A Hora da Estrela
Também esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter
que começar – pois já não aguento mais a pressão dos fatos – o
registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio
do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga
nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Alias foi ele
quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. Apesar de ter
gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e plástico
mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e
subserviência. Também porque – e vou dizer agora uma coisa difícil
que só eu entendo – porque essa bebida que tem coca é hoje. Ela é
um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o
pior nem melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando,
inspirando e expirando. Na verdade – para que mais que isso? O seu
viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em
benefício da moça. Moça essa – e vejo que já estou quase na história –
moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante
suspeitas de sangue pálido. Para adormecer nas frígidas noites de
inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o
próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz
entupido, dormia exausta, dormia até o nunca.
Devo acrescentar um algo que importa muito para a apreensão
da narrativa: é que esta é acompanhada do princípio ao fim por uma
levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta. Afianço
também que a história será igualmente acompanhada pelo violino
plangente tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é
estreita e amarela como se ela já tivesse morrido. E talvez tenha.
Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter prometido
demais e dar apenas o simples e o pouco. Pois esta história é quase
nada. O jeito é começar de repente assim como eu me lanço de
repente na água gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem
suicida o intenso frio. Vou agora começar pelo meio dizendo que –
– que ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se
exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. (Vai ser
difícil escrever esta historia. Apesar de eu não ter nada a ver com a
moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos
meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o
sussurro que me impressiona).
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada
argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de
representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade
essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia
tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua
colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou
que se deve por respeito responder alguma coisa e falou
cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:
– Me desculpe o aborrecimento.
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia
virado as costas – voltou-se um pouco surpreendido com a
inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase sorridente da
datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a
contragosto:
– Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de
demorar um pouco.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha
porque estava toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho
que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto
combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e
escurecido não refletia imagem algum. Sumira por acaso a sua
existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara todo
deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de
um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão
jovem e já com ferrugem.
(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça
não tinha. Não tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der
para me entenderem, está bem. Se não, também está bem. Mas por
que trato dessa moça quando o que mais desejo é trigo puramente
maduro e ouro no estio?)
Quando era pequena sua tia para castigá-la com medo dissera-lhe que homem-vampiro – aquele que chupa sangue da pessoa
mordendo-lhe o tenro da garganta – não tinha reflexo no espelho. Até
que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem lhe iria algum
rosado de sangue no amarelado do rosto, ela que não parecia ter
sangue a menos que viesse um dia a derramá-lo.
A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira.
Aprendera em pequena a cerzir. Ela se realizaria muito mais se se
desse ao delicado labor de restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou
de luxo: cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha
mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de açúcar. Ela era
de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz.
É porque ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar
em alguém ou em alguma coisa – basta acreditar. Isso lhe dava às
vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.
(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E
ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva.
Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me
vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão
que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um
pouco de fibra? Não, ela é doce obediente.)
Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e
interrogativos – tinha olhar de quem tem uma asa ferida – distúrbio
talvez de tiroide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? A
Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de
quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia
perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de
perguntar? E de receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia
fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem
ao menos havia perguntado. Por falta de que lhe respondesse ela
mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no
mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se
apresente e a diga, estou há anos esperando.
Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para
que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha
de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No
espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que vinham do fígado.
Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava
meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco
encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de
noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como
avisar-lhe que seu cheiro era morrinhento. E como não sabia, ficou
por isso mesmo, pois tinha medo de ofende-la. Nada nela era
iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve
brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua,
ela era café frio.
E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz
na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se
chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Sé eu, seu autor, a amo.
Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me
pede chorando que não lhe dê cantando”? Essa moça não sabia que
ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro.
Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia
para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma
gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz.
Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era
morta? E depois de nascer ela ia morrer? Mas que fina talhada de
melancia.
Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou
denunciando.
Agora (explosão) em rapidíssimos traços desenharei a vida
pregressa da moça até o momento de espelho do banheiro.
Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus
antecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam
morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo
perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a tia beata,
única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa
esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto
vital. Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos
fracos por falta de cálcio. Batia mas não era somente porque ao bater
gozava de grande prazer sensual – a tia que não se casara por nojo – é
que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um
dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de
cigarro aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado
mostras de no futuro a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato
de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A
mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há
desejo de sol. As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco
a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da
sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na
sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia
sabida? A menina não perguntava por que era sempre castigada mas
nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua
vida.
Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela
sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o
rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo.
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa
morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a
representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se
torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e
é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.
Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho.
Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer.
Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não
merecia o amor de um cão. Do contato com a tia ficara-lhe a cabeça
baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais
fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram
estranhas.
continua pag 37...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
continua pag 37...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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