sábado, 26 de agosto de 2023

Memórias - 21 a solidão

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Um

baitasar

Memórias

21 – a solidão

a voz de Blanca pertencia ao seu nariz, ainda que ela saísse em parte pela boca, quando sussurrava alguma confidência ficava claro que o mandante era el nariz, me atinei com isso passado tantos outros tiempos que ficaram sem memórias

lembro de mi hermana invencionando histórias, acostumbrando mis miedos com aqueles espíritos na penumbra dos tocos de vela, suas historietas e cantorias siempre tenían mi madre viva, caminhando por nossa cabana, abraçando e cantando para as hijas del papá

certa vez, Blanca escondeu tanto sua voz que parecia saída de las ventanas, repetia que à noite, o brilho branco da lua aparecia nos ojos de mi madre, feixes lustrosos que envolviam papá hasta que disfrutó del goce de su hombre

foi em um desses encantamentos que mamá arredondou a barriga de nuevo, as noites passaram a ser iluminadas por uma lua cheia, redonda y brillante que viajaba en cielo de la boca del papá

naquela Montaña de mestiços invisíveis, o lábio leporino era visto como um sinal de bondade dos deuses com todos os outros, para nossa gente, Blanca foi escolhida para lembrar aos demais da própria perfeição

assim, a memória do cotidiano de abandonos e desistências seria derrotada pelas belezas e alegrias daquela mulher marcada entre las mujeres y los hombres de maíz, sorrir apesar das aparências, amar apesar da dor, cantar apesar dos silêncios, dançar apesar da fome, acreditar apesar das mentiras, lembrar as promessas nunca prometidas

Blanca, una mujer sagrada, e ali, entre los mestizos de la Montaña, o sagrado era o lindo e o homem que a tocou afeiçoado ficou, ele não viu feiura ou tristeza, apenas apego, apetite, cobiça, cuidado, zelo, respeito, a aventura do encantamento

as mãos passaram a guardar nas memórias do próprio corpo as umidades, o buço retinha o gosto bom de estar vivo ali enquanto ela vive, gemia de contentamento ao entrar pelo convite dos olhos até o gozo derramado entre tremores, súplicas, beijos e carícias, feito a neve que se desmancha ao sol

é isso, os beijos e as línguas que sabem dizer suas vontades acalmam até o desfalecimento os caprichos, descasos e desinteresses, a busca do contentamento sem constrangimentos, Blanca, mi bella mujer, teus beijos desadormecem minha língua perdida em lambidas, carícias, silêncios, entre tuas rachaduras úmidas e descomplicadas.

os sussurros del hombre acendiam aquela meia-luz de tocos de velas

meu rosto queimava de curiosidade, medo e vergonha, naquela penumbra e sua chama amarelada, cheiros de suor e cera, zumbidos e gemidos, creio que Blanca também olhava papá y su madre o papá y mi madre

para mim restava a solidão esperando o sono chegar, olhando para o teto, pensando, pensando, queria sonhar bons sonhos, gosto de ficar imaginando coisas que poderia ter feito, talvez a possibilidade de tentar salvar o mundo, construir felicidade para os mestiços de la Montaña de maíz, excluídos de qualquer possibilidade, excluídos até da possibilidade do sonho, mostrar que o sonho é possível e que um mundo diferente é possível

juro que são as bobagens mais sérias, mais verdadeiras, mais profundas que passam e ficam em mim


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Memórias - 21 a solidão

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