terça-feira, 15 de agosto de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado e o indivíduo

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


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O Estado e o indivíduo


O Estado, é claro, não existe sem as pessoas que o integram, sem a sociedade onde está implantado. E os relacionamentos possíveis entre o Estado e os indivíduos são, como já temos ideia, múltiplos e variados. Mas, para fins de análise, é possível fazer algumas abstrações e generalizações — o que quer dizer, no caso, imaginar um indivíduo hipotético e procurar visualizar que tipos de relacionamento esse indivíduo pode ter com o Estado. 

Como em muitos outros aspectos da Política, este também envolve importantes implicações filosóficas, assim qualificadas porque abrangem indagações permanentes a respeito da condição humana. Por exemplo, alguém pode achar que o ser humano é um animal violento, egoísta e predatório, cuja natureza requer permanente controle. Desta forma, o Estado seria indispensável para proteger o homem de seus próprios impulsos, protegê-lo de si mesmo, enfim. Alguém pode também pensar que o homem é por natureza bom ou que tende para o bem, mas as pressões da vida em comum com os outros o induzem a desenvolver características negativas, o que tornaria necessária uma organização estatal para impor a ordem, ainda que dentro de limites cuidadosos, que não redundassem no esmagamento das liberdades do indivíduo. 

Ainda outros podem concluir que o Estado é, na realidade, uma espécie de perversão da raça humana, talvez até uma marca de seu atraso, que todo governo é, em última análise, uma violência, que o homem pode passar muito bem sem o Estado, substituindo-o por organizações mais simples, que ordenem minimamente o trabalho e a vida coletiva, sem a marca da autoridade caracterizadora da ação estatal. 

Finalmente, para encerrar este rosário de hipóteses (que estão longe de esgotar todas as variações possíveis), é bem possível que alguém considere o Estado a suprema evolução da vida humana em sociedade e que, portanto, o indivíduo em si não tem importância perante o Estado, existindo apenas para servi-lo, e não o contrário.

Podemos então concluir que há três atitudes básicas, dentro das quais se encaixam todas as variantes e seus pormenores: 

1) o Estado existe para servir ao indivíduo e à sociedade;
2) o indivíduo e a sociedade existem para servir ao Estado 
e
3) o Estado existe porque, por enquanto, não temos outro jeito, mas devemos fazer tudo para aboli-lo, pois é uma forma insuportável de tirania, uma maneira de impor a vontade de alguns sobre todos e um sintoma da baixa evolução da espécie humana. 

As teorias e as concepções em que se fundamentam essas posições são, é óbvio, inconciliáveis entre si. O que uma tem como pressuposto verdadeiro, a outra tem como falácia, e vice-versa. É também frequente que a teoria explicativa surja depois do estabelecimento do tipo de Estado a que se aplica. Por exemplo, depois de instalado no poder o ditador pode desenvolver, com a ajuda sempre disponível de intelectuais que auxiliam ditadores, uma vasta teoria sobre como a ditadura dele é necessária, com todo o substrato filosófico, sociológico e jurídico que ele julga indispensável para legitimar-se. Naturalmente — e é o que acontece muitas vezes —, essa teoria podia existir antes, pode não ser mais do que a reunião interesseira de pensamentos de vários estudiosos, ou ainda a expressão de uma escola de pensamento antes desprestigiada, ou até o produto do trabalho de um só pensador de maior relevância ou influência. 

De qualquer maneira, uma teoria, por mais engenhosa que fosse, nunca seria aplicada à realidade social e política se não houvesse interesses concretos aos quais ela servisse. Se as conseqüências práticas da aplicação de uma teoria interessarem a alguns setores da sociedade, é claro que esses setores tenderão a adotá-la como verdade, em oposição a outras maneiras de pensar. Se esses setores assumirem o controle das decisões públicas, a teoria adotada por eles passará a ser a oficial. 

Opostamente, as teorias que procurem demonstrar a nãovalidade da teoria oficial e a resultante validade de posições diametralmente diferentes interessarão às camadas da sociedade que não têm participação efetiva nos mecanismos decisórios, ou que estão oprimidas pelo sistema ou, ainda, meramente insatisfeitas. Não é incomum que essa situação se radicalize a tal ponto, que até pensar ou dar opinião baseada numa teoria que não interessa ao Estado é considerado um ato anti-social, por assim dizer, um crime contra a sociedade, uma ação subversiva, o que pode gerar uma reação violenta por parte dos grupos que controlam o Estado.

O exposto acima não deve ser entendido como uma espécie de chave para uma compreensão mecânica e simplória da realidade sociopolítica, porque as coisas não funcionam de maneira tão singela e transparente. A começar pelo fato de que, como veremos melhor depois, é difícil que haja uma “verdade” social. Dizer, em relação à vida da sociedade, “isto é o certo” ou “isto é o bom” é muito problemático e duvidoso. 

Se nas próprias ciências exatas, como a física, as dúvidas sobre essa “verdade” já são muito grandes, imagine-se num terreno como a nossa vida, em que, mesmo quando estamos tentando ser objetivos, não podemos abstrair por completo a condição de seres humanos, carregados de valores, símbolos e intenções. 

Foi “verdade” durante muitíssimo tempo que algumas pessoas eram, por natureza, destinadas à escravidão. E não se tratava de uma verdade marginalizada, mas de algo que já teve dignidade científica, já foi plenamente aceito como até constando da Ordem Divina, pelos elementos mais respeitáveis das sociedades que, desde que o mundo é mundo, mantiveram escravos, ou escolhidos entre inimigos vencidos, ou buscados entre povos tecnologicamente mais atrasados, “feitos para a escravidão”. 

De certa forma, pois, o ser humano faz sua própria verdade. A verdade social e política termina por redundar na interpretação dos fatos da existência humana, e o intérprete é o próprio homem, também personagem dos fatos interpretados. A aceitação de certas “verdades” importa sempre na aceitação de certas outras, que são seus pressupostos ou suas conseqüências e implicações. 

Por exemplo, é verdade que o Brasil não tem recursos para investir o necessário no bem-estar da maioria de seu povo. É também verdade que isto constitui uma contingência inevitável e que nem os próprios políticos de oposição têm podido oferecer sugestões eficazes. Mas é também verdade que parte da população, a minoria, vive muito mais ricamente do que seria humanamente necessário e que essa vida é levada à custa da miséria da maioria. Qual é a verdade? Há ou não há recursos? É possível ou não modificar por completo a situação? 

Como é verdade que não existem condições para alimentar e dar trabalho aos pobres, quando muitos ricos não trabalham e jogam comida fora, quando é comentado abertamente que os depósitos brasileiros clandestinos no exterior sobem a várias dezenas de bilhões de dólares, quando somos um dos maiores exportadores de gêneros alimentícios do mundo e, ainda assim, periodicamente assistimos à perda de safras por falta de infra-estrutura de armazenamento e transporte, além de também presenciarmos a destruição de outras tantas safras — de pintos de um dia a cebolas — pelos seus próprios produtores, movidos por distorções no mercado? Cabe a cada um de nós examinar essas “verdades”. 

Cabe também apontar que o fato de uma das teorias a que aludimos anteriormente contrariar ou servir os interesses de determinados segmentos da sociedade não significa que os indivíduos pertencentes a esses segmentos percebam isso, tenham consciência disso. Ao contrário, é muito comum que a maneira de pensar politicamente de cada pessoa seja “emprestada”, o que, aliás, acontece em relação a quase tudo. Uma pessoa nessa situação não vê o mundo de acordo com seus interesses, mas de acordo com uma visão que lhe foi ensinada como a “certa”. Daí a figura do escravo bonzinho, do Pai Tomás, do escravo que acredita que de fato algumas pessoas nasceram para a escravidão ou para servir incondicionalmente a um senhor, e que ele é uma dessas pessoas. Daí a figura do jagunço nordestino que, mesmo pertencendo a uma classe oprimida, se coloca a serviço do opressor, em troca de algumas vantagens na verdade insignificantes.

E a máquina do Estado, sob a capa do interesse coletivo, em muitos casos, dedica extraordinários esforços a manter essa situação, a ponto de os indivíduos, muitas vezes com entusiasmo, perderem suas próprias vidas para defender um sistema que não é absolutamente de seu interesse — como acontece nas guerras em que morrem recrutas ou voluntários miseráveis, até mesmo escravos, para defender ou impor um Estado que os obriga a permanecer na miséria ou na escravidão. A realidade social é fácil de perceber quando estamos falando abstratamente sobre ela, mas esquiva quando estamos imersos nela. 

É sempre um pouco enganoso colocar rótulos nas coisas, porque, se os rótulos são adequados sob determinados pontos de vista, sob outros não são. Mas vamos outra vez fingir que a realidade é mais simples do que é e figurar o indivíduo hipotético de que falamos atrás em algumas situações típicas. 

a) o Estado de que Indivíduo é cidadão, através de um processo mais ou menos longo e de uma liderança bem organizada, se apresenta e se impõe como a própria encarnação da nacionalidade, como o instrumento supremo de realização do povo. Tudo, portanto, cai sob a ótica do Estado, que não pode ser contestado, já que representa a vontade geral ou o “espírito do povo”. Não se pode pensar ou agir de forma diversa, não há interesse legítimo além do interesse do Estado, que orienta ou tutela todas as atividades. Neste caso, Indivíduo é cidadão de um Estado totalitário, uma espécie de ditadura amplíssima, como aconteceu na Alemanha nazista ou na Itália fascista. 

b) o Estado de que Indivíduo é cidadão não chega a ser totalitário, ou seja, não desenvolveu instrumentos tão extensos para o controle de todos os aspectos da sociedade. Entretanto, a participação do cidadão nas decisões públicas é limitada, os direitos e liberdades individuais são mais ou menos restritos, e há uma margem considerável de arbítrio para os ocupantes do poder. Neste caso, Indivíduo é cidadão de uma das muitas variantes de Estado autoritário, o qual pode até nem manter um ditador vitalício, mas substituí-lo rotineiramente por outros “da mesma corriola”, preservando uma aparência de mudança que, efetivamente, não existe. O exemplo aqui pode ser o Brasil mesmo, entre 1964 e 1985. 

c) o Estado de que Indivíduo é cidadão procura permitir um grande número de liberdades individuais, assegurar a participação de todos em muitas decisões públicas, através, por exemplo, de eleições, referendos, plebiscitos etc. e da manutenção de um esquema de representatividade responsável e efetiva. O Estado obedece ainda a princípios e leis que não pode modificar, a não ser pela vontade popular, expressa direta ou indiretamente. Neste caso, Indivíduo é cidadão de uma das muitas variantes do Estado democrático.

d) Indivíduo é cidadão de qualquer um desses Estados, mas não suporta a existência de autoridade sobre sua pessoa e sobre os outros, abomina toda espécie de interferência sobre sua liberdade pessoal — desde o pagamento de impostos até a vacinação obrigatória — e, em síntese, identifica qualquer tipo de governo com uma forma mais ou menos insuportável de tirania. Aqui, Indivíduo perfilha uma das muitas formas do anarquismo. Anarquia significa “ausência de governo”, não necessariamente baderna ou confusão. Neste caso, Indivíduo não quer ter relacionamento com Estado nenhum, não quer ser cidadão. 

e) Indivíduo, finalmente, é cidadão de um Estado que “fez a Revolução”, ou seja, reverteu por completo a situação anterior, reformulou toda a estrutura social, econômica e institucional. Neste caso, Indivíduo pode ser obrigado, de maneira semelhante à que vigora no Estado totalitário mencionado acima, a não desviar sua conduta dos padrões estabelecidos pelo esquema revolucionário, pois a Revolução terá sido popular e representa os interesses da maioria. Além disso, pode ser que a ideologia oficial desse Estado considere o totalitarismo, bem como a ausência de mecanismos formais semelhantes aos das chamadas democracias, uma simples fase anterior à da verdadeira democracia, que ocorreria quando, depois desse período ditatorial, o espírito da Revolução como que se automatizasse e a sociedade funcionasse sem a necessidade de instrumentos coercitivos e do aparato estatal como o conhecemos. Ou seja, esse Estado, em última análise, evoluiria para uma espécie de anarquia, no sentido que já vimos. Indivíduo, neste último caso, seria possivelmente cidadão de um Estado socialista, submetido a uma ditadura do proletariado e mantido na convicção de que a humanidade é tão aperfeiçoável que um dia prescindirá de qualquer tipo de Estado. Mas o que se alega freqüentemente é que, tanto no caso do item a como no caso deste item, Indivíduo estará pura e simplesmente numa ditadura, só que a primeira de direita e esta de esquerda. 

O esquema acima é incompleto e generalizador, mas deve bastar para que se tenha uma compreensão inicial do assunto, a ser complementada depois com outras informações. Na verdade, os esquemas sempre empobrecem a realidade, e nada substitui o exame dos casos concretos, à medida que eles nos apareçam. Cada Estado enquadrável nos vários itens tem características específicas, e os modelos genéricos servem apenas como pontos de referência. 

*

1 “O homem vive pensando em passar os outros para trás, e qualquer pessoa, se não for controlada, termina por impor sua vontade contra as outras, inclusive pela violência.” Invente um Estado com base neste pressuposto. 

2 “O povo é ignorante e primitivo e, portanto, precisa de uma direção permanente e esclarecida.” Faça a mesma coisa aqui que em relação ao caso precedente.  

3 Na sua opinião, numa ditadura do proletariado, o Estado existe para servir ao indivíduo ou o indivíduo existe para servir ao Estado? 

4 Você acha possível, ainda que em termos muito hipotéticos, uma sociedade desenvolvida onde não haja Estado? Solte a imaginação. 

5 “O governo deve ser deixado a cargo dos especialistas e o povo vai cuidando de sua vida, cada qual fazendo aquilo de que entende.” Comente as implicações desta afirmação. 

6 “Uns nasceram para mandar, outros para obedecer.” Faça a mesma coisa aqui que em relação ao item anterior.

7 Um indivíduo nascido em situação social e econômica ruim, sem instrução ou qualificação, se põe a serviço de um poderoso e passa a desfrutar de várias regalias disso decorrentes. Você acha que esse indivíduo passou a pertencer à classe dominante?

8 O Estado brasileiro de hoje é democrático?

9 Quantos tipos diferentes de Estado o Brasil já teve até hoje? Descreva cada um deles.  



continua na página 058...
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João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado e o indivíduo

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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