quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (9b)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

continuando...

Jem e eu tínhamos sentimentos conflitantes em relação ao Natal. O lado bom era a árvore de Natal e tio Jack Finch. Toda véspera de Natal, nós o encontrávamos na conexão de Maycomb e ele ficava uma semana conosco. 
O lado ruim era o comportamento rígido de tia Alexandra e Francis. 
Acho que eu devia incluir o marido dela, tio Jimmy, mas, como ele nunca falou comigo na vida a não ser para dizer “desça da cerca” uma vez, não via por que lhe dar atenção. Nem tia Alexandra. Anos antes, num ímpeto de intimidade, o casal gerou um filho chamado Henry, que saiu de casa assim que foi humanamente possível, casou-se e gerou Francis. Todo Natal, Henry e a esposa deixavam Francis na casa dos avós e iam aproveitar a vida. 
Por mais que suspirássemos, não conseguíamos convencer Atticus a passar o Natal em casa. Passamos em Finch’s Landing todos os Natais de que tenho memória. O fato de que tia Alexandra cozinhava bem era a única coisa que compensava ter de passar o feriado com Francis Hancock. Eu era um ano mais nova que Francis e evitava a presença dele por uma questão de princípio: Francis gostava de tudo de que eu não gostava e detestava as minhas ingênuas diversões.
Tia Alexandra era irmã de Atticus, mas quando Jem me contou sobre irmãos e troca de bebês na maternidade, resolvi que ela tinha sido trocada ao nascer e que meus avós tinham ficado com uma Crawford em vez de uma Finch. Se eu tivesse cultivado ideias místicas a respeito de montanhas, que parecem ser uma obsessão de advogados e juízes, tia Alexandra seria equivalente ao monte Everest: durante toda a minha infância, ela foi uma presença fria e distante.
Quando tio Jack desembarcou do trem na véspera do Natal, tivemos de esperar o carregador trazer dois compridos pacotes. Jem e eu sempre achávamos engraçado quando tio Jack beijava papai no rosto; eles eram os únicos homens que já tínhamos visto fazendo isso. Tio Jack apertou a mão de Jem e me levantou alto, mas não muito, pois era mais baixo que Atticus. O caçula da família, era mais novo do que tia Alexandra. Os dois se pareciam, mas tio Jack fazia melhor uso do rosto dele: nunca tivemos medo de seu nariz e de seu queixo pontudo.
Ele era um dos poucos médicos que nunca me assustou, provavelmente porque nunca se comportava como um médico. Sempre que precisava fazer qualquer coisinha com Jem ou comigo, como retirar um espinho do pé da gente, dizia exatamente o que ia fazer, dava uma ideia do quanto ia doer e explicava para que servia cada instrumento que ia usar. Em um Natal, fiquei gemendo pelos cantos, com uma farpa enfiada no pé, sem deixar ninguém se aproximar de mim. Quando tio Jack me pegou, me fez rir sem parar contando a história de um padre que detestava tanto ir à igreja que todos os dias ficava no portão de casa, de batina, fumando narguilé e dando sermões de cinco minutos a todos que precisassem de conforto espiritual. Interrompi a história para perguntar a tio Jack quando ele ia tirar a farpa e ele me mostrou a pinça com uma lasca de madeira que tinha arrancado enquanto eu estava rindo. Isso era o que se chamava de relatividade. 

— O que tem nesses pacotes? — perguntei a ele, apontando para os dois compridos embrulhos que o carregador tinha entregado.

— Não é da sua conta — ele respondeu.

Jem perguntou: 

— Como vai Rose Aylmer? 

Rose Aylmer era a gata de tio Jack. Era uma linda bichana amarela que, segundo ele, era um dos poucos seres do sexo feminino que ele conseguia aguentar de modo permanente. Tirou do bolso do paletó algumas fotos dela. Nós olhamos.

— Ela está ficando mais gorda — reconheci.

— É compreensível. Ela come todos os dedos e orelhas que amputamos no hospital. 

— Que bosta nojenta! — exclamei. 

— O que você disse? — perguntou tio Jack. 

Atticus então avisou: 

— Não dê atenção, Jack. Ela está testando você. Cal disse que ela está falando essas palavras de baixo calão há uma semana.

Tio Jack ergueu as sobrancelhas e não disse nada. Além da atração inerente àquelas palavras, eu estava colocando em prática a improvável teoria de que, se Atticus descobrisse que eu estava aprendendo palavrões na escola, não me deixaria mais ir. 
Mas naquela noite, no jantar, quando pedi para tio Jack, por favor, me passar a droga do presunto, ele apontou o dedo para mim e disse: 

— Depois do jantar vamos ter uma conversa, mocinha.
 
Quando o jantar terminou, tio Jack foi sentar-se na sala. Deu um tapinha nas pernas para que eu fosse me sentar em seu colo. Eu gostava do cheiro dele, parecia uma garrafa de álcool misturada com alguma coisa levemente doce. Ele afastou a minha franja e olhou para mim:

— Você parece mais com Atticus do que com sua mãe. E anda abusando um pouco das palavras. 

— Acho que elas são bem adequadas.

— Gosta de falar droga e bosta, não é?

Confirmei. 

— Bom, mas eu não gosto — disse tio Jack. — A não ser quando há um motivo muito sério para dizê-las. Vou passar uma semana aqui e não quero mais ouvir nenhuma palavra desse tipo. Se continuar falando assim, Scout, vai ter problemas. Você não quer crescer e ser uma moça educada? 

Eu disse que não queria muito. 

— Claro que quer. Agora, vamos cuidar da árvore.

Enfeitamos a árvore de Natal até a hora de dormir e aquela noite sonhei com os dois pacotes compridos para Jem e para mim. Na manhã seguinte, Jem e eu corremos até eles: eram os presentes que Atticus tinha pedido para tio Jack comprar, os presentes que tínhamos pedido. 

— Não usem dentro de casa — recomendou Atticus, quando Jem fez pontaria num quadro na parede.

— Atticus, você vai ter que ensiná-los a atirar — disse tio Jack. 

— Isso é serviço seu. Eu apenas aceitei o inevitável — disse Atticus. 

Atticus teve de usar sua voz de tribunal para nos afastar da árvore de Natal. Ele nos proibiu de levar nossas espingardas de ar comprimido para Finch’s Landing (eu já estava fazendo planos de atirar em Francis) e disse que, se fizéssemos alguma bobagem, ele guardaria as espingardas para sempre.
Finch’s Landing consistia em trezentos e sessenta e seis degraus num costão íngreme que terminava no píer. Mais adiante, rio abaixo, ficavam os restos do antigo cais onde os escravos dos Finch embarcavam fardos e produtos de algodão e descarregavam blocos de gelo, sacos de farinha e açúcar, instrumentos agrícolas e roupas femininas. Uma estrada sulcada pelas rodas de madeira dos veículos saía da margem do rio e sumia no meio das árvores densas. No final dela, havia uma casa branca de dois andares com varandas no térreo e no andar de cima. Já idoso, nosso antepassado Simon Finch tinha construído a casa para agradar à esposa resmungona, mas aquelas varandas a tornavam diferente de todas as outras casas da época. A divisão interna mostrava a ingenuidade e a total confiança que Simon depositava nos filhos. 
No andar de cima havia seis quartos, sendo quatro para as oito filhas, um para o filho único Welcome Finch e um para os parentes que fossem visitá-los. Até aí, nada demais, porém havia uma escada que só levava ao quarto das filhas e outra que levava apenas ao quarto de Welcome e das visitas. A escada do quarto das filhas ficava no quarto dos pais no andar térreo, assim Simon podia controlar as idas e vindas das moças durante a noite. 
A cozinha era separada do resto da casa, ligada a ela por uma passarela de madeira; no quintal havia um sino enferrujado em um mastro que era usado para chamar os trabalhadores do campo ou para soar o alarme quando havia algum problema. No telhado havia uma pequena sacada chamada na região de “sacada de viúva”, mas não tinha nenhuma viúva lá. Dali Simon supervisionava o supervisor, acompanhava os barcos no rio e espionava a vida dos proprietários ao redor. 
Havia uma lenda sobre a casa: uma Finch que tinha acabado de ficar noiva tinha vestido todo o seu enxoval para que os invasores não o roubassem e ficou presa na escada do quarto das filhas. Foi preciso encharcar as roupas com água para ela conseguir passar. Quando chegamos a Finch’s Landing, tia Alexandra e Francis beijaram tio Jack, mas tio Jimmy apertou a mão dele sem dizer nada. Jem e eu demos nossos presentes para Francis, que retribuiu com outro. Jem se achava com idade para ficar entre os adultos e deixou para mim a tarefa de fazer companhia ao nosso primo. Francis tinha oito anos e penteava o cabelo para trás com muita brilhantina. 

— O que você ganhou de Natal? — perguntei, educada. 

— Ganhei o que pedi — respondeu ele. Francis tinha pedido bombachas, um porta-livros de couro vermelho, cinco camisas e uma gravata-borboleta.

— Que ótimo — menti. — Jem e eu ganhamos espingardas de ar comprimido. Jem ganhou também um estojo de química…

— De brinquedo, claro.

— Não, de verdade. Ele vai fazer tinta invisível para eu escrever para Dill.

Francis perguntou qual era a graça disso. 

— Bom, já pensou na cara dele quando receber uma carta minha sem nada escrito? Vai ficar maluco. 

Conversar com Francis era como afundar lentamente até o fundo do oceano. Era o garoto mais chato que eu já tinha conhecido. Como morava em Mobile, não podia me dedurar para os diretores da escola, mas contava tudo o que sabia para tia Alexandra, que, por sua vez, contava tudo para Atticus, que ou esquecia o que tinha ouvido ou me dava uma bronca, dependendo do caso. Mas a única vez que vi Atticus ser ríspido com alguém foi quando tia Alexandra comentou que eu só andava de macacão e ele disse: — Minha irmã, faço por eles o melhor que posso! 
Tia Alexandra era obcecada pelas minhas roupas. Como eu podia querer um dia ser uma mulher elegante usando suspensórios masculinos? Quando eu disse que usando vestido eu não conseguia fazer nada, ela retrucou que eu não devia fazer nada que exigisse calças compridas. Para ela, eu devia brincar de comidinha, servir chá num aparelho em miniatura e usar o pequeno colar de pérolas que ela me deu quando nasci. Além disso, eu deveria ser um raio de sol na vida solitária do meu pai. Respondi que qualquer pessoa podia ser um raio de sol mesmo usando calças compridas, mas minha tia disse que eu tinha de me comportar como um raio de sol também, que eu tinha nascido uma boa menina, mas ia piorando a cada ano. Ela me ofendeu e me deixou muito irritada, mas, quando contei a Atticus, ele disse que na família já tinha muito raio de sol e que eu podia continuar do jeito que era, que estava bom para ele. 
Na ceia de Natal, sentei sozinha numa mesinha à parte na sala de jantar; Jem e Francis ficaram na mesa dos adultos. Tia Alexandra continuava a me isolar mesmo muito tempo depois que eles já tinham ido para a mesa grande. Eu me perguntava o que ela achava que eu ia fazer: será que achava que eu ia me levantar e atirar alguma coisa? Algumas vezes eu pensava em pedir que ela me deixasse ficar na mesa grande só uma vez, e eu ia mostrar como sabia ser civilizada. Afinal de contas, em casa sempre comia à mesa sem maiores incidentes. Quando implorei a Atticus para usar sua influência, ele disse que não podia fazer nada; éramos convidados e tínhamos de sentar onde ela mandasse. Ele disse também que tia Alexandra não entendia muito de meninas, pois não teve filhas.
Mas as comidas que ela fazia compensavam tudo: três tipos de carne, legumes de verão em conserva que ela guardava na despensa, pêssegos em calda, dois tipos de bolo e ambrosia foram nosso nada modesto jantar natalino. Depois, os adultos foram para a sala de estar, e ficaram sentados meio empanturrados. Jem estirou-se no chão e eu fui para o quintal.

— Vista o casaco — disse Atticus, distraído, e eu não dei atenção. 

Francis sentou-se ao meu lado na escada dos fundos. 

— Essa foi a melhor ceia de todas — elogiei. 

— A vovó é uma grande cozinheira, ela vai me ensinar — contou Francis. 

— Meninos não cozinham. 

Ri só de pensar em Francis de avental.

— Vovó diz que todo homem devia saber cozinhar, que os homens têm de ser gentis com as mulheres e cuidar delas quando elas não se sentem bem — disse meu primo.

— Não quero que Dill cuide de mim. Prefiro cuidar dele — eu disse. 

— Dill?

— É. Não conte para ninguém, mas vamos nos casar assim que tivermos idade para isso. Ele pediu minha mão no verão passado. 

Francis zombou. 

— Qual é o problema? Não tem nada de errado com ele — afirmei.

— Você está falando naquele tampinha que a vovó disse que passa o verão com a srta. Rachel? 

— Exatamente.

— Sei tudo sobre ele — disse Francis. 

— Sabe o quê? — perguntei. 

— A vovó diz que ele não tem casa…

— Tem sim, ele mora em Meridian. 

— … ele passa de um parente para outro e a srta. Rachel fica com ele no verão. 

— Francis, isso não é verdade!

Ele deu um sorriso maldoso. 


continua página 063...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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