jornais amassados. Mãos pequenas o sacudiam. José abriu os olhos e viu Camilo que lhe disse:

– Tome José, trouxe da festa da abolição.

Eram salgados e doces que trouxera nos bolsos do colete e da calça. 

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Martins, Valdomiro Santos 

Guerrilha e solidão / Valdomiro Santos Nunes. – Porto Alegre: Literalis, 2008

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